Foi com agradável surpresa que a
cerimônia de encerramento da Comissão Nacional da Verdade (CNV) se realizou em termos bem diferentes dos prognosticados por
informes prévios na grande imprensa.
A dez do
corrente, em salão lotado do Palácio do Planalto, a Comissão apresentou seu
relatório final, em que responsabiliza 377
pessoas por violações aos direitos humanos durante a ditadura militar
(1964-1985).
Dentre as
importantes correções quanto ao período em tela, a CNV acaba com a estória de
que as sevícias e demais torturas ocorriam nos porões da ditadura, sem que o
comando das forças armadas tivesse conhecimento dessas violações.
Nesse quadro,
a comissão concluíu que a violação de direitos humanos – como a prática de
tortura, execuções e desaparecimento forçado - era sistemática, com a cadeia de
comando indo até a presidência da república. Nesse sentido, foram listados os cinco
generais-presidentes: Humberto de Alencar Castello Branco (1964-1967), Arthur
da Costa e Silva (1967-1969), Emilio
Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979) e João
Figueiredo (1979-1985).
A Comissão
esclarece que a tortura e outras violações não ocorriam por capricho ou vontade
própria de chefes militares, havendo uma estabelecida escala de comando. As
três listas que englobam os oficiais responsáveis, apontam, de forma
hierárquica, os oficiais responsáveis. Da
primeira, constam 53 nomes de militares que tinham “responsabilidade político-institucional pela instituição e
manutenção de estruturas e procedimentos destinados à prática de graves
violações de direitos humanos”. A lista, além dos presidentes, abrange os
ministros das três forças e chefes dos centros de informação do Exército (CIE),
Marinha (Cenimar) e Aeronáutica (CISA).
A segunda
lista tem 88 nomes – quatro deles
presentes na primeira – e inclui militares e civis que ocupavam cargos de
comando de hierarquia inferior.
Consoante a CNV, tais cargos têm “responsabilidade pela gestão de
estruturas e condução de procedimentos destinados à prática de graves violações
de direitos humanos”. Estão nesse rol comandantes de unidades das Forças
Armadas e dos notórios Destacamentos de Operações de Informações/Centros de
Operações de Defesa Interna, v.g. os DOI-CODI.
Decisão da Corte
Interamericana de 2010 e necessidade de revogar
Lei da Anistia.
É conhecido o
avanço do direito internacional humanitário e, em tal sentido, foi assaz positiva a recomendação da
Comissão (com um único voto contrário) de que seja revogada a Lei da Anistia – que já na fase final do Regime Militar
o Governo militar se autoconcedera. Tanto em São José, na Corte Interamericana, como nas principais Cortes europeias, a
tortura e outras formas graves de crimes contra os direitos humanos, não mais
são suscetíveis de prescrição. Pela sua gravidade, tanto a tortura, quanto os
demais crimes contra os direitos humanos não podem ser objeto de anistia sob
qualquer título.
Infelizmente,
no momento atravessa uma fase intermediária, em que muitos corajosos juízes de
1ª. Instância tem sentenciado, em questões recentes, a inaplicabilidade da Lei
da Anistia, por ser imprescritível o delito contra os direitos humanos.
Nesse aspecto,
a vanguarda do atraso se acha com o Supremo Tribunal Federal que, na contramão
do direito internacional humanitário, em juízo relativamente recente,
pronunciou-se, por maioria de votos, em favor da manutenção da Lei da Anistia.
O próprio
Governo Dilma Rousseff, de acordo com a linha concessiva que caracteriza o
poder civil em nossa terra, continua a manifestar-se pela não-revogação da Lei da Anistia (aprovada
pelo Congresso no ocaso do regime militar). Nesse contexto, o ex-Ministro da
Justiça, José Carlos Dias, e integrante da Comissão, asseriu que muitos crimes
anistiados em 1979 não são políticos, mas comuns e assim imprescritíveis. Nesse
contexto, a posição de Dilma Rousseff, conformando-se com essa postura retrô
(em termos de jurisprudência do direito internacional humanitário) só pode ser
levada a conta de conveniência política no tratamento do setor castrense com
uma postura atrasada e muito diversa da de nossos irmãos sul-americanos, como
os argentinos, que condenaram e encarceraram presidentes militares responsáveis
por graves abusos aos direitos humanos, como o tenente-General Jorge Rafael Videla.
Infelizmente,
no Brasil a quartelada do general Deodoro da Fonseca derrubando o Império, e o
mais democrático de nossos governantes, o Imperador Pedro II, a quinze de
novembro de 1889, ainda constitui o sinalizador para a atitude do Poder Civil
em nossa terra defronte do castrense. São raros os presidentes que, sem
confrontação, mas com energia, afirmam a soberania do poder civil. Dentre
esses, Epitácio Pessoa , que presidiu o
país (1919-1922) em um momento quando inexistia qualquer rede internacional de
dissuasão para o golpe militar, tenha nomeado dois civis para os ministérios
militares (Exército e Marinha, eis que inexistia a Aeronáutica nos anos vinte), e haja sempre afirmado na
prática a supremacia do Poder Civil, que é o primado da Nação sobre as
corporações militares. Essa altanaria não é atitude comum entre os políticos de
Pindorama.
