Era uma
espécie de ritual e como toda prática desse gênero continha um secreto desejo,
a um tempo humano e por isso natural,
mas também ingênuo, porque o passar dos dias – antes marcado por estações e
agora, com o aquecimento global – virou uma espécie de ficção, em que os
caprichos do clima, desencadeados pela mão pesada do homem, vão alterando tudo.
Mas, um
momento, por favor! A tal usança – se
não me engano, herdada do colonizador luso – já está proibida por outro invento
português, que é a burocracia. Se as regras que os seus escrivães deitam nem
sempre nos agradem, elas tem o condão de dar emprego – em geral inútil – a muita
gente.
No passado, o
súdito – e agora, o cidadão – não verá muita diferença no que esses senhores
aprontam, pois as ruas continuam perigosas, por mais que inchem taxas e
tributos municipais, estaduais e federais. Somos, é verdade, o país do impostômetro,
de que o letreiro, coitado não para um só instante – e aí não se veja homenagem
à provada locomotiva de São Paulo – mas à ânsia burra de sobrecarregar o povo,
posto que esse túrgido, disforme montante relembra a atávica ganância de um
poder que nos dessangra, sem na verdade querer que esse ouro se transforme em
um futuro melhor para a nossa boa gente. Assim, ao lado desse letreiro que não para
nunca, deveria também aparecer o ralo descomunal dessa fome tributária, que não
se transforma nem na miragem do saneamento básico, nem em hospitais que a todos
recebam sem exceção sob o doce olhar de dona saúde, nem em escolas decentes,
nem em logradouros seguros e limpos de toda espécie de lixo.
Revista
estrangeira andou espalhando uma verdade ignóbil a nosso respeito. Seríamos um
país de muitas leis, embora muitas não sejam cumpridas. Não tenho elementos
para comprovar ou refutar essa afirmação. Mas não é que desde o império
cunhamos a expressão ‘pr´a inglês ver’?
A última Copa do Mundo, que estava reservada para o hexa, trouxe, na
verdade, outras novidades para nós. Além dos múltiplos vexames das obras
inacabadas para receber as seleções (e as torcidas) estrangeiras, também
esquecemos de preparar-nos de forma tecnicamente adequada para arrancar o
caneco, que a grande maioria brasílica, já considerava cousa decidida. Além de
não tirar-nos as lições das partidas – como a chuva de gols alemães sobre o
nosso Portugal – transformamos o oba-oba da locução global como a via segura
para repetir o êxito da Copa das Confederações. Não foi tanto a maldição que
pesa sobre essa copinha que serve de vestíbulo para as coponas, mas a nossa
segurança, além do pensamento de que dispomos dos craques (e do técnico) para
garantir de saída a conquista!
É de
esperar-se que esse mega-vexame dos sete a um sirva para algo. Exportamos
jogadores para todas as seleções (ou quase) do planeta, e olvidamos de preparar
a prata da casa...
Mas voltemos à
vaca-fria. Posturas municipais nos impedem de jogar na rua o papelório velho.
Tais proibições, convém não discuti-las. Talvez o carioca – e quem sabe? o
brasileiro – invente maneiras inteligentes de lidar com a burocracia nesse ano
novo de 2015...
Não obstante
os zelos municipal, estadual e federal, nos perguntamos por que mãe natureza já não é mais tão gentil, e os
seus afagos por vezes se transformam em golpes, por vezes insidiosos e que
julgamos não merecer.
O bicho-homem
não entende, e com olhar perdido descobre o quanto o progresso pode ser
enganoso. A ironia do progresso e das fortes e inéditas sensações pode ser
dádiva ao revés. Ela traz os tornados que pensávamos confinados às planícies do
meio-oeste americano, e agora vemos perplexos a visitar-nos com a sua força
impiedosa.
Se os rigores
climáticos – que se comprazem em jogo incompreensível de invernos europeus,
canículas senegalescas, tremores de terra que por cá jamais se viram, e, sem
cuidar de lógica cadência, o desaparecimento das estações – nos confundem,
enquanto insuflam as ressacas – que vêm ameaçar as vilas praieiras e nos fazem
olhar o oceano menos como a morada de Iemanjá do que o antro das tsunamis...
Estaremos
mais em tempos de nênias e epicédios, do que de hinos e marchas triunfais ?
A dizer
verdade, não sei. Talvez seja o tempo de voltar às epopeias e aos tempos heroicos...
Até hoje, continuam de pé os cânticos homéricos, virgílicos, camonianos, sem
esquecer os dantescos...
Na verdade, o
Homem continua como a medida de todas – ou quase todas – as coisas. Temos assim
de acompanhá-lo de perto pela relevância que tem – e, infelizmente, isto vale não
só para o bem, senão igualmente para o mal.
Nesse
contexto, acho comovente o interesse que manifestam os nossos mais altos juízes
na fixação do respectivo salário para o ano entrante. Ministros vitalícios,
nomeados pela autoridade presidencial, e após passar por exame pro-forma do
Senado Federal (desde o início da República, apenas uma indicação para o
Supremo foi barrada) podem permanecer até os setenta se não desejarem
aposentar-se antes. Ultimamente, no entanto, mordidos talvez pela mosca da
carestia, têm feito propostas de aumento de ordenado, que vão muito além da
Trapobama.
E o mais
grave é que todos os juízes formam uma enorme escada, cujos vencimentos são
fixados a partir dos Ministros do Supremo.
Não é um
espetáculo gratificante assistir aos aumentos anuais a que se precipitam Suas Excelências dos três
poderes da República. Será comovente a rapidez da respectiva autoconcessão, que
chega a ser efetuada em um único dia.
Aos demais
mortais, não são reservados tais parâmetros. Quem deve assistir comovido a tal
cerimônia é o senhor dragão. Essas cerimônias de auto-concessão, se mostram o
ardor de tão altas autoridades trazem consigo o sal da ironia e a dúbia
qualidade de incrementos que ativam um mecanismo infernal de remarcações que
cada vez mais lembram aquelas menos nobres, mas também filhas da inflação, que
nos é dado presenciar na corrente infinda dos aumentos – de todos os serviços,
com as passagens de ônibus e dos demais transportes na sua fila anual da
ganância anualizada.
Por graça
de Dona Dilma, que cuidou de manter a inflação viva, a cada ano cresce a
sinfonia dos índices, dos serviços, dos supermercados e das feiras-livres.
A carestia
está de volta, com as suas diversas e espalhafatosas – por vezes cínicas -
roupagens. Estão todos vivos! Entramos
na roda-viva da inflação.
Em meio a
essa ignominiosa correria, nessa busca do tosão de ouro, que por mais altos e
relevantes que sejam as autoridades a receberem o dúbio prêmio de um aumento
que já sai diminuído das gavetas e dos contra-cheques federais, estaduais e
municipais, corre no povão a certeza de que a um canto cabe o registro de um
infausto evento:
Em todos
esses aumentos, lamentamos comunicar a morte lenta, e, na aparência inexorável,
do Senhor Plano Real. A cada ano, o
sentimos mais débil e fragilizado, ao lado da velha companheira – que também
inspira cuidados -, a Lei da Responsabilidade Fiscal.
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