quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Ao Morto Desconhecido


                                 
        Hoje,  trinta e um de dezembro,  dia comumente reservado a peculiar gênero de despedida. Davam adeus ao ano velho,  pensando  livrar-se do papelório, e dos encostos do ano velho,  jogando pela janela todos os trastes da burocracia.

        Era uma espécie de ritual e como toda prática desse gênero continha um secreto desejo, a um tempo  humano e por isso natural, mas também ingênuo, porque o passar dos dias – antes marcado por estações e agora, com o aquecimento global – virou uma espécie de ficção, em que os caprichos do clima, desencadeados pela mão pesada do homem, vão alterando tudo.

        Mas, um momento, por favor! A tal usança –  se não me engano, herdada do colonizador luso – já está proibida por outro invento português, que é a burocracia. Se as regras que os seus escrivães deitam nem sempre nos agradem, elas tem o condão de dar emprego – em geral inútil – a muita gente.

       No passado, o súdito – e agora, o cidadão – não verá muita diferença no que esses senhores aprontam, pois as ruas continuam perigosas, por mais que inchem taxas e tributos municipais, estaduais e federais. Somos, é verdade, o país do impostômetro, de que o letreiro, coitado não para um só instante – e aí não se veja homenagem à provada locomotiva de São Paulo – mas à ânsia burra de sobrecarregar o povo, posto que esse túrgido, disforme montante relembra a atávica ganância de um poder que nos dessangra, sem na verdade querer que esse ouro se transforme em um futuro melhor para a nossa boa gente. Assim, ao lado desse letreiro que não para nunca, deveria também aparecer o ralo descomunal dessa fome tributária, que não se transforma nem na miragem do saneamento básico, nem em hospitais que a todos recebam sem exceção sob o doce olhar de dona saúde, nem em escolas decentes, nem em logradouros seguros e limpos de toda espécie de lixo.

        Revista estrangeira andou espalhando uma verdade ignóbil a nosso respeito. Seríamos um país de muitas leis, embora muitas não sejam cumpridas. Não tenho elementos para comprovar ou refutar essa afirmação. Mas não é que desde o império cunhamos a expressão ‘pr´a inglês ver’?  A última Copa do Mundo, que estava reservada para o hexa, trouxe, na verdade, outras novidades para nós. Além dos múltiplos vexames das obras inacabadas para receber as seleções (e as torcidas) estrangeiras, também esquecemos de preparar-nos de forma tecnicamente adequada para arrancar o caneco, que a grande maioria brasílica, já considerava cousa decidida. Além de não tirar-nos as lições das partidas – como a chuva de gols alemães sobre o nosso Portugal – transformamos o oba-oba da locução global como a via segura para repetir o êxito da Copa das Confederações. Não foi tanto a maldição que pesa sobre essa copinha que serve de vestíbulo para as coponas, mas a nossa segurança, além do pensamento de que dispomos dos craques (e do técnico) para garantir de saída a conquista!

         É de esperar-se que esse mega-vexame dos sete a um sirva para algo. Exportamos jogadores para todas as seleções (ou quase) do planeta, e olvidamos de preparar a prata da casa...

        Mas voltemos à vaca-fria. Posturas municipais nos impedem de jogar na rua o papelório velho. Tais proibições, convém não discuti-las. Talvez o carioca – e quem sabe? o brasileiro – invente maneiras inteligentes de lidar com a burocracia nesse ano novo de 2015...  

         Não obstante os zelos municipal, estadual e federal, nos perguntamos por que  mãe natureza já não é mais tão gentil, e os seus afagos por vezes se transformam em golpes, por vezes insidiosos e que julgamos não merecer.

         O bicho-homem não entende, e com olhar perdido descobre o quanto o progresso pode ser enganoso. A ironia do progresso e das fortes e inéditas sensações pode ser dádiva ao revés. Ela traz os tornados que pensávamos confinados às planícies do meio-oeste americano, e agora vemos perplexos a visitar-nos com a sua força impiedosa.

         Se os rigores climáticos – que se comprazem em jogo incompreensível de invernos europeus, canículas senegalescas, tremores de terra que por cá jamais se viram, e, sem cuidar de lógica cadência, o desaparecimento das estações – nos confundem, enquanto insuflam as ressacas – que vêm ameaçar as vilas praieiras e nos fazem olhar o oceano menos como a morada de Iemanjá do que o antro das tsunamis...

         Estaremos mais em tempos de nênias e epicédios, do que de hinos e marchas triunfais ?

         A dizer verdade, não sei. Talvez seja o tempo de voltar às epopeias e aos tempos heroicos... Até hoje, continuam de pé os cânticