O problema militar no Brasil não é fenômeno recente, como análise, mesmo perfunctória, de nossa história, pode demonstrá-lo. A partir da chamada proclamação da república, o que na essência foi um golpe militar, de que participaram alguns civis, o exército se arvorou em mentor do regime. Por isso, muitas décadas depois, os anos de chumbo da Redentora devem ser vistos como a culminação de um processo, e não algo isolado, sem relação com a situação socio-política.
Após inúmeras intervenções pontuais, muita vez instigadas pelas conhecidas vivandeiras, a instituição armada optaria em 1964 por um novo esquema, em que, com apoio de políticos de direita, se apropriaria do poder em caráter permanente, abandonando o paradigma anterior, no qual, uma vez deposta a autoridade paisana contestada, o exército voltava para a caserna.Até no caso de 1964, em que se configura a assunção sem intermediários do poder, o golpismo cuidou de revestir-se do veludo das instituições civis. Com efeito, o general Humberto de Alencar Castelo Branco seria eleito pelo Congresso, em pleito disputado com o ex-presidente e Marechal Eurico Gaspar Dutra. Não há negar que o congresso - já maculado pelas primeiras cassações – sufragou, no entanto, livremente Castelo Branco, que foi de resto apadrinhado por Juscelino Kubitschek, em lamentável erro político de que não tardaria em pagar amargo preço.
Excetuados os dois presidentes militares dos primórdios da República, e a despeito dos pronunciamientos havidos, todos os demais presidentes, mesmo os fardados, tinham sido devida e constitucionalmente eleitos. Com a revolução de 31 de março encetou-se novo processo, com eleições indiretas de generais candidatos, indicados pela respectiva hierarquia, com muitas semelhanças ao sistema do Partido Revolucionário Institucional mexicano.
O esvaziamento da ditadura castrense correspondeu aos novos ventos democráticos, e não aconteceu sem lutas. Depois da longa noite na América do Sul, em que apenas dois países – Colômbia e Venezuela – tinham governos civis e democráticos,os anos oitenta assistiram à restauração da democracia.
Se no Brasil o desprestígio do regime chegara ao ponto de o titular sair pela porta dos fundos, a deusa Fortuna seria madrasta com o poder civil, eis que a Nova República, para a qual fora eleito Tancredo Neves cairia inesperadamente no colo do Vice-Presidente José Sarney, antes chefe do PDS, o último avatar dos partidos políticos ditos revolucionários.
Em nosso país, não houve a cesura que ocorreria na Argentina, no Uruguai, e mais tarde, até no Chile. A soberania do poder civil foi assumida de forma cautelosa e envergonhada, com a Constituição de 1988 mantendo a justiça militar, e sem as medidas de corte radical com a política anterior, como implementadas, com determinação e coragem, pelo governo Raul Alfonsin, na Argentina.
Nesse sentido, o laborioso parto do Ministério da Defesa, em tortuoso itinerário seguido pelo governo Fernando Henrique, é um bom indicativo da errônea postura do autoridade política civil, que optou por negociar a criação desse ministério. Dentro de governo civil autêntico, o ministério da defesa não é só um cartão de visitas para inglês ver, mas constitui uma das pedras basilares da democracia.
A autoridade do poder civil não é uma ficção consentida pelo estamento militar, mas a reificação da vontade da Nação, como consubstanciada em eleições livres, sob a égide da Carta magna. No final do século XX, mais do que surpreende, confrange que essa cumieira do regime democrático haja sido negociada em cauteloso processo.
Ao contrário de nossos irmãos do cone sul, o nosso estamento político tem o hábito de tratar com deferente prudência as forças armadas, atribuindo implicitamente a tais corporações uma autoridade que não está inscrita em nenhuma ordenação.
Nunca é tarde para que se proceda a uma mudança de atitude, e ela deve partir da classe política. Altanaria não se confunde com falta de respeito. O político brasileiro que, por força do cargo, tenha autoridade sobre os militares, deve mirar-se no exemplo de Epitácio Pessoa. Este foi o único presidente que reeditou o que no Império constituía a regra e não a exceção. Epitácio nomeou para os ministérios da Guerra e da Marinha, com serena firmeza, não obstante as instantes visitas de delegações castrenses, dois civis, Pandiá Calógeras e Raul Soares de Moura, que muito bem se desempenharam das respectivas funções.
