Em Copacabana, entre o calçadão na praia e o passeio junto aos edifícios da avenida Atlântica, prefere esse último. Há rodas por toda a parte, muitas delas na areia, arranjando lugar ou preparando oferendas para Iemanjá. Já nas calçadas dos prédios, com o policiamento, desapareceram as chusmas de mendigos, pivetes e sem-teto. Por isso, ele aí entrevê a bonomia antiga de bairro. Os bares estão cheios de fregueses diferentes, muitos turistas e gente de outras bandas.
Sem a pressa de antes, ele vai passando em revista botecos, bares, restaurantes e até cabarés. Avança devagar como se diante dele rolasse o rangente carretel de filme de época. Amiúde, às cenas prosaicas do presente se sucedem na sua mente as imagens apagadas dos tempos da nostalgia. Ao invés do restaurante chinfrim e decadente, ele vislumbra o recinto bem-cuidado, as caprichadas toalhas das mesas bem-postas, os simpáticos garçons que reconhecem o freguês vindo de longe, e a ocasião feliz do almoço de camarão à baiana na companhia do tio. Mas não se detém. Mais alguns passos, e outras vistas risonhas se desenrolam. Não as distingue de imediato porém. Diante de si espaço anônimo recoberto por opacas, azuladas vidraças. Se por um instante hesita, não tarda em rever as brancas mesinhas, tomadas pela alegre juventude, sob a brisa que vem do mar ali perto. Por vezes entrecorta a toada dos moços a arrebentação que a pista única da avenida mal separa. Na noite do agora se lhe depara prédio que sofreu com os anos. As luzes feéricas, cheias de esperança, o tempo gastou. Quase de fininho, como que encabulado, ele se resigna a levar consigo bulício de mocinhas e rapazes que não mais ecoa em lugar nenhum. O quadro lhe acende os olhos, que refletem vivências de há muito enfurnadas nos socavões da memória. Com sorriso que à transeunte pode parecer esgar segue em frente. Deixa para trás o posto cinco, antes fortim intrépido a guardar angusta e ameaçada faixa de areia, hoje deslocado para anódina posição, na monotonia de uma praia aterrada. Atravessa a Djalma Ulrich, o ponto de retorno no treinamento das corridas de meio fundo. Desde muito o homem, na sua soberba para com mãe-natureza, mudara a paisagem. Franze testa e pupilas, mas não consegue perscrutar o que antes havia. Do esforço, desencava a frase entreouvida: espere até que ele a tome de volta! Sem olhar para relógio, preocupa-se em ser uma espécie de cronomensor. A sextante do pai sempre a admirara com as vistas deferentes da ignorância. Talvez a travessia servisse para cotejar as fotos passadas com os estragos, as cicatrizes e o progresso de acordo com a própria visão. Lembra-se do fotógrafo Atget e de sua ânsia de retratar velhas casas, lojas, armazéns e depósitos que sentia próximos da marreta da demolição. Ao percorrer os postos quatro e três, vê nas grades e nos enormes gradis a confissão da prevalente insegurança. Dada a época das construções, sob o signo do mútuo respeito e da pacífica convivência, as proteções hodiernas implicam em tempos mudados, nos quais a violência veio substituir a antiga tranquilidade. No súbito alçar de mão e antebraço em típico movimento de quem busca afastar imaginária contestação – e que mereceu a estranheza de passante – ele se dizia não ignorar o ceticismo atual sobre os plácidos bons tempos de antigamente. Para mostrar o escasso peso relativo de tais objeções, lhe bastaria não só comparar as residências de ontem e de hoje, mas também projetar as longas, noturnas caminhadas em ruas desertas que no presente seriam convite a assaltos ou cousa pior. Ora adentra área cinzenta, em que há pálidas referências de contatos menos frequentes. Passa pelo Bolero, antigo cabaré que pela má-fama perdera o nome. Mais adiante, o hotel Excelsior aonde o padrinho o levava rapaz para almoçar. Bem perto, as lembranças revivem. Primeiro as idas à obra do Chopin na companhia da tia. Depois, as visitas através dos anos ao apartamento, em almoços e jantares, figurante em cenários de poder. Ao lado, a Pérgula com um caleidoscópio de breves cenas de personagens efêmeros na rota do casal em ascensão. Também a piscina, os salões, as escadarias, os largos corredores e os quartos com vista para o mar. No vasto quarteirão, a presença quase centenária do hotel, com os seus anexos. Há ajuntamentos por toda parte de gente que chega. Nos ombros, o cansaço do andarilho. Movido pela busca do passado, presta espasmódica atenção à montante expectativa de mais uma simbólica data. Resta-lhe algum tempo. Na praça do Lido, costura cenas de menino. Mais além, na quase esquina da Princesa Isabel, a desaparecida sombra de prédio vítima da especulação imobiliária. Ali reverá fugaz interlúdio de luzes alumbrantes, e empós a inanidade da treva. Por isso, em passos espertos pisa no Leme, bairro de infância e meninice. Na Antonio Vieira, o prédio de esquina, com o primeiro apartamento na progressão dos tios. Embaixo, o restaurante, hoje descaracterizado, e imagens desfocadas da