quarta-feira, 14 de março de 2012

CIDADE NUA V

O Espelho Mágico

        Em meio a todas aquelas pessoas,  está sozinho. Lembra-se do tempo em que se punha animado nesse gênero de data. Na verdade, prefere nem contar quantos anos tinham passado. Agora tais ocasiões o deprimem.
        Do apartamento, lhe chegou o barulho que faziam. Talvez tenha sido a causa da  ideia que depois lhe pareceu insensata, um tanto sem pé nem cabeça. Como poderia pensar que descer para a rua, andar até a praia e meter-se no calçadão o livraria da sensação que pesa sobre ele ?
       Aquilo era tão irracional, como se buscasse fugir de qualquer coisa que fosse maior do que ele. A fuga para a frente, para o desconhecido. Recorda-se, então, de  imagem da infância. Menino, procura segurar o totó, que vem de ser atropelado. Num relance,ganindo, o cachorrinho se contorce e, de raspão, lhe morde os dedos. Tenta correr, para cair estatelado, uns poucos metros além, no asfalto quente do verão. O garoto praieiro, a quem chegam os gritos dos maiores pela imprudência na rua, contempla, sem entender, o seu companheirinho  inerte. Ficaria mais tempo ali, junto aos carros que passam e os gritos boçais dos choferes, se não fosse a ardência do chão nos pés descalços.
        Pára, por um momento. Lentamente, meneia a cabeça. Que fazer de tais lembranças? Dá de ombros e continua caminhando. A princípio, não quer prestar atenção nos grupos que passam. É difícil, no entanto. Na sua frente, rola um tipo de alegria que outros chamariam de contagiante. Ninguém se preocupa com ele, mas toda aquela excitação, todos os magotes de gente que saem não sabe bem de onde, não há jeito de fingir que tudo aquilo, de uma certa maneira, não o afete.
       O que mais o intriga, é que tudo lhe parece fora de propósito.  Afinal, ainda é bastante cedo para essa agitação. Mal assoma a hora do crepúsculo.
        Parado no meio-fio,  hesita. Resolve por fim acompanhar  o  povo que vai para as rochas do Arpoador. O dia, que amanhecera enfarruscado, só se despejara das nuvens lá pros fins da tarde. Por isso, havia poucos banhistas, e menos atropelo no calçadão de Ipanema. Há espaços, quase todos demandam o mesmo destino, assim fica fácil transitar. Muitos casais e turistas. Vê igualmente jovens, sobretudo moças, com máquina digital. À volta, distingue a turma das vizinhanças, os surfistas de plantão, para quem o pôr do sol será menos espetáculo do que pretexto para aproximação, quem sabe uma conquista.
       Mesmo para insensíveis filisteus será programa acompanhar dos balcões e galerias de pedra a indolente descida da imensa bola de fogo, com seus anéis  que rutilam entre estrias e faixas laranja-avermelhadas.  Pensa nos milênios que lhe marcam a apresentação no imutável cenário,  a falsa morosidade, diante das vistas de público sempre alegre e transitório, à medida que se arria  nas profundezas  do mar oceano, na moldura dos Dois Irmãos e Vidigal.
       Chegado ao Arpoador, muda várias vezes de lugar. Não é que os pontos o desagradem, mas o irrita o enturmamento dos que estão à sua roda.  Seria como se a irrequietude lhe disfarçasse o isolamento. Na verdade, ninguém se dá conta dele e não tarda em convencer-se disso. Termina por sentar-se quase no cimo de uma rocha, cujo suave declive lhe oferece rasgo privilegiado da paisagem.
       Embora as cogitações estejam longe de o que motiva a gente a mexer-se lá embaixo, em busca de espaços mais favoráveis para melhores fotos, a sua imóvel postura não traduz, em realidade, o menor interesse pelo fenômeno.
        Refletir sobre a inanidade das impressões humanas tampouco se lhe afigura de grande serventia para distraí-lo do incômodo que sente, ao descobrir-se desgarrado e só.  No ajuntamento ocasional de tantas pessoas naquela área determinada, não tem dúvida de que inúmeras sequer se conheciam no princípio da tarde. Agora exibem a serena tranquilidade de quem encontrou parceiro para a noitada. E tampouco contesta a probabilidade de que outros pares se formarão, com a naturalidade que a hora impõe.
        Haverá romance nessas conjunções ?  Entre busca de novidade e a força inercial do momento, quiçá o mais provável seja a soma desses dois fatores. No seu entender, para participar plenamente dessa festa multitudinária, existe apenas um requisito. Ser jovem e ter aparência condizente com as próprias veleidades. Os ingressos, como as oportunidades, podem variar exponencialmente. Ao sucesso de uns e malogro de outros, se pode até dizer  que preside a fortuna ou o acaso, mas não se deve jamais esquecer nesse mítico campo onde tudo é possível, inclusive a felicidade em noite encantada, que a bem-sucedida união há de sempre carecer daquele singelo requisito.
       Nesse contexto, pelo ímpeto e a quantidade, logo tem presentes as jovens interioranas que correm como lemingues ao encontro de realizações sentimentais. Na secura da banalidade de roteiro turístico, a tentativa de experiências motivantes de sonhados relacionamentos. Será cabível, nos dias que correm, imaginar como nos enredos dos romances rosa a dicotomia entre interior  e cidade grande ? Responderia que sim, se o primeiro significa o controle social e o segundo, mercado de ilusões.                             
        Não se detinha, porém, nesses retratos padrão.  Fazia tempo que o Rio de Janeiro deixara de ser a capital do Brasil, mas como outros soberanos depostos, guardara aspectos da antiga majestade. As atrações não podem cingir-se ao velho contraste de metrópole e interior. Há modulações nesse tema que admitem outras composições pelo atrativo das diferenças. Os que passam pelos lugares e neles entreveem tais relações como obrigações a serem cumpridas. 
        Que tal encarar aquela oportunidade como mais uma escala no caminho do Ano Novo ?
        Nesse momento, algo estalou na sua mente. Lá longe, a grande atração já desaparecera. No Arpoador e seus camarotes de pedra, o povo tinha sumido. Seria o caso de perguntar-se  E agora ? O poeta fala de outras coisas que ainda existiam. De qualquer forma, ele se sente fora do lugar, descolocado.
        De repente, se descobriu desajustado, insatisfeito consigo mesmo. Teoriza demais. De que lhe serve todo esse discurso ? Saíra do apê para andar. Qual a razão de se meter ali, na retaguarda de tanta gente estranha, como  cachorro abandonado, que se põe a seguir desconhecidos, quiçá na esperança de que o acolham na sua casa. Se o caminhar sozinho na multidão ou atrás das turmas e dos casalzinhos pode parecer patético, não o será mais afivelar-se esta postura de mendicante espera ?
        Devagar, desce a pedra. Chegado ao passeio, vê além das fundações da casa na arrebentação da praia do diabo, dois ou três vultos nas correntes do mar aberto. Na dança das ondas, que o lusco-fusco ensombrece, mal consegue divisá-los. São doidos, mas pelo menos sabem o que fazem... Por isso, com olhar comprido, tenta acompanhá-los.
        De chofre, ele os perde de vista. Então pensa que antes estava certo. E retoma a caminhada.

