terça-feira, 31 de julho de 2012

Zelig para Presidente ?

                                        
       Dentre os inúmeros achados do cineasta Woody Allen,  Zelig (1983) é uma de suas grandes contribuições à galeria de personagens marcantes. Quem não se recordará de sua estranha capacidade de mimetizar as personalidades com que privasse ?
       Seria o deserto das respectivas qualidades, ou um culto servil à figura humana de quem se aproximasse, que levava Leonard Zelig não só a imitar o expoente de que se acercasse, senão descer a uma real, posto que aparente, parecença com o indivíduo, diante do qual literalmente se liquefaziam os próprios traços distintivos.
      Para enfatizar essa incrível peculiaridade, o humor de Woody Allen não trepida em colocar o camaleônico Zelig na companhia de um flagelo humano como foi Adolf Hitler. Nada poderia mais acentuar e vincar a ignominosa – e ridiculamente cômica – predisposição de seu personagem em refletir os ademanes alheios.
     Dir-se-ía, portanto, que a imaginação de Allen teria frisado, no absurdo do exagero, a tendência de pessoas de caráter mais fraco em abraçar o excesso – seja para o bem, seja para o mal – em patética homenagem ao Outro, motivada pela respectiva e sentida ínsita mediocridade.
     A esse propósito, a progressão da campanha de Mitt Romney tende a induzir-nos, ainda que com as necessárias precisões, para examinar mais de perto a por vezes embaraçosa procedência do personagem woodiano quanto a certos traços do virtual candidato do GOP à presidência dos Estados Unidos.
     Não é esta a primeira campanha que empreende, mas ao contrário do passado, tudo indica que o ex-governador de Massachusetts será ungido em Tampa, na Flórida, como o adversário do Presidente em exercício Barack H. Obama.
    A sua organização, ajudada pela Citizens United e o desbragado suporte dos milionários (e bilionários, como os petroleiros irmãos Koch) semelha superar em recursos o caixa do atual residente na Casa Branca.
    Será a homenagem que o capital presta a um de seus adeptos mais fervorosos. A sua gestão na Bain Capital poderá provocar problemas de imagem – com o seu vezo de despedir empregados e a desenvoltura em mandar firmas problemáticas à breca – mas não deixa de patentear a comunidade de vistas e a abertura sem quaisquer reservas para Wall Street.
    Se é corriqueira característica do político que pleiteia um cargo procurar expressar colocações  agradáveis para os eleitores, assim como evitar, na medida do possível, assumir atitudes que lhe alienem votos, outra coisa muito diversa será a de não ter convicções nem posições firmes.
    Mitt Romney sublinhou tal traço de caráter ao renegar a sua maior conquista, enquanto governador de Massachusetts. Naquela oportunidade, ele lograra fazer aprovar pela legislatura  – com marcada presença do Partido Democrata naquele estado de tendência liberal na Nova Inglaterra –  reforma da assistência médica estadual, que se fundamenta no mandato individual para a obtenção dos fundos necessários à sua aplicação em Massachusetts.
     Como muito depois os eleitores republicanos – em marcada contradição com a posição muitas vezes preconizada pelo GOP de utilização do mandato individual para o custeio dessa reforma – não só se dissociaram da Lei da Assistência Sanitária Custeável, a que passaram a chamar de Obamacare, mas também consideraram inconstitucional a utilização do mandato individual, Romney tratou de desdizer-se e de repudiar a sua principal obra política.
    Nesse sentido, diversos procuradores gerais de estados de administração do GOP, tampouco sem decerto preocupar-se com a coerência, não se pejaram de entrar na justiça prontamente, para derrubar nos tribunais, o que o Congresso aprovara.
    Já sabemos como esse oportunismo foi derrotado – e surpreendentemente – pelo Chief Justice John G. Roberts, jr. , que foi o quinto e determinante voto a afirmar a constitucionalidade da Lei  da Assistência Sanitária Custeável.
    Mitt Romney, sem embargo, não hesitou um átimo em dissociar-se e renegar a lei federal, posto que calcada no exemplo estadual introduzido por Massachusetts.
