segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O Homem Doente da Síria


            Situada na Ásia Menor, a Síria desde época imemorial é uma terra de passagem. Através dos tempos, foi presa de muitos conquistadores. Basta olhar no mapa para sentir-lhe a  posição estratégica, e entender como as suas lindes são permeáveis para tão diversas potestades.
           A oeste, ela se debruça no Mediterrâneo, com o porto de Tartus que é a única base naval de águas quentes da armada russa. Mais ao sul, o frágil Líbano, país que por longo tempo fora virtual protetorado seu, até que o magnicídio de Rafik Hariri, ex-primeiro ministro por duas vezes, e importante homem político libanês, forçasse a retirada do exército sírio do vale da Bekaa, pelas fundas implicações de Damasco com o atentado. Mais ao sul, limita-se com Israel, e até hoje contempla como terra ocupada as alturas do Golã.  No extremo sul, a fronteira com a Jordânia, que se estende em duas áreas distintas: aquela vizinha da cidade de Deraa, por onde começou a revolução de abril de 2011, e mais além, no largo risco das potências coloniais, o seu flanco oriental desértico, onde termina a divisa com o reino hashemita e enceta aquela com o Iraque, marcada pelo Eufrates, que atravessa boa parte da franja norte da Síria, e se encaminha a jusante, já no Iraque, até jungir-se ao Tigre e assim formar o Chatt-al-Arab. Esses vastos e áridos espaços constituem espécie de terra aberta aos aventureiros, antes percorridas por caravanas, e hoje pelo tráfico dos muitos contrabandos. Por fim, ao norte a Turquia em extensos e montanhosos confins.
           Por um punhado de séculos, o Império Otomano, no seu longo declínio, foi denominado de o homem doente da Europa. A longa decadência de Istambul se iniciara no século XVII, quando o avanço turco foi repelido pela resistência de Viena.  Foi processo lento, que se arrastou até o inglório desfecho na aventura da Grande Guerra, ao aliar-se com os Impérios Centrais (Alemanha e Áustria-Hungria).
           Foi uma decadência de certa forma administrada pelos gabinetes das cortes europeias, muitos dos quais preferiam a chamada Sublime Porta permanecesse, inda que debilitada. A preocupação maior era a de impedir o acesso do Império Tzarista aos estratégicos estreitos do Bósforo e dos Dardanelos. Com a debacle anunciada pela derrota de Berlim e Viena, esfacelou-se o Império Otomano – de que cuidaram na distribuição dos despojos além da Turquia em uma série de protetorados, de novos-velhos países e até de invenções como a então Transjordânia, que dizem literalmente riscada na areia do deserto por Winston Churchill. Quem perdeu a festa foi a Grécia. Partindo de Esmirna, o ponto principal de aglutinação da colônia helênica que vivia na Anatólia e adjacências muito antes dos relatos de Heródoto, se julgou possível uma revanche contra o invasor otomano. Ideada por Venizelos – que depois na oposição esqueceu o dever maior de apoiar o projeto nacional – a empresa se transformou na dita catástrofe de agosto de 1922, quando um desconhecido general, Mustafá Kemal, desbarataria a frente heládica, no que contou com a ajuda de regimentos em que Domingos Calabar se sentiria muito à vontade.
          O leitor me perdoará essa digressão. Ao sonho da volta à Constantinopla que esteve muito próximo da realidade, sucedeu o dissídio nacional na falta de união em defesa de um valor mais alto, do que a predominância deste ou daquele partido. A famosa invectiva – ai dos vencidos! do gaulês Breno – só foi minorada pelo domínio das miríades de ilhas no Egeu, que, com uma solitária e parcial exceção, o adversário turco jamais conseguiu quebrar. E tal se deve exclusivamente ao empenho dos gregos, mantendo marinha de guerra muito superior às potencialidades da Ellás.
          Bashar al-Assad e seu estado tem dado, nos últimos tempos, múltiplos sinais de que o regime alauíta, fundado pelo pai Hafez al-Assad, se não se acha nas vascas da agonia, dela não se acha muito longe. O poder estatal deixa de inspirar confiança quando se multiplicam os episódios de dissolução da vis imperial, vale dizer a segurança transmitida ao cidadão.