                                                  *      *     

        Pelo espremido, quase inexistente quarteirão do Arpoador, passa pela  pracinha, abrigo de pivetes e corredores, mas enjeita o atalho e vai em frente, ao longo dos edifícios que contemplam, entre desconfiados e resignados, as vagas não tão longínquas do mar volúvel, que às vezes se compraz em mostrar os frágeis arrimos dos postos de salvamento, como quem, com um tirão, arranca a minissaia de garota de programa.
        No pavimento irregular, mal-iluminado,  de paralelepípedos,  chega ao hotel, que se derrama confiado sobre o passeio. A invasão do público pelo privado não o espanta. Não é somente naquela estreita faixa que o comércio avança no espaço do transeunte.
        É hora de estugar o passo. Atravessa a cancela, dá as costas a Ipanema e desce a Francisco Otaviano, engrossando a corrente que vai para Copacabana.  
       Por ora, os gritos são poucos, enquanto a animação geral os empurra para as areias do Forte. Encontra gente que sobraça garrafas de bebida, mas lhe fica a impressão de que o entusiasmo já o trouxeram de  casa. Não depara por enquanto a postiça exultação que o alcool carrega consigo, algariando quem o consome, para depois arrojá-lo na montanha russa das fabricadas emoções.
        Os dissabores e o mal-estar da experiência quando jovem  o vacinaram  contra a bebida. Não enjeitava um gole aqui e ali, porém fugia dos excessos com crispações de gato escaldado. Para os que estranhavam a postura, dizia não alimentar  moralismos. E, sem dar-se conta da contradição,  acrescentava para quem quisesse ouvi-lo que ele não temia os vendedores de ilusão, mas sim os falsos presentes que distribuíam.
        Na verdade, devia gostar daquela frase. Pois costumava repetí-la, sem perceber a zombaria nos entreolhares de sua roda.
                                                 *      *

