domingo, 9 de dezembro de 2012

Colcha de Retalhos CXXIX


Recuo de Morsi

             Os spin doctors[1] oficiais hão de tentar apresentar a revogação do decreto como uma contribuição de Mohamed Morsi à causa democrática. Na verdade, diante das manifestações multitudinárias, da crescente exasperação popular – que chegou perto de invadir o paço – e as inúmeras defecções, o presidente a contragosto se deu conta do fracasso de sua inusitada tentativa de adjudicar-se poderes ditatoriais, a pretexto de uma temida resistência da justiça.
             É uma nova vitória da democracia, o que mostra que a revolução de março de 2011 – a qual derrubou em poucos dias um déspota de trinta anos de incontrastado mando – não é um fenômeno epidérmico, segundo uma tese corrente entre veteranos analistas do mundo árabe. Será a eterna reação do velho contra o novo, e a incapacidade do primeiro em admitir a intrínseca diferença que assinala a primavera árabe lançada sem o saber pelo modesto verdureiro tunisiano.
            O recuo do presidente Morsi não é, por enquanto, total. Continua de pé – se o seu desígnio prevalecer – o referendo acerca da nova Constituição, o que implica em outra tentativa de instrumentalização, dados os inúmeros vícios de um texto aprovado de afogadilho, sem um verdadeiro debate, e buscando implantar uma visão a um tempo sectária e deformada do Egito pós-Mubarak.
            Ainda é cedo para sentir todos os efeitos dessa derrota do aprendiz de ditador. Se é inconteste que Morsi sai enfraquecido do episódio semelha prematuro alvitrar até que ponto estejam prejudicadas as próprias condições de ter presença efetiva como chefe de estado.
            Por outro lado, não se deve tampouco esquecer que também a Irmandade Muçulmana sai chamuscada dos embates dos últimos dias. Para um partido havido como tão arguto e instrumentalizador, surpreende deveras que tenha se metido a fundo nessa enrascada, como o intento de mobilizar a militância tende a indica-lo.
              De qualquer forma, se a constituição redigida às pressas e que não corresponde aos anseios da sociedade egípcia, mas sim à visão singular do movimento islamita, tiver confirmado o respectivo referendo, tal representaria uma vitória para a Irmandade, admitida a aprovação do documento pelo referendo.
              Seria melhor para a sociedade egípcia e a sua paz social que o referendo, de uma forma ou de outra, não endosse uma carta magna capenga e retrógrada. Pois se tal se verificar, a preponderância de Morsi e cia.  bem pode acabar sendo autêntica vitória de Pirro.
 