Como os tempos atuais o evidenciam, as forças armadas estão a serviço do poder civil. Não servem a ditadores e/ou caudilhos, mas a representantes da Nação, para tanto eleitos (como no caso do(a) Presidente), ou designados (a exemplo do Ministro da Defesa). E o livro a que obedecem não é nenhuma cartilha, mas a Constituição.
Se não poucos dos presentes vezos e trepidações da autoridade civil se devam a uma falta de afirmação de o que constitui a sua intrínseca responsabilidade – e, portanto, boa parcela da referida questão militar mais decorra do deficiente entendimento da extensão da própria autoridade -, não se deve descurar – como semelha ser o caso – a orientação que deva presidir à formação castrense.
A esse propósito, afigura-se muito oportuno recordar a iniciativa adotada pelo legislador alemão, ao cabo da desastrosa derrota, sofrida pela Wehrmacht nazista. Ninguém discute a capacidade bélica do soldado germânico, que excele a todos no particular. Sucedida pela Bundeswehr, tratou a nova liderança civil que não fosse apenas mera mudança de denominação. Dessarte, dentre as disciplinas a serem inculcadas no militar democrata, estava aquela que dispunha sobre a Innere Führung
(liderança interior). É complexa concepção que preside à missão do soldado como um cidadão em uniforme.
Já a partir da Academia das Agulhas Negras, o cadete deve ter presente a duplicidade do seu papel. Ele não é um janízaro, ou membro de uma casta. Para isso, a doutrina da liderança interior é deveras oportuna, ao associar os dois conceitos de soldado e de cidadão. Não integra um poder armado. Como cidadão uniformizado, ele porta armas, em defesa da Nação e de sua Constituição democrática.
Para que melhor se equacione a posição do poder civil no Brasil, a par do exemplo fraternal das nações do Cone Sul, não se deve perder de vista o exemplo das Forças Armadas alemãs, assim como a predominância da autoridade civil, como um dos fundamentos da democracia estadunidense, na direção das diferentes Armas (services) do estamento militar da Superpotência.
Na sua coluna “O tempo de agir”, da quinta-feira, oito de março corrente, na Folha, o jornalista Janio de Freitas discorreu sobre um dos dilemas da Comissão da Verdade: seria melhor compor e entregar a comissão à atividade, logo que tornada lei, ou usar o largo prazo de 180 dias para compô-la, contando em enfraquecer com o tempo e a persuasão as reações dos temerosos ou contrários à veracidade histórica?
As reações corporativas de militares da reserva enchem as colunas dos jornais com palavras vãs e ridículos despautérios – é duplamente indébita a apropriação do brado de guerra ‘No pasarán!’ – além de afirmações atrevidas (ou cínicas, como sugerido na imprensa) de alguém, com patente de general, que disse para a entrevistadora Miriam Leitão “ninguém pode dizer que ele (Herzog) foi morto pelos agentes do Estado. Nisso há controvérsias.”
Não é mais tempo de contemporização. Não creio que se devera esperar, ao invés de tornar a Comissão da Verdade uma corpórea realidade, integrada por cidadãos e cidadãs, que se ponha literalmente em campo, seja no Araguaia, seja nos porões da ditadura, para com trabalho sério e aturado calar toda essa zoeira de impropérios.
Aqui não se trata de revanchismo. Ninguém tem maior experiência deste tema que a Senhora Presidente. Quanto mais negaças se fizerem, quanto mais se procrastine a abertura dos trabalhos, só se contribui para lançar mais lenha nesta fornalha infernal, que parece querer incinerar, em plena democracia, a busca da verdade.
É hora de passar a limpo a democracia brasileira. Respeitemos os seus próceres e os seus mártires. E basta de titubeios.
(Fontes: Folha de S.Paulo, O Globo)
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