terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A Morte só pede uma carta


           Hoje o câncer continua a ser grave enfermidade, mas felizmente não mais tem a conotação de anúncio do fim inexorável e, sobretudo, próximo.
           Recordo-me de o que dizia a imprensa da Cidade eterna, na minha experiência romana, em décadas sucessivas, junto a dois governos: o do Quirinal, i.e. a república italiana, e anos mais tarde, como ministro de nossa missão junto à Santa Sé. Assim, em uma mesma cidade, fui representante diplomático acreditado perante dois governos.
           Nesses anos setenta e oitenta, o câncer era palavra que não aparecia na imprensa e a fortiori na televisão. O italiano que é um povo muito parecido com o brasileiro pela alegria, hospitalidade e generosidade, se distingue igualmente pelo caráter supersticioso. Apenas um exemplo desse traço: para muitas nações o treze traz má sorte, a ponto de nos Estados Unidos não existir o décimo-terceiro andar (do décimo segundo se passa direto para o décimo quarto!). Pois, com a sua verve peninsular, o povo itálico não se contenta com um único número designativo do mau agouro. Desse modo, ao lado do ominoso treze, surge outro, que é o dezessete.
           Os homens, em geral, riem em público das superstições – sair de casa e dar com um gato preto, passar por baixo de  escada, etc. – mas tratam, em privado, de bater rápido na madeira, se se ouve alguma expressão ou se se topa com imagem ou aparição evocativa da má sorte.
           Naquele tempo, então, a menção do câncer era tabu para o jornalismo peninsular. Em casos extremos, se referia que fulano ou sicrana sofria de  un  male inguaribile (mal incurável), e mais não se escrevia em atitude na qual se davam as mãos a comiseração pelo infortúnio alheio e a calada paùra de que algo similar viesse a golpeá-lo no futuro.
           Jornais, revistas e conversas passavam por tal espantalho de forma sucinta e esbaforida. Nâo creio houvesse maldade ou egoísmo nesta postura. Seria daqueles temas que é melhor calar. Então o silêncio ou o eufemismo valeriam como fórmula de esconjuro e para o rápido pulo a assuntos mais positivos.
           Hoje em dia, o câncer, nos seus múltiplos avatares, é versado na imprensa e na mídia de  forma franca, sem os véus da superstição e o fatalismo de arrostar uma via dolorosa e terminal. Cotejando os dois paradigmas no sentido kuhniano, o enfermo hodierno enfrenta situação desagradável e potencialmente perigosa, mas tem à sua disposição o avanço da clínica médica, dos tratamentos árduos e desconfortáveis – V. por exemplo a terapia a que se submeteu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da  Silva, o sofrimento por que passou, tudo isso conjugado com a satisfação de ver o mal regredir – e toda a infinidade de recursos que tornaram muitas das espécies de câncer não uma enfermidade como as demais, porém não mais o equivalente a sentença inelutável de morte.
           Às vezes, malgrado a boa vontade e a entrega total do paciente, a oncologia ainda tropeça, seguindo um ritual mutilatório a que o interessado não se recusa, na esperança de vencer o ataque avassalador. Foi o caso do estóico e corajoso vice-presidente José Alencar Gomes da Silva (1931-2011), que se submeteu a ´n´ operações, para colher apenas falsas recuperações, logo desmentidas pela avassaladora carga das metásteses.
           Nâo é minha intenção desfiar os horrores dos diversos tratamentos, alguns muito agressivos, na aturada busca da cura definitiva. O ponto que desejo frisar é que os índices de êxito sobre o câncer estão estreitamente ligados à tempestividade no início do tratamento.
           É claro que as consultas ao médico não são das atividades mais prazerosas, mas, se feitas a seu devido tempo, estão entre aquelas mais proveitosas. Parece lição do Conselheiro Acácio, mas depois que se dobra o cabo da Boa Esperança, os check-up devem constituir rotina, decerto desagradável, mas necessária.
            A esse respeito, penso na via crucis que ora atravessa o Presidente Hugo Chávez Frias. Para quem se porta com tanta hombridade e espartano laconismo, pesa-me dizer-lhe que apesar de discordar de muitas de suas ideias e métodos, lamento deveras por todo sofrimento que tem enfrentado de modo exemplar.
             É uma pena que o Presidente Chávez, um homem ainda relativamente moço, venha a público anunciar a sua quarta cirurgia (a doença foi detectada em junho de 2011) e, ao contrário das vezes anteriores, admitir que pode ter de deixar o comando efetivo da presidência, e até a possibilidade de sequer cumprir o atual mandato, que finda em janeiro de 2013.
             Agora é tarde para perguntar se há alternativas para essa cega confiança na medicina cubana. Por força de uma série de circunstâncias – muitas das quais não são da responsabilidade direta dos oncólogos cubanos, e que se afiguram demasiado óbvias para que se careça explicitá-las – a confiança ideológica tende a ser útil a curto prazo, mas a médio prazo o sigilo alcançado tenderá a valer muito pouco, se não tende a recuperar  a saúde do paciente, por mais ilustre que seja.
              Quando o câncer foi descoberto, a nação venezuelana – depois do Presidente, a maior interessada na sua condição – jamais recebeu informações dignas deste nome. No entanto, através do véu de meio- segredos – em um recuo no tempo reminiscente dos dias em que câncer e tânatos andavam de mãos dadas – se pôde depreender que se extraíra da região púbica o que seria uma pelota. Pela descrição, a descoberta chegava tarde, e a probabilidade da metástase ou do câncer original já passível de infectar com suas células o organismo do paciente se apresentava com foros de quase certeza.
              O primeiro erro de Hugo Chávez foi o de não ter encontrado tempo para realizar exames laboratoriais que tempestivamente sinalizariam a existência de um foco cancerígeno ainda incipiente.
              As sombras da razão de estado continuaram a tornar inviável a vinda de Hugo Chávez para um grande centro – o Hospital Sírio-Libanês, por exemplo. Ele achou melhor perseverar nas suas visitas médicas às dependências hospitalares sob o comando de seu ídolo Fidel Castro – hoje aposentado – e o irmão sucessor Raul Castro que não podiam prometer-lhe a saúde,  mas sim o férreo sigilo.
              Eis aí o segundo erro do coronel Hugo Chávez Frias. Preferiu o controle da informação a melhores condições de tratamento. Seria como se pensasse, se não permito  que vaze o real quadro da condição médica, politicamente continuarei a ter preservada a imagem do Chávez de antes. O seu equívoco foi o de preferir controle da informação como se fora valido substitutivo sobre uma esperança tênue que fosse de possível remissão da doença.
              Pelo visto, e salvo prova em contrário, Hugo Chávez optou por sacrificar quaisquer possibilidades de reversão, pela certeza de curto prazo de pleitear com sucesso uma vez mais a presidência. Terá sido, dentro de seu prisma específico, uma opção heroica, cuja falha precípua reside em haver esquecido a respectiva condição humana.
 

 
( Fonte:  O Globo )

 

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