 Israel e a Palestina

               A chamada questão da Palestina se vem arrastando por décadas. Em 2 de novembro de 1917, o Secretário do Exterior britânico, Lord Arthur Balfour, fez a sua famosa declaração, que formalmente está inserida em carta ao Barão Rothschild. Por primeira vez, o governo de sua Majestade britânica admitia a criação de condições para a abertura de um lar ao povo judeu na Palestina. A Primeira Guerra Mundial entraria no seu último ano e não havia no Oriente, de que o antigo Império Otomano se esfacelaria. Daí o entendimento secreto de dois altos funcionários de Inglaterra e França, que pelo acordo epônimo Sykes-Picot e distribuíram as zonas de influência respectiva naquela área.
              A declaração Balfour iniciou o processo da questão médio-oriental, em que a princípio os colonos judeus (então autênticos) e os israelitas nascidos na terra (sabras) se achavam em desvantagem diante da maioria árabe. No entanto, o movimento sionista e o sentido de organização do povo judeu o habilitou a entrar no primeiro momento decisivo (turning point) da luta pela criação de Israel em melhores condições de que os árabes palestinos que compunham o segmento majoritário da população.
             Quando a Assembleia Geral das Nações Unidas, pela resolução 181 de 29 de novembro de 1947 votou pela partilha do território, a cólera árabe local e a aliança de  países árabes, com exércitos mal preparados e mal-coordenados, não pode defender-se adequadamente das forças militares do novo Estado, formadas pelo Haganah e o próprio  Irgun, logrando inclusive a primeira vitória externa, e as primeiras anexações de território, que íam além da divisão estabelecida pela dita Resolução.
           O novel estado israelense surgia em um momento internacional que lhe era favorável, dadas as dimensões da ONU, com a prevalência dos Estados Unidos e do Ocidente, eis que o evento presidido por Osvaldo Aranha ocorreu muito antes da descolonização e da transformação das Nações Unidas. Não obstante, o exército israelense uma coalizão que, no papel, lhe deveria ser amplamente superior, o que desde então a supremacia israelense tem sido a regra (com a exceção da guerra do Yom Kippur, em 1973, quando o presidente egípcios Anuar Sadat, com um golpe de mestre colocou o Tsahal (exército israelense) em situação crítica de que só se salvaria com a pronta ajuda estadunidense).
          A questão palestina é uma chaga aberta na política internacional que uma série de intervenções não têm logrado resolver o problema de uma forma equânime que atenda tanto aos direitos de Israel, quanto os da comunidade palestina, que é agora a parte aparentemente mais fraca. Se  o governo de Bill Clinton foi o das reais oportunidades perdidas – e os acordos de Oslo são os mais conhecidos, mas também nos dias finais da administração, em Taba,  Arafat recusou oferta de Ehud Barak, por causa da questão dos refugiados. Dada a longa militância deste paladino da causa palestina, será indispensável um estudo aprofundado para determinar do porquê do não de Arafat. De toda maneira, ele pagaria muito caro por essa oportunidade desperdiçada. Para ele, com a dupla George W. Bush e Ariel Sharon, sobreviria um interminável inverno, com a sua crescente reclusão na quase prisão de Ramallah e o estranho fim de uma enfermidade ainda não determinada, que a recente exumação de seus restos mortais possa trazer respostas conclusivas.
          No meu entender, a comunidade internacional seria ao lado do movimento palestino e do estado de Israel, uma das grandes beneficiárias de uma solução justa e equitativa desta mais do que cinquentenária questão. No pêndulo da história, o povo sofredor é indubitavelmente o palestino. Em diversas épocas, e por condicionamentos e/ou personalidades, se abriram os portões da paz. Se a oportunidade não foi empolgada, as razões serão diversas. Se se deixou a ambivalência apagar a miragem de uma solução justa, não se pode apenas atribuir aos míopes o malogro. Carece de pensar na força dos energúmenos, da gente do partido do quanto pior melhor.
           Daí as desilusões dos engajados na busca da justiça,  daí o trágico pêndulo e do yin e do yang, desses conceitos da filosofia chinesa, que apesar de opostos  são também complementares. Assim, o yin é refluxo, mas também pode ser técnica, enquanto o yang representa o avanço  mas igualmente a força. A predominância de um sobre o outro não será nunca uma boa resposta, porque eles carecem um do outro.
           Quando leio que Netanyahu determinou mais um assentamento ilegal (com a agravante de inviabilizar um estado palestino soberano e não o que é hoje, cercado por muros e pelo acosso dos colonos e de seus esbirros) como punição a Abbas pela votação da AGNU criando o estado palestino membro observador permanente, o que mais surpreende é que quem  de direito não tenha se manifestado de modo aberto e sem tergiversações contra mais esta tropelia de um estamento dominante que parece comprazer-se em aprofundar-se no isolamento internacional.
           E todo ponto, terá o seu contraponto. Os abusos de Israel e de quem está como os italianos chamam em la stanza dei bottoni (a sala dos botões de comando) explicam a vinda e a triunfal acolhida do líder supremo do Hamas, Khaled Meshaal, cujo domicílio conhecido, por óbvias circunstâncias, torna-se precário pela desestruturação do regime alauíta de Bashar al-Assad. Enquanto maior o endurecimento de uma parte, mais possibilidade terá a franja armada e irredentista de enveredar pela postura da intransigência (que é uma das faces do desespero). Na sua primeira visita à Faixa de Gaza, Meshaal prometeu libertar cada centímetro da Palestina. O próximo objetivo de Khaled Meshaal é buscar a reconciliação com o Fatah, do presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas.
           Se Netanyahu mandar reter as rendas de impostos e tributos da Autoridade, como disse que faria, por causa da recente resolução da Assembleia Geral, essa ignominiosa imposição de vassalagem, só servirá para afastar mais ainda o moderado Mahmoud Abbas de sua imperial companhia.

 
A Cooperação entre a Ucrânia de Yanukovitch e a Russia de Putin

 
           A notícia do New York Times desta quinta-feira sublinha a cooperação entre os governos de Moscou e Kiev, o que nâo deveria surpreender, como nos diz o provérbio “pássaros da mesma plumagem voam juntos” (birds of the same feather flock together). São dois regimes ditos fortes, o que na linguagem política da atualidade é a indumentária visível das ditaduras fantasiadas de democracia.
          A experiência nos mostra sobejamente que o caráter democrático se traduz menos em instituições de fachada, do que em práticas arraigadas de respeito aos direitos do cidadão. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu com gospodin Leonid Razvozzhayev, um obscuro líder oposicionista na Rússia. Ele viajara para a capital da Ucrânia sob a doce ilusão de que o reino do Presidente Yanukovitch é uma porta de saída para o Ocidente. Depois de intensa agenda de encontros com aliados políticos – presume-se que do partido da encarcerada mártir Yulia Timoshenko – e especialistas em direitos humanos. Tema central das reuniões: como obter o asilo no Ocidente.
           Os ossos do ofício tinham dado a Razvozzhayev uma percepção mais aguda de estar sendo seguido. Na tarde de sexta, em via pública, homens mascarados o pegaram e empurraram para dentro de uma caminhonete escura. Tudo isso na frente do escritório do advogado que estava preparando requerimento de concessão de asilo para o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados.
          Como dois dias depois, oh surpresa, Leonid Razvozzhayev reapareceria sob custódia, na entrada de um tribunal moscovita.  Com a expressiva cara de um jogador de poker, o porta-voz do principal investigador russo Vladimir Markin, insistiu que o indigitado se entregara, o que é estranho, dadas as entrevistas com a sua mulher, advogados e associados que o viram em Kiev.
          Não está determinado se a circunstância de não haver extradições legais da Ucrânia para a Rússia seria uma contribuição da Kiev de Yanukovitch de eliminar a burocracia no capítulo.
          Leonid Razvozzhayev é líder de um pequeno partido denominado Front de Esquerda, um grupo socialista radical, que participa da oposição a Putin.
 


( Fontes: O Globo, International Herald Tribune )      



[1] Expressão inglesa intraduzível em português. Designa quem procura apresentar um fato da forma mais favorável, o que muitas vezes tem pouca relação com a realidade.

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