    Essa flexibilidade do pré-candidato republicano, por mais éticamente questionável que se afigure, não é algo excepcional em Romney. Daí a sua precedente e persistente rejeição de parte substancial da militância republicana, atualmente de maioria evangélica e conservadora. O grosso partidário se recusou por muito em abraçar-lhe a candidatura, preferindo diversos outros, que, como Rick Perry, Newt Gingrich e Rick Santorum, acabaram saindo da arena, por falta de fundos e de apoio no GOP. De qualquer forma,tal recusa se refletiu na incapacidade de Romney vencer primárias em estado do Sul profundo (deep South), que o considera um moderado (o que é palavrão para o republicano nos dias que correm).
    Como Romney contava com o apoio da direção partidária, a maneira por ele utilizada para tentar angariar o sufrágio da maioria ultra-conservadora é o de assentir de forma quase automática às posturas da base. Diante de posições pregressas que discrepavam de tal rigidez doutrinária, se intui a desconfiança dos republicanos quanto à fiabilidade de suas promessas.
    O comportamento de Mitt Romney em sua visita caça-votos a Israel corrobora    a preocupante tendência de assentir às postulações dos simpatizantes do GOP, mesmo na hipótese de que impliquem em riscos consideráveis para o interesse dos Estados Unidos.
    O apoio ao estado-cliente Israel não distingue entre republicanos e democratas, mas Obama – a exemplo de presidentes anteriores – procura ter presente o interesse americano e o da Paz. Nesse sentido, o atual presidente não apóia a postura belicista de  Bibi Netanyahu no que tange a Teerã, confiando primeiro em recorrer a todos os meios de pressão (excluído por ora o ataque militar, dadas as consequências imprevisíveis de  nova conflagração). Desejando obter o voto judeu (importante sobretudo no estado de New York), Romney acolheu o ‘direito de Israel de bombardear as centrais nucleares’, e nesse contexto não teve meias palavras sobre o apoio americano.
    Na sua coleção de gafes, a desequilibrada e ultra-favorável postura do candidato republicano a Israel, teria outrossim conotação especialmente ofensiva para a Autoridade Palestina : “A cultura faz toda a diferença. E em chegando aqui, e ao ver esta cidade e verificar as conquistas do povo desta Nação, eu reconheço o poder pelo menos da cultura e de outras coisas.”
    A tal propósito, Saeb Erekat, assessor categorizado do Presidente Mahmoud Abbas da Autoridade Palestina declarou como ‘racistas’ as observações de Romney: “É uma assertiva racista. Este homem não compreende que a economia palestina não pode alcançar o seu potencial, justamente porque existe a ocupação israelense”.
     No domínio da política externa, em que as afirmações precisam ser sopesadas e postas no respectivo contexto,Mitt Romney, pela sua preferência por asserções genéricas e fora do contexto, tem incidido em erros grosseiros, como a atribuição à Federação Russa da condição de inimigo, o que não leva em conta todo um decenal trabalho conjunto para o desarmamento gradual, e para uma visão livre das contraposições da guerra fria.
     A cautela de Mitt Romney sói manifestar-se no que tange às respectivas finanças, contornando os baixos tributos pagos ao erário estadunidense, malgrado os seus profusos, milionários recursos, inclusive aqueles depositados em bancos estrangeiros.
     Já na diplomacia, as reações de Romney lembram mais as do 43º presidente, George W. Bush, e todos nós sabemos a que levaram as ilusões dos neo-conservadores, a começar pelo abandono dos orçamentos superavitários do Presidente Clinton, À disciplina fiscal de Bill Clinton  sucedeu a gestão ruinosa de Bush jr. com os déficits, crises, guerras e bolhas que a marcaram, acentuando o discurso do declínio americano, com a compreensível resultante súbita reentrada em voga do best-seller do imediato pós-primeira guerra mundial – a Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler.




( Fonte: International Herald Tribune )        

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