A Época da Ambição
O livro de Evan
Osnos é o resultado de oito anos de vida e reportagem na China. O seu
título “Idade da Ambição – atrás da Fortuna, Verdade, e Fé na Nova China” pode
dar ao leitor a idéia de que se trata de mais um manual sobre as últimas
décadas do experimento China.
A princípio se
tem a impressão de visão um tanto pedestre da China pós-Tiananmen. Mas a narrativa cresce, levada pela amplitude da
observação de Osnos, e o leitor vai aos poucos penetrando no dia-a-dia chinês,
conduzido pelo conhecimento do do idioma
pelo autor, e da consequente possibilidade de acesso a espaços que em geral
estão cerrados ou inacessíveis ao observador estrangeiro que desconheça a
língua, tanto falada quanto escrita, do Império do Meio (essa expressão não é
mencionada pelo autor).
Mas por abrir
mais portas que se poderia esperar de correspondente ocidental, a visão se vai
esgueirando por espaços diversos, e o quebra-cabeças irá crescendo, com imagens
que nos aproximam muito mais do estranho regime chinês, em que a contestação
explode na internet, dentro de
espaços demarcados, mas com a pimenta de oposicionismo que vai até o limite do
abismo, o qual como todo báratro só pode ser atravessado uma vez, até que o
contestador diga o que não pode ser dito.
Há vários tipos
de dissidente na China, a começar pelos nacionalistas de direita Han Han e Tang Jie, passando pela jornalista Hu Shuli que trafega nas aléias do mercado e das grandes empresas,
e o mais vilipendiado deles será Liu Xiaobo, o único Prêmio Nobel do
mundo de hoje (pois os nazistas já tinham criado esse espécimen com Carl
von Ossietzky) presidiário na afastada Penitenciária de Jinzhou, na
província de Liaoning. Sua esposa, Liu
Xia, pôde visita-lo, a dois dias da cadeira vazia em Oslo, e por isso está
em prisão domiciliar desde então. Ela teve cortado o telefone e a internet, e a
única pessoa autorizada a contactá-la seria sua mãe.
O julgamento
de Liu Xiaobo também foi nazista na sua brevidade. Liu teve direito a catorze
minutos de intervenção, eis que o juiz lhe cortou a fala pelo meio, sob o
estranho argumento de que o promotor só utilizara catorze minutos (tal
despautério nunca fora antes empregado). O discurso de Liu termina com uma
frase que pode ser pressaga: ‘Espero que eu seja a última vítima nos longos
anais da China de tratar palavras como crimes’.
O que
assustou o regime foi a simplicidade da proposta constitucional de Liu Xiaobo e
sua conexão com a Carta 88, de Havel,
e a revolução de veludo.
Condenado a
onze anos, em condições duras – pelo que se sabe, as prisões chinesas não
diferem muito das dos cárceres brasileiros, consoante referidas pela famosa
observação do Ministro da Justiça do Brasil, José Eduardo Cardozo – a
periculosidade de Liu para o regime se reflete na singeleza do sistema
constitucional proposto.
Como toda
ditadura, tem pés de barro. O temor que evidenciou com a Primavera Árabe aflora
o ridículo, que está transcrito nas paranoicas instruções dos censores para os
correspondentes em Beijing (chegaram ao ponto de proibir a venda de jasmim, por
sua conexão com o herói Buazizi e a
revolução tunisiana).
Osnos nos proporciona ótimas narrativas, por vezes até
hilariantes, para reportar a criatividade do internauta, forçado a navegar
entre tantos Silas e Caribdes da Censura Oficial. É existência atribulada a do censor chinês,
pela sua luta inglória contra os buscapés da sátira dos dissidentes chineses. O
cinismo do oficialismo não persegue apenas ao pintor Ai Weiwei, mas também às miríades de dissidentes como o advogado
cego Chen Guangcheng. O seu principal
‘crime’ era o de defender os lavradores contra os abusos dos potentados locais.
Sua incrível
fuga – sendo cego e cercado por esquema
hostil – diz muito sobre a força do próprio ego, na batalha contra um esquema
de repressão que no seu caso – por
cálculo aproximativo de Chen implicava no gasto do equivalente a milhões
de dólares – acabou por conduzi-lo ao asilo em Consulado americano, e a
posterior travessia para os Estados Unidos, em New York.
Como há de
intuir o leitor, é muito interessante e variada a sua descrição da China atual.
Outro ponto relevante, está na amplitude da corrupção no Império do Meio, que do Partido para baixo atinge todas as camadas
da população. A esse respeito, é importante recordar que Zhao Ziyang[1]
punha muita fé – quiçá demasiada – na importância da democracia para combater
os ‘mal feitos’. O Secretário-Geral do Partido contava com a liberalização para
inviabilizar ou dificultar a corrupção, como aquela que determinaria o desastre
do trem-bala D301, em viagem inaugural de Beijing para Fuzhou. Por causa da
corrupção do Ministro Liu Zhijun, e de
inúmeros erros na construção do sistema, o sinistro em Wenzhou causou a morte
de 40 pessoas e o ferimento de 192.
