Semelha difícil não interpretar como provocatória a comemoração pelo Clube Militar do golpe de 1964. Por capricho do destino, a chamada ‘revolução’ se iniciara em primeiro de abril, data em geral reservada para brincadeiras de mau gosto. Terá sido por isso, sem dúvida, que os zelosos adeptos do movimento – armados ou não – terão preferido fazê-la migrar para o trinta e um de março.
Se o último governo dito revolucionário retirou-se de cena, após o ‘breve intervalo’ de 21 anos, pela porta dos fundos da história, todas as características do processo são tingidas por ambiguidade que se pode definir como brasileira, desde que reservemos essa alegada nova postura para o período republicano.
Não escapou aos contemporâneos o simbolismo da queda de Pedro II, e com ela deploraram a inserção do Brasil na série de golpes militares que caracterizavam a trajetória de nossos vizinhos hemisféricos. Desaparecia com a proclamação da República verdadeira democracia do século dezenove.
Terá sido por temor reverencial à instituição armada que, com poucas exceções[1], as lideranças políticas civis têm tratado com extrema cautela – mesmo sob o bafejo de condições tão favoráveis como as presentes – todas as questões direta ou indiretamente ligadas com o Exército e o estamento castrense.
Neste particular, o contraste com os nossos irmãos do Cone Sul é contristador.
Não trepidaram eles em levar às barras dos tribunais os militares implicados em abusos aos direitos humanos. Além disso, aboliram a chamada justiça militar, cuja presença pode ser interpretada como resquício dos períodos de predomínio da farda sobre o poder civil.
Sob a proteção da polícia de choque, e com os férreos portões semicerrados, o Clube Militar julgou oportuno encenar mais uma comemoração da data da chamada Revolução, que dera início à mais longa suserania castrense em nossa história, com extensão só comparável àquela do fascismo na Itália de Benito Mussolini.
Diz bem do temperamento brasileiro que o regresso da ordem constitucional tenha sido feito sem derramamento de sangue, uma vez patenteada a geral vontade de reinstituí-la. Se o caminho até essa convicção foi marcado por sacrifícios e atos atentatórios aos direitos humanos, a pacífica concórdia posterior representa encomiável traço positivo.
No entanto, a abominação do passado não deve ser confundida com o medo de recordá-lo, como em tantos países já foi feito. As Comissões de Verdade têm surgido em muitas partes, e os seus êxitos relativos estão na razão direta da maneira aberta e altiva com que assumiram as próprias responsabilidades.
Infelizmente, tal não semelha ser o procedimento do governo Dilma Rousseff. Há inegável ironia em tal atitude. Dada a experiência de juventude da atual Presidente, nenhuma pessoa teria melhores condições de lidar com este problema. O fato de haver sido presa, torturada e condenada a terá preparado para arrostar a assombração de forma isenta e equânime, seguindo o meio termo aristotélico que é garantia de justiça.
Até o presente, a liderança civil não se tem diferençado da excessiva cautela de administrações anteriores. As hesitações parecem tantas que o quadro reflete a inversão dos papéis, com militares chegando a negar a realidade de atos atentatórios aos direitos humanos, como a ridícula encenação pelos verdugos do alegado enforcamento de Vladimir Herzog.
O Governo brasileiro deveria saudar a abertura de investigação pela OEA para apurar se houve omissão do Brasil no assassinato do jornalista, em 1975. Ao invés de falsos pruridos de soberania desrespeitada, a ocasião pode ser oportuna para encarar a verdade factual, e não mais conviver com mistificações que pela sua grosseria ofendem o sentido comum de qualquer cidadão.
Não são só os políticos que parecem repetir comportamentos de épocas pretéritas. O próprio Supremo Tribunal Federal não titubeou em emitir sentença – por sorte não unânime – que está na contra-mão do direito internacional humanitário, eis que já é jurisprudência das principais cortes mundiais que a tortura não é passível de anistia, pelo seu caráter atentatório contra os direitos humanos. Continuamos nós a viver em uma ordem de antanho, que não quer ver e admitir a civilizada conscientização de que tal crime é imprescritível.
O político brasileiro tem de assumir postura justa e altiva, conforme ao mandato popular que lhe fundamenta a visão, de retirar toda essa carregação de panos e mangas que só contribui para entorpecer-lhe um comportamento autenticamente republicano.
Vamos pôr a nossa democracia em dia, cumprindo o dever de casa que, para sua honra, os nossos vizinhos já desde muito empreenderam.
A Presidente Dilma, com o conhecimento que dispõe na matéria, não carece mais de perguntar aos notáveis da República por indicações para a Comissão da Verdade. Estou certo de que ela tem na ponta da língua os nomes de que os brasileiros se lembrarão com orgulho no futuro, como os sul-africanos quando de sua comissão, confiada ao Bispo Desmond Tutu. A urgência da questão exige que se proceda à nomeação e pronta entrada em funções da Comissão. A indefinida postergação só tende a ser interpretada como fraqueza.
E quanto à OEA, é mais do que hora de aproveitar o bom ensejo, e completar o trabalho da reinserção completa e sem omissões na avaliação do passado. Quem o mete em socavões ou debaixo do tapete, está condenado a padecer-lhe não só os efeitos, mas as atrevidas negativas de almas penadas que semelham viver sob plúmbeas ilusões de realidade desde muito superada.
( Fonte: O Globo )
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