O levante sírio já completa um ano, há pelo menos oito mil mortos, e a luta continua a alargar-se. Em país de 22 milhões de habitantes, a ditadura de Bashar al-Assad se baseia sobre um núcleo duro de cerca 5 milhões e quinhentos mil, formado por duas minorias – a alauíta e a cristã. Antes do advento do pai Hafez al-Assad, em 1970, os alauítas – uma seita do xiismo – constituíam uma espécie de pária nessa antiga terra de passagem entre ocidente e oriente.
Sob a dinastia dos Assad, esta religião que abraça muitas crenças se tornou aquela do poder. Houve inegável ascenso social dos alauítas, sobretudo no comando das forças armadas e nos quadros do Estado. Em país de maioria sunita, a tolerância religiosa, dentro de um matizado laicismo, se tornou a regra e prevalece a liberdade de culto. Nesse sentido, tendo presente o que acontece no Iraque – em que a comunidade cristã-caldaica passou a ser perseguida pela maioria xiita – e no Egito, onde a relevante minoria copta tem os templos e os fiéis atacados pelos sunitas, a importante minoria cristã não aderiu à sublevação iniciada em Deraa, na fronteira sul com a Jordânia.
A tirania dos Assad, fundada em seita minoritária, mostra tolerância religiosa que não é a regra no mundo árabe. Por isso, tementes da incógnita do poder da maioria sunita, os cristãos se apegam ao conhecido, cujos defeitos decerto não ignoram, mas que compõe atmosfera de convivência civil, desde que admitidas as travas do sistema dos Assad.
O reino dos Assad de uma certa forma recorda o princípio cuius regio eius religio que para compor as guerras de religião do século dezesseis dispunha que cada região teria o credo do seu respectivo príncipe. Na verdade, o poder dos Assad não impõe uma religião determinada, mas ao aplicar a tolerância para todas as denominações cria ambiente de convivência social. Instigada pela primavera árabe, a sublevação contra os Assad se funda em motivações políticas. Aí está a sua força, que a brutalidade da repressão só contribuíu para acirrar.
Por não se tratar de país periférico, em que a mudança estrutural teria poucas consequências – como, v.g., o Iêmen – muitos poderes se empenham em intervir na sorte desse conflito. Contrapõem-se, de um lado os atuais aliados de Assad – o Irã e o Iraque – e que motivam a intervenção da Arábia Saudita e do Qatar (os quais desejam golpear estes seus adversários). Por outro lado, a Síria alauíta dá guarida ao Hezbollah e ao Hamas (ao ensejar que a ajuda iraniana chegue a tais organizações). No que tange à Turquia de Recip Erdogan, o seu temor de uma crise humanitária pode levá-la a passar da retórica anti-Assad, a medidas mais específicas e danosas para o regime alauíta.
Quanto à Rússia, o seu determinante apoio a Damasco (inviabiliza pelo veto a intervenção do Conselho de Segurança) se fundamenta em intercâmbio com Assad e na cessão pela Síria da base naval em Tartus no Mediterrâneo para a esquadra russa (a única com utilização para todo o ano, livre dos gelos do Ártico).
São igualmente óbvias as motivações do Ocidente. Por um enredo de sanções específicas têm criado entraves econômico-financeiros e agravado os já fortes empecilhos para a atuação e a sustentação do governo de Assad.
Kofi Annan, como mediador das Nações Unidas e da Liga Árabe, tem, de uma parte um mandato capenga, porque o seu alcance depende do Conselho de Segurança (e as limitações neste órgão máximo das Nações Unidas são políticas e assaz conhecidas), mas de outra parte, dispõe de estatura e habilidade que pode levá-lo mais longe do que as condenações inócuas de seu chefe Ban Ki-moon. Ao entrar este mediador em campo, Assad se defrontará com personalidade bastante diversa das que integravam a inexperiente e ineficaz missão de observação da Liga Árabe.
Existe uma clara e nítida faixa de atuação para o ex-Secretário-Geral das Nações Unidas. Ele já teve duas rodadas de negociação com o Presidente sírio. De certo, com base em acordos tópicos, está sendo mandada para a capital síria uma equipe técnica para discutir com as autoridades acerca do conflito. Nesse sentido, Annan advertiu que ‘haverá um impacto sério para toda a região se o contencioso não for tratado de forma adequada’.
Kofi Annan se mantém em contato com o Conselho de Segurança por ligações diretas atráves de conferências de video. Em Idlib, o assédio à cidade tem provocado correntes de migração para a Turquia. Na capital Damasco,houve explosões atingindo diversos prédios, e há choques entre tropas oficiais e grupos de rebeldes (formados por defecção das fileiras do exército) nos subúrbios de Qatana, Dumair e Tal.
( Fontes: Folha de S. Paulo, International Herald Tribune )
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