Esse dom da
natureza, essa encantadora baía que é tida por muitos como o cartão de visitas
do Rio de Janeiro, eu, menino ainda, a conheci com ondas límpidas e quase
sempre tímidas, que se transformavam em enorme e acolhedora piscina para quem
tivesse a fortuna de ter algum parente rico na família.
Em lancha de
certo porte, que podia até aventurar-se fora dos amplos limites desse grandioso
cartão postal do Rio de Janeiro – e que é célebre pelo mundo afora e comparada
à baia de Nápoles, embora pela conformação, esta última, malgrado o itálico
exagero na promessa[1], não lhe esteja à altura –
em geral, meus tios costumavam preferir as cercanias de Icaraí e do saco de São
Francisco.
Ali junto de
uns arrecifes, podíamos mergulhar e nadar em águas azuis, límpidas, quase
sempre tranquilas. Como o ponto era um tanto afastado da costa fluminense, não
tínhamos em geral companhia, e a experiência, se o mar estivesse calmo,
prometia horas agradáveis e sobretudo prazerosas, passadas em o que nos parecia
enorme piscinão de mãe Natureza.
Dirão os mais
moços do que eu – e são decerto muitos – que tais memórias, eu as teço com os
fios do tempo, que docemente irá expurgando o que vai enfeiando o quadro. Nada
mais longe da verdade. As lembranças da meninice, e, em especial, aquelas dadas
por mãe Natureza, não sóem envelhecer com o tempo. Elas são, para quem as tem,
uma espécie de farnel, sem propriedades alimentícias, mas que nos alimentam a
fantasia, mormente aquela que vem vestida com os trajes singelos de anos
luzentes que só nos voltam por cortesia da saudade.
Se tivera hoje
os instrumentos do passado, não me aventuraria nas pequenas expedições de
outrora. Não creio que de mim discordassem os que proporcionavam, ao menino
órfão, um passeio radioso em transparentes águas azuis. Não porque hoje estejam
todos deitados dormindo profundamente, mas por bem diverso motivo.
Como poderiam
eles conviver com a súbita e obscena transformação do paraíso em uma quase
cloaca? Não entenderiam de que maneira surgira tão drástica e horrenda mudança.
E, no entanto,
é estória simples, até singela, em que
desídia e falta de palavra se
misturam, e com isso vão pondo a perder o que nos legaram nossos maiores.
Aqui fementidos
e corruptos se dão as mãos. De cara lavada, tudo prometem, a ponto de tecer
suas historietas com os fios de refinada tecnologia. Pensam, no entanto, que
com isso está feita a sua parte. E deixam tudo ao deus dará.
Nada fazem.
Apenas assistem à decomposição e destruição de o que herdaram de
administradores quiçá mais responsáveis. E dessarte tudo prometem, embora nada
façam.
E a baía da
cidade maravilhosa vai virando não mais metafórica cloaca, ao acolher lixo e
suas infindáveis excrescências. E no lodo da incúria e do abandono, a baía irá
definhando e, por cúmulo, virando cultura de superbactérias.
E o que fazer,
se tal gente parece haver perdido até a vergonha, aquele brio que pode remover
montanhas e até conter e mesmo vencer o chorume?
( Fontes: Manuel
Bandeira, Poesia e Prosa, vol. 1, p.211; Folha de S. Paulo )
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