       Vai adiante. Caminha ligeiro como alguém que pretenda chegar em alguma parte. Passando por tanta gente, a solidão recomeça, no entanto, a pesar. Dentro dele, sabe que não tem  destino determinado,  ponto de encontro  aonde uma pessoa, um amigo o espere.
       De que vale a desenvoltura no andar e a quem se propõe enganar com o ar resoluto, quase impaciente, pelo qual julga distinguir-se de toda a caudal humana que o circunda ? Não vá imaginar que os outros estejam prestando atenção nele. Se não fosse maluco, só um cretino poderia conjuminar tal cenário. Ou então estaria em marcha batida para  hospícios que não mais existem, engolfado nos costumeiros delírios de grandeza.
        Em não sendo assim, o jeito era reconhecer a besteira que fizera, lançando-se à louca por avenidas, ruas e calçadas tomadas pelo turbilhão das vibrações no simbolismo da data. Cogitava acaso topar com algum conhecido em meio àquela confusão ? Confiar em tais coincidências nunca fora de seu feitio, por não ignorar que as possibilidades seriam mínimas, equivalentes quase a ganhar sozinho na mega-sena. Sobretudo se envereda por itinerário que não passa pelos poucos pontos onde terá chance de topar com ex-colegas...
        E para dizer tudo, fazia sentido sair do apartamento sem sequer tentar nenhum telefonema, quem sabe combinar algo, ou saber de programa alheio a que pudesse agregar-se ?
        De olhos esgazeados se embarafusta na multidão. Cada vez mais se distancia de suas esquinas. Francamente, não atina com a finalidade do projeto. O que realmente  quer ? Ter a solitude como única e aborrecida companheira?    
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                                                 *      *

        Há muito que o pôr do sol ficara para trás. A noite veio anunciada. Em cada travessa, dir-se-á que lhe vêm ao encontro montões de gente. No entanto, não fosse pelo branco nas camisetas, blusas, jeans, calças e shorts, nota muitas diferenças nos casais, bandos e grupelhos que descem dos terminais de ônibus ou saem de ruas e avenidas na direção da praia de Copacabana.
         Como falta muito para a grande festa, pares, rodas e  grupos não obedecem aos mesmo ritmos e rumos. Por enquanto, nenhuma impressão de ordenada marcha para  destino comum. Só quando dos ponteiros do relógio se assenhoreia a urgência da hora próxima se funde, não se sabe de onde, a corrente dos largos passos a arremeter, com afobada impaciência, para o enorme anfiteatro de Copacabana, já lotado nas curiosas janelas e sacadas que lhe circundam, no calçadão e nas areias atopetados de todos aqueles que pelo fato de existirem são portadores da entrada para o feérico ritual do Ano Novo. Tudo isso sem falar dos engalanados navios de cruzeiro, a imitar com seus milhares de passageiros, os apinhados poleiros clandestinos  nas cercanias dos campos de futebol. 
         Por que se preocupa com esse povaréu ? As calçadas estão cheias, mas não sente nenhuma urgência, nem o afluxo maciço que preceda a meia-noite. E de que jeito poderia haver, se tanto tempo precisa passar  até que se aproxime da multidão  aquela atmosfera de contagem regressiva que a todos promete participar na geral celebração do mágico momento.
        Onde estará nessa hora,  só Deus sabe...

                                                  *      *  
                                                                                                               ( Continua )

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