sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Pobre Baía da Guanabara

                                 

 
         Dentre os filmetes com que o Brasil e notadamente o Rio de Janeiro soube ganhar de Chicago e outros concorrentes a sede olímpica, terão decerto comparecido algumas vistas tiradas com engenho e arte da Baía da Guanabara.

         Esse dom da natureza, essa encantadora baía que é tida por muitos como o cartão de visitas do Rio de Janeiro, eu, menino ainda, a conheci com ondas límpidas e quase sempre tímidas, que se transformavam em enorme e acolhedora piscina para quem tivesse a fortuna de ter algum parente rico na família.

        Em lancha de certo porte, que podia até aventurar-se fora dos amplos limites desse grandioso cartão postal do Rio de Janeiro – e que é célebre pelo mundo afora e comparada à baia de Nápoles, embora pela conformação, esta última, malgrado o itálico exagero na promessa[1], não lhe esteja à altura – em geral, meus tios costumavam preferir as cercanias de Icaraí e do saco de São Francisco.

       Ali junto de uns arrecifes, podíamos mergulhar e nadar em águas azuis, límpidas, quase sempre tranquilas. Como o ponto era um tanto afastado da costa fluminense, não tínhamos em geral companhia, e a experiência, se o mar estivesse calmo, prometia horas agradáveis e sobretudo prazerosas, passadas em o que nos parecia enorme piscinão de mãe Natureza.

       Dirão os mais moços do que eu – e são decerto muitos – que tais memórias, eu as teço com os fios do tempo, que docemente irá expurgando o que vai enfeiando o quadro. Nada mais longe da verdade. As lembranças da meninice, e, em especial, aquelas dadas por mãe Natureza, não sóem envelhecer com o tempo. Elas são, para quem as tem, uma espécie de farnel, sem propriedades alimentícias, mas que nos alimentam a fantasia, mormente aquela que vem vestida com os trajes singelos de anos luzentes que só nos voltam por cortesia da saudade.

        Se tivera hoje os instrumentos do passado, não me aventuraria nas pequenas expedições de outrora. Não creio que de mim discordassem os que proporcionavam, ao menino órfão, um passeio radioso em transparentes águas azuis. Não porque hoje estejam todos deitados dormindo profundamente, mas por bem diverso motivo.

        Como poderiam eles conviver com a súbita e obscena transformação do paraíso em uma quase cloaca? Não entenderiam de que maneira surgira tão drástica e horrenda mudança.

       E, no entanto, é estória simples, até singela, em que  desídia e  falta de palavra se misturam, e com isso vão pondo a perder o que nos legaram nossos maiores.

       Aqui fementidos e corruptos se dão as mãos. De cara lavada, tudo prometem, a ponto de tecer suas historietas com os fios de refinada tecnologia. Pensam, no entanto, que com isso está feita a sua parte. E deixam tudo ao deus dará.

       Nada fazem. Apenas assistem à decomposição e destruição de o que herdaram de administradores quiçá mais responsáveis. E dessarte tudo prometem, embora nada façam.

       E a baía da cidade maravilhosa vai virando não mais metafórica cloaca, ao acolher lixo e suas infindáveis excrescências. E no lodo da incúria e do abandono, a baía irá definhando e, por cúmulo, virando cultura de superbactérias.

       E o que fazer, se tal gente parece haver perdido até a vergonha, aquele brio que pode remover montanhas e até conter e mesmo vencer o chorume?

 

 

( Fontes: Manuel Bandeira, Poesia e Prosa, vol. 1, p.211; Folha de S. Paulo )



[1] Ver a baía de Nápoles e depois morrer.

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