deslembrança. No fim de linha do bairro, não sente latejar a antiga animação. Mesmo ao avizinhar-se a hora – faltam cerca de quinze minutos - há muito menos gente a postar-se no calçadão e na faixa de areia atalhada pela montanha. Chegado ao ponto terminal, faz brusca meia-volta. Lembra-se de que cruzara por ali perto lugar que lhe pareceu diferente da pasmice dos demais bares e restaurantes do bairro. Como o mágico prazo segue encolhendo, ele amiuda o passo. De alheia, a urgência vai ficando sua. Por que, não sabe. Agora, tem dez minutos. A ansiedade aumenta. Rever o lugar quando a hora soar. Continua sem atinar a razão. Que disparate. Mergulhar no Ano Novo na companhia de estranhos... Pera aí ! Está na rua, sozinho, e nem precisa olhar pro relógio. A contagem regressiva já o acompanha. Faltam quatro minutos. Pela pressa, na angústia de não reencontrar o que busca, a respiração se acelera. Será o estirão que pesa, ou é o temor de não conseguir cumprir a estranha tarefa ? Por onde anda esse maldito restaurante ? Ao certo, ignora o que procura no lugar. Faltam três minutos. O quê procura afinal, um talismã ? Sente o desânimo do esforço perdido. Na afobação, lhe terá escapado ? Dada a atenção, não pode ser. É impossível. Mas será mesmo ? Acha esquisito que não tope com o local... Guarda a sensação de que não está tão longe assim. Faltam dois minutos. Será que os olhos esgazeados passaram pelas vidraças e não enxergaram a visão prometida ? De repente, o semblante se descontrai e se ilumina. Tangido pela absurda premência, tropeça no quadro que antes vira sem quase notar. Ei-lo enfim de volta. Não mais precisa revisitar na imaginação o que antes olhara com displicência. Lá está o local que ressurgira na sua visão cansada do Leme. Da calçada, como um basbaque, os seus olhos passeiam pelas mesas agora alvorotadas na ritual espera pessoal pelo bater do relógio coletivo da vida. Ali postado, de fora, sente ímpetos de penetrar na festa em que público e privado se dão as mãos. Não mais questiona a própria mudança de atitude. Não foi à toa que caminhara ao longo de toda a avenida Atlântica, perseguido pela imagem de não ser que desgarrado, intruso, na festança dos outros. Falta um minuto. Entra noutra contagem regressiva, em que se misturam imediatismo e sensação de finalidade. Na sequência dos segundos, levado por vibrações que lhe fogem ao entendimento, a sua atenção vai topar em mesa lateral onde solitária mulher parece fitá-lo com a intensidade das intermináveis esperas. Num relance, ele ingressa no restaurante. Em meio à expectativa, bulício, algazarra e confusão da hora ansiada, ela o recebe com a entrega reservada aos que retornam de longas ausências. “Faz tempo que te espero.” Incrédulo com o que acaba de acontecer, o seu olhar trai a inquietude que o assalta. “Estava escrito.” Não atina por que as palavras não lhe soam absurdas, ridículas. Algo o faz aceitar as estranhas frases. Turbado, só se pergunta se não terá sido vítima de sortilégio hipnótico ou o que valha. Passado o arrebatamento do mágico instante, ele nada vê no rosto enrugado que justifique a súbita atração. Tenta disfarçar o embaraço, mas sem muito jeito. Chamando-lhe pelo nome, ela atalha a incipiente reação. “As aparências enganam, meu caro.” Confuso, sem saber como lidar com a situação, ele evita encará-la. “Deixa de bobagens. Quero que me fites de novo.” Para sua surpresa, tem diante dele o belo semblante que o encantara. Lendo o seu espanto, ela lhe sussurra: “Estás vendo ? Não mereci aquele beijo ?” Envergonhado, ele baixa a vista. “Não posso negar, és encabulado mesmo.” Passados alguns momentos, a mão dela pousa sobre a sua. “Não tenho muito tempo, por isso presta atenção.” Olha à volta. Tinha a impressão de que vez por outra os demais convivas o espiam com desconfiança. Como se houvesse qualquer coisa de esquisito com ele. “Não dá importância a essa gente. Eles não me enxergam.” Por mais que apele para o enraizado agnosticismo, as evidências não lhe permitem duvidar. “Os anos te estão caindo mal. Vou remediar a tua solidão.” Percebendo a descrença, acrescenta: “Não te peço que acredites. A experiência se encarregará disso. Só quero que me obedeças. Não me parece que estejas gostando da tua vida afetiva...” “ Que vida afetiva é esta ?!...” exclama, surpreso. “Logo terás, meu amor de primeiro de ano. Com uma única condição, porém.” Voltou a levantar os olhos, e a se embevecer com a visão da mulher que beijara com o ardor do reencontro. “Toda mulher que desejares, ela te verá com o encanto da juventude. E corresponderá às tuas emoções e sentimentos. Terás, contudo, de respeitar a regra de nunca olhares o teu rosto em espelho.” Ao ouvir o poder que lhe era dado, não consegue dissimular a incredulidade. “O teu ceticismo não me incomoda. Já o esperava. Só peço que não te esqueças: jamais te olhes num espelho.” E antes que se dê conta, está sozinho na mesa. * *
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