           Hoje os sírios são presa do medo, pela manifesta incapacidade  do ditador de controlar a situação. A Secretária de Estado Hillary Clinton acreditou oportuno fazer uma advertência pontual para Bashar. Não é segredo que a superpotência dispõe de múltiplos meios de monitorar a atividade do regime. Em tais condições, ela foi de meridiana clareza. Que haja indicações fidedignas que o déspota examina a eventualidade do recurso às armas químicas da ideia do grau de desespero de um presidente acuado. A cogitação do uso de tais armas já é indício seguro do fim que se aproxima.
           Parece-me importante transcrever o que explicitou Hillary: “Há uma linha vermelha para os Estados Unidos. Não pretendo telegrafar ações específicas que nós empreenderemos no caso de provas críveis que o regime Assad recorreu ao emprego de armas químicas contra o seu próprio povo. Basta dizer que nós estamos seguramente planejando agir na eventualidade de que tal venha a ocorrer”. Esta reprimenda se baseia em fontes seguras de que preparativos de atividade nessa área surgiram de forma inequívoca.  Neste contexto, a assertiva de Jay Carney, porta-voz da Casa Branca, complementa a posição da Administração Obama: “ Estamos preocupados (concerned) que um regime cada vez mais acossado (beleaguered), após verificar como inadequada a escala da violência por meios convencionais, possa estar considerando o uso de armas químicas contra o Povo Sírio.” E aduziu que “o regime Assad precisa (must)  saber que o mundo está vigilante e que eles serão havidos como responsáveis (accountable) pelos EUA e a comunidade internacional se eles usarem as armas químicas ou se não respeitarem a sua obrigação de que não sejam empregadas (fail to meet their obligations to secure them)”.
         Há inúmeros sinais de que o Estado alauíta está à beira de um colapso, seja sistêmico, seja mesmo parcial. De um filete de água no passado, as defecções se transformaram com os sinais crescentes de uma incapacidade de reverter a dinâmica em autêntica caudal. Não são mais pobres infelizes que mais suportam as agruras de uma guerra civil que já está por toda a parte. Personagens graúdos, antes havidos como familiares do poder, agora pensam em salvar a própria pele. A cediça imagem das ratazanas que invadem o convés da primeira classe na sua desabalada fuga de um antes portentoso transatlântico que ora faz água por toda a parte nos mostra quão animal pode ser essa corrida para o espaço aberto do mar oceano.
          Já se calaram as esquisitas vozes que, após uma tíbia censura dos excessos do regime, buscavam sublinhar-lhe o caráter laico e a concórdia que proporcionava a tantas etnias. Se o regime Assad era assim tão bom, porque dependia tanto da polícia secreta, dos calabouços e das ignóbeis torturas, sem falar da rapidez no gatilho (trigger happy) com que saudaram as primeiras e comedidas manifestações?
          Assad chegou à sua vigésima-quinta hora. Não sei se o governo de dona Dilma, que antes censurara as comemorações pela morte de Muammar Gadhafi, ainda mantém presença simbólica em um teatro no qual a sua participação esteve sempre nas beiras de uma patética ausência de qualquer pertinência.
          O popular cartunista Ali Ferzat fora em agosto de 2011 brutalmente espancado pelos boçais esbirros de Bashar. E, sem embargo, Ferzat, que vive do humor e da sátira, desta feita rirá por último, pelo seu achado de desenhar Assad tomando carona com o decano dos ditadores, o coronel Muammar Kaddafi.
         As revoluções, de que a francesa será o clássico epítome, têm a sua inerente dinâmica, e o seu estudo pode sinalizar, nos povos de mais diversa cultura e origem, fenômenos que se repetem, como que a escarnecer das diferenças que muitos desejam pespegar no gênero humano. A revolução síria se iniciou timidamente, com moderadas reivindicações, ainda fundamentadas na premissa de que o presidente estava mal informado, que era um homem aberto e, por conseguinte, suscetível às persuasões do diálogo civilizado.
          A insatisfação partiu da longínqua Deraa, cidade sulina, vitimada ela e seu entorno por interminável seca. Não se sabia então que não era só na excêntrica Deraa que condições existiam para os protestos populares. O que logo se determinou, no entanto, foi o método mendaz do regime. Enquanto Assad prometia mundos e fundos da tribuna de  assembleia sem qualquer representatividade, o estado policial respondia nas ruas às pacíficas manifestações com balas certeiras.