As esperanças
quanto à liberalização no que toca a Xi Jinping, o atual Presidente, já se
dissiparam, dado o seu viés repressivo na mesma linha do antecessor Hu Jintao,
como nas mádidas folhas sob o sol matinal.
Há, no
entanto, na narrativa em apreço omissões, como o tratamento superficial e,
mesmo, incidental dos conflitos de origem colonial na China – a sublevação da
etnia uighur, na província do extremo
ocidental de Xinjiang, e a revolta no
Tibet,
assim como a influência do Dalai Lama.
A maior
omissão estaria talvez na falta de qualquer menção ao problema da poluição
na China. A única referência encontrada está no umidificador que Evan Osnos
resolve deixar para trás, após a movimentada estada de oito anos, até 2013,
quando enfim regressa aos Estados Unidos, com a esposa Sarabeth...
Abandono da Lei da Responsabilidade Fiscal ?
A Pedra angular
da abóbada na luta contra a inflação e a práticas governamentais que a tornam
triste realidade está na Lei da
Responsabilidade Fiscal (LRF). Não foi à toa que o PT
empregou todos os meios possíveis para a descarrilar, ao ensejo de sua
aprovação pelo Congresso de então e a sanção presidencial. Até ao Supremo
foram, na sua descabelada tentativa de inviabilizá-la.
Hoje no
Governo há uma luta surda contra a LRF,
que, como se fora objetivo de guerrilha, se manifesta, seja aberta, seja com o
benefício da sombra. Um dos objetivos
principais dessa lei, é o de evitar o empreguismo desenfreado, muita vez
utilizado no passado como meio de propulsar administrações claudicantes.
Dessarte, se aumenta a carga com os empregos correntes – prática, de resto,
bastante utilizada pelo petismo federal, já com Lula da Silva – com escopos
eleitoreiros, que não correspondem às necessidades (e às possibilidades) da
entidade federativa.
Como mostra
reportagem de Silvia Amorim, em O Globo, o número de estados em que a
despesa com pessoal entrou na chamada Zona de risco da LRF cresceu 70% de há quatro anos para cá. Em 2010, eram dez os governadores na ‘zona de risco’ em fim de mandato. Hoje, são
dezessete.
E é para o
Nordeste, uma das regiões mais pobres do país, que vai essa dúbia palma: AL,
CE, PE, PB, PI, RN e SE; quatro são do Norte (AP, RO, TO e PA), três do Sul
maravilha (PR, RS e SC) e três do Centro-Oeste (DF, GO e MT).
O Piauí
está na dianteira do atraso, com a situação mais grave no âmbito nacional (a
despesa com pessoal chegou a 50,04% da renda corrente líquida).
Os outros estados em situação particularmente difícil, são Alagoas (49,8%), Paraíba (49,6%) e Sergipe (49,6%).
A Lei da Responsabilidade
Fiscal - que se tem tentado
descaracterizar – sofre, por outro lado, de algumas imperfeições – que num
governo federal sério poderiam ser corrigidas. Nesse campo de espertezas,
anote-se o Rio de Janeiro, que tem gasto com pessoal que, à primeira vista,
impressiona favoravelmente. A situação fica muito menos brilhante ao verificar-se
que a posição privilegiada se deve ao fato de o governo fluminense não incluir no cálculo gastos com
aposentados. Assim, por um truque infográfico, o RJ de Pezão sai com
percentual admirável de pouco mais de 30%.
Absolvição de Hosni Mubarak
Na verdade, a absolvição do
ex-Presidente Mubarak foi um lento processo, que se confunde com a doença
terminal da Primavera Árabe, no
Egito. Na verdade, é o desfecho decepcionante de enganosa abertura. Nesse
quadro, o início se assinala por grandes
e entusiastas multidões na Praça Tahrir,
que conduziram ao seu rápido afastamento do poder, com a respectiva renúncia, a
que se seguiu a condenação à prisão perpétua.
A
Fraternidade Muçulmana, que a princípio olhara com desfavor a revolução egípcia
– a que perpassou de início um matiz relativamente liberal - pensou poder apropriar-se do mando, o que
conseguiria com a eleição de Mohamed
Morsi. Este, no entanto, por um conjunto de erros, tanto próprios, quanto
da Fraternidade, perdeu rapidamente o largo apoio popular, e seria afastado do
governo – e preso – ao cabo de cerca de um ano. É uma vítima mais da respectiva
incompetência, em processo composto pelo doutrinarismo faccionário da velha
Fraternidade.
Foi um fecho decepcionante para o
primeiro governo civil desde a queda
da monarquia do Rei Faruk, a 23 de
julho de 1952, abatida pela sólita
conspiração militar, que levaria em breve tempo Gamal Abdel Nasser ao poder pleno,
uma vez afastado o oficial mais antigo que fora chamado a encabeça-la.
Com o
rápido declínio de Morsi, surgiu o general Abdel Fatah el-Sisi, guindado pelo
aplauso de correntes populares. A popularidade com que foi brindada a nova
administração castrense fez esquecer as anteriores reservas ao domínio do
exército. De novo – e muito pela respectiva inabilidade – a Fraternidade
Muçulmana está regressando aos porões e aos guetos em que se manteve por longas
décadas viva e atuante, malgrado a perseguição dos generais-presidentes.
O Drama da Nigéria e o avanço do
Islamismo radical
A al-Qaida e o radicalismo religioso
árabe avançam não tão lentamente na África. Na Nigéria, o movimento Boko Haram continua a tomar espaços,r
diante do regime corrupto e ineficaz que preside o maior país africano (em
termos demográficos) de que a independência fora saudada como um avatar da
democracia (começou com assembleias no padrão parlamentar inglês).
Em um
fenômeno com tinturas mundiais, o islamismo radical – na Nigéria, o Boko Haram
também reclama um califado – no correr dos meses, essa surda insurreição nigeriana se manifesta
no sequestro impune de jovens mulheres, que semelham destinadas a uniões
conjugais em que inexiste a vontade feminina.
Se não
esquecermos o Isis – que vem sendo
combatido do alto, mas que permanece no terreno – também a guerra civil na
Síria – em que Barak Obama desperdiçou a oportunidade de apoiar no momento
certo a Liga Rebelde (então com boas perspectivas de apressar a expulsão e
queda de Bashar al-Assad), para hoje
ver-se a braços com as decapitações em série de outro califado embrionário,
este na velha terra da Passagem, próxima da Turquia e do Iraque.
Ainda na
África – agora no versante oriental – encontramos o al-Shabab, mais uma criatura do islamismo radical, que se espraia
na Somália – em que persiste a anarquia, o que a transforma em base para
piratas e em campo de treinamento para os discípulos de Osama bin Laden.
A falta
de estado – o apolis que se pensava
criatura morta e enterrada por séculos de governo – volta e persiste de modo
algo estranho, eis que inclui atividade bastante lucrativa, que é a velha pirataria, hoje não tão endêmica no
Chifre da África, empós sua longa ( e por muito esquecida ) estada nas costas
do Magreb [2]...
Será que a presente – e persistente –
confusão teria algo a ver com as lutas entre estados que precedem à instalação
da dominação por um único governo ? A. J.
Toynbee, no seu Estudo da História, tratara dos
diversos Estados Universais que culminaram a luta nas civilizações
respectivas. Se no passado as
civilizações não eram universais, na medida em que existiam outros países fora
de seu alcance, a situação presente – em que se colocam Estados Unidos e China
como virtuais postulantes - configura
situação diversa. Washington fora a
única superpotência, após o desaparecimento da União Soviética em 1992, mas a
sua absoluta preponderância, abalada pela guerra no Iraque, e que se manifesta
no presente no chamado fenômeno do declínio
(com efeitos sobretudo internos), se vê
ora às voltas com o crescimento, o
avanço comportado e na aparência inelutável dentro da pretensão – bem comportada mas escancarada de
Beijing em assumir-lhe o posto e o cetro.
Essa é
uma história que pode não ser – para felicidade dos pósteros – introduzida pelos
chamados períodos interessantes[3] da anterior
experiência chinesa. De qualquer forma, é um desenvolvimento que tenderá a
manifestar-se e a estabelecer-se de maneira pacífica, ainda que a elevação no
diapasão das pretensões de limites marinhos do Novo Império do Meio possam
lançar na esfera circunvizinha ondas não tão tranquilas...
(Fontes: ‘Age of Ambition: Chasing Fortune, Truth,
and Faith in the new China’, Evan Osnos, Farrar, Straus and Giroux, New York,
2014, pp. 403; ‘Prisoner of the State
–The Secret Journal of Premier Zhao Ziyang, Simon & Schuster, 2009; A Study of History, Arnolf Toynbee, O Globo)
[1] Zhao Ziyang era o Premier
chinês quando ocorreram as demonstrações de Tiananmen. Tentou resolver pelo
diálogo a questão, no que foi impedido pela ala conservadora do PCC. Esta,
através de Li Peng, logrou convencer o ancião Deng Xiaoping. Determinada a
intervenção do exército, ocorreu o massacre de Tiananmen. Zhao passou o
restante de sua vida em prisão domiciliar (morreu em 2005)
[2] Magreb é a costa
mediterrânea da África, no seu versante ocidental ( hoje, Argélia e Marrocos)
[3] Eles se caracterizavam, na
lição de Toynbee, pela luta entre os Estados pretendentes à posição de mando, o
que, segundo insinua o período atual, ocorrerá consensualmente, e sem
consequências bélicas (por uma série de circunstâncias que não cabe aqui
desenvolver).