Nesse
contexto, não surpreende a pouca
colaboração do estamento militar brasileiro à Comissão. De uma certa forma,
a CNV sofreu de alguns embaraços à
sua ação. Não dispunha do poder de convocar as testemunhas, mas apenas o de
convidá-las. Por outro lado, a própria lei que a instituiu já mostrou fraqueza,
eis que não se cingiu ao período militar propriamente dito (1964-1985). Para
ficar melhor na foto, o estamento castrense conseguiu que o período analisado
seria de 1946 a 1988. Com isso, a CNV teoricamente não se cingiria à análise
dos 21 anos da Redentora, acrescentando-se o período de vigência da
Constituição de 1946, quando, apesar de grandes distúrbios – inclusive o
suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954 e o movimento de retorno aos
quadros constitucionais vigentes (que atalhou tentativa de golpe da UDN), em
novembro de 1955 – prevaleceu, apesar de tudo e os sobressaltos do
subdesenvolvimento, a Carta Magna de 1946. Por outro lado, a cortina que mostra
uma vez mais a atitude de composição do Poder Civil é puxada até 1988, data da promulgação
da Constituição Cidadã.
Foi
noticiado que a Comissão recomenda que sejam retiradas as designações de
logradouros, vias públicas, pontes, etc. com o nome de presidentes e
comandantes do período do regime militar. Eis uma norma oportuna, que deveria
ser logo implementada, e não relegada às calendas.
Há outras
providências oportunas da CNV, como a proibição de eventos oficiais em
comemoração ao golpe militar, a desmilitarização das PMs, a reformulação dos
concursos de ingresso e dos processos de avaliação nas Forças Armadas e na área
de segurança pública para valorizar o conhecimento sobre direitos humanos e
democracia. Nesse sentido, muda os currículos das academias militares e
policiais com o mesmo objetivo.
Infelizmente,
nada se fez para colocar a necessidade de suprimir a Justiça Militar – que em alguns
países irmãos da América do Sul não mais existe. Nada justifica a manutenção dessa
justiça corporativa, que hoje se acha em nível dos tribunais superiores.
Em termos de
cooperação do estamento castrense, o não-comparecimento dos Comandantes das Três
Forças Militares à cerimônia de encerramento da Comissão Nacional da Verdade
semelha um pronunciamento (aqui sem trocadilho) das principais autoridades de
Exército, Marinha e Aeronáutica que não é condizente com o espírito de subordinação
ao Poder Civil e de cooperação com a Comissão, sem falar de que a cerimônia se
realizou no Palácio do Planalto, encabeçada pela própria Presidente Dilma
Rousseff. Espera-se mais em termos de liderança da autoridade do Ministro da
Defesa, cuja presença simboliza a subordinação militar aos poderes
constitucionais constituídos.
Não se trata de ocasião social e sim
de comparecimento a cerimônia que culmina um processo de integração do militar
nas estruturas constitucionais civis do Estado brasileiro.
Nesse
sentido, constitui lacuna que, pelo visto, não se tenha estudado o longo
trabalho feito pelo governo de Bonn, e mais adiante, com a reunificação,
através das instâncias de Berlin, com vistas à reinserção do militar alemão
dentro de um espírito democrático. Nesse contexto, o princípio da Innere Führung (liderança interior) deveria
ser avaliado, pelo que representa de aporte novo e democrático ao regulamento
militar. Com as necessárias adaptações do conjunto normativo empregado pela Bundeswehr (exército alemão) que visa a
dar um conjunto de normas de comando, com o respeito do soldado enquanto pessoa
e cidadão, e.g. liderança a ser exercida
de conformidade com a modernidade e a democracia, assim como a
indispensável preparação psicológica.
Por fim e
terá sido a circunstância que pelo inesperado provocou particular atenção, foi
a emoção experimentada pela Presidente. Dada a sua passagem pelas prisões do
governo militar, além do julgamento a que foi submetida pela Corte castrense,
presidir à cerimônia de conclusão do processo da Comissão, órgão especificamente
encarregado para avaliar o período à luz dos princípios democráticos que
felizmente hoje norteiam a atuação das nossas corporações militares, terá
trazido à lembrança de Sua Excelência memórias e ideias que carregam de volta
o assédio de recordações de um momento na sua vida em que ilusões e convicções
foram colocadas em dura, por vezes cruel provação. Quando as comportas do
sofrimento são abertas, por maior que seja a disparidade com as alturas do
poder, o contraste entre o feérico atual e as sombras de um passado que teima
reaparecer é por vezes demasiado violento para que possa ser sufocado no choque
das duas realidades. E, assim desgrenhada no gesto e aspecto, a memória
ressurge vívida, com a sua carga de sofrimento e de tristeza, que não mais podem
ser resgatadas. Por isso as lágrimas e quiçá o choro, que ela, enquanto desfia
as linhas preparadas para a ocasião, relembra e por isso revive no rictus
facial um fundo padecimento que os anos não logram sufocar.
( Fonte: O
Globo )
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