          Assad chamou os home para sufocar a subversão do populacho. Por deformação profissional da estirpe dos tiranos ele usou a mão de ferro julgando com isso resolver o problema. É o eterno problema dos autocratas: Carlos X, de França, ao tentar reintroduzir com as ordenações de 25 de julho de 1830 o absolutismo em que nascera, pensara que alguns soldados armados bastariam para mandar para casa os rebeldes. Na Paris das barricadas – o barão de Haussmann ainda não fizera a sua obra citadina e militar – a revolta nas vielas angustas da cidade medieval  não tardaria em mandar para o amargo exílio no palácio Hrakany de Praga o último dos Bourbons reinantes.
          A violência contra o povo pacífico, que pensava valer-se de um direito democrático, foi a lenha que transformou uma população que ainda julgava possível convencer o Rais. Esse aprendizado de liberação já chegaria a quarenta mil mortos, sem falar em tantas outras misérias da guerra civil.
          Que estamos no quinto ato, e que o desfecho esteja por desvelar-se, restam poucas dúvidas. Quem o afirma é o parceiro russo, que tantas vezes deparamos a inviabilizar qualquer ação efetiva de parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
           A progressão da revolução – ou o temor de se virem alijados do pós-Assad, o que não é cousa de pouca monta para quem tem tantas inversões na Síria, partindo da base naval no Mediterrâneo oriental – com os últimos informes indicam que um categorizado funcionário turco disse que a Rússia concordou com  novo approach para persuadir al-Assad de deixar o poder.  Basta rememorar as inúmeras visitas do Ministro Sergey Lavrov de apoio ao presidente sírio para que se tenha ideia do alcance dessa mudança de posição.
           Se fontes próximas da hierarquia russa ainda não estão abertamente dispostas em insistir, junto com a Turquia e o Ocidente, na imediata partida de Assad, o ministério do exterior russo tem recebido notícias alarmantes acerca da disposição do presidente: nessas últimas duas semanas descrevem um homem que perdeu toda esperança de vitória ou fuga.
             Ele acredita que será morto de uma maneira ou de outra. Neste raciocínio, “se ele tentar ir embora, partir, sair de cena, ele será abatido por seu próprio povo”. O especialista russo Fyodor Lukyanov especula que as forças de segurança, controladas pela minoria alauíta, não o deixaria partir, ficando eles para enfrentar a vingança de seus inimigos. E se ele fica, será morto por seus oponentes. Está preso numa armadilha. Isso não tem a ver com a Rússia, ou quem quer que seja. O que está em jogo é a sua sobrevivência física.
              E há outras novidades mais substanciais. No seu encontro com o Primeiro Ministro Recep Tayyip Erdogan, o Presidente Vladimir Putin sinalizou que ambos concordaram sobre um novo approach para resolver o conflito : “ Não estamos nem protegendo o regime sírio, nem atuando como seu advogado, mas continuamos preocupados acerca do futuro da Síria.”
              Malgrado o horizonte sombrio, segundo algumas fontes, a resistência de Assad ao cabo de um levante de 21 meses contraria prognósticos que previam um término bem mais rápido. Ainda nesse quadro que o encorajaria à resistência, Assad ainda disporia de vantagens no campo militar e o apoio integral do seu mais próximo aliado, o Irã.
             Quanto à superioridade do fuzil de Assad em relação a seu povo, é o mesmo sovado argumento que apenas se cinge ao aspecto material do embate, e procura redimensionar a dinâmica da batalha, que manifestamente não favorece o campo oficial.
             Putin não gosta de perder. Investiu pesado e se desgastou deveras perante o povo sírio, através de iterados vetos (que são fatores não-negligenciáveis na continuação da matança). Associando-se ao patibular ditador, valeu-se para tanto do experto Ministro do Exterior, Sergey Lavrov. Ressalta sobretudo o garrafal erro político de avaliação, notadamente da parte de quem se reputa tão hábil para tomar decisões frias e não influenciadas por um vestigial sentimentalismo. Agora seria a hora de reparar o que ainda pode ser salvo para mãe-Rússia, e afastar-se de quem se provou um ditador particularmente inábil, a ponto de haver  representado objetivamente ter sido, tutto sommato, uma força  em prol da revolução. Putin não quer ser afastado na hora determinante. Se a sua especial frieza o aconselhar a abandonar Assad, ele o fará sem qualquer titubeio. Assad pode até escapar de seus ‘amigos’ e ‘inimigos’, mas dadas as chacinas e abusos perpetrados, não se carece de ser Nostradamus para prever que ele deve apontar na sua agenda uma estada prolongada no Tribunal Penal Internacional, da Haia.   

 

( Fonte: International Herald Tribune )

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