segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XXVII)


 
                                                     

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                Meu mui prezado e grande Amigo Pedro,

 

                essa nossa conversa – digamos à distância – começou numa saleta de apartamento de prédio sito à avenida Basilissis Sophia. Descobrira então fazia pouco que do largo balcão, entre o museu de arte bizantina e edifício sem outro atrativo que o de abrigar clube castrense, muito justamente defrontando a nossa temporária morada em Atenas havia um largo espaço de terreno – que para os ignaros pareceria baldio – onde estão as ruínas do Liceu.

                A coincidência era por demasiado feliz para que eu a calasse. Se os estudiosos da filosofia helênica se sói dividir em dois campos não necessariamente amistosos – os platônicos e os aristotélicos – e as diferenças entre o mestre e o discípulo tiveram as idades da história como palco, com várias peripécias marcadas pelo odium philosophum, não há negar que será sempre possível distinguir aprioristicamente entre os adeptos de uma e outra escola. Sem desmerecer do escolarca da Academia, a nossa preferência recaíu naturalmente sobre o Estagirita, ou aquele que por muitos séculos foi designado como o filósofo por excelência.  

                Por isso, ao ser inteirado da cercania, conseguiria em breve tempo visitar o local, na companhia de arqueóloga especialmente encarregada dos trabalhos de preservação do local, malgrado seja forçoso reconhecer que da antiga escola aristotélica, de sua colunata e palestra restam apenas indícios, dada a passagem dos milênios e a circunstância de haver abrigado até uma caserna.

               Dei-me pressa, no entanto, em transmitir por correspondência ao amigo – então acessível por correio comum – todos os elementos colhidos na visita, a que anexei recortes lá obtidos.  A dizer verdade, meu velho, o exame do antigo Liceu repete em escala menor a experiência havida com o quadro geral dessa difícil convivência. Em Atenas – no contexto da coexistência do antigo e do moderno, que se depara também em Roma - se carece, em diversos casos, de alguma imaginação e de muitos aportes eruditos do dedicado pessoal que cuida desse imenso parque arqueológico que consegue sobreviver, em luta desigual, contra a diuturna e multifária invasão da metrópole dita moderna.

               Receberia a tua resposta em breve prazo – e esta foi a derradeira correspondência que recebi do mestre. Decerto ainda conversaríamos quando de minha ida em férias ao Brasil. Se não é o caso de aqui repetir o que já foi dito, basta aduzir que o telefonema do Rezende eu o receberia no meu apartamento do Rio.

               Terá sido esta brutal interrupção – que mais sentimos porque pelas circunstâncias das jornadas da tua breve e fatal enfermidade não recebemos qualquer notícia do transe em que te encontravas.

                Não sabíamos – eu e Rezende – que já descias para o Hades. Caronte te esperava, com a tacanha ganância do meio óbolo, enquanto ignorávamos a tua tangida caminhada, para o mundo das sombras sem memória.

                Desta partida, só colhi indícios e acenos a posteriori, que para mim se resumem na tua inopinada questão em aberto, no que concerne ao destino dos teus livros.

                Se as queixas e as reminiscências podem, às vezes, vestir-se com os opacos panos das nênias e dos epicédios, não há grito mais roufenho, inda que inaudível, do que o marmóreo silêncio da tumba.

                Diante das divindades infernais, haverá algo a tentar? Quem dera...

                Na imensa sala de espera da vida, chega o tempo em que desaparecem enfermeiras e pacientes. Do esculápio, nem falar.  No seu jeito desabrido, enquanto os enfermos mais velhos dormitavam, partiu, mandou-se, sabe-se lá para onde.

                 Então, meu velho, não há mesmo nada a fazer. Só aguardar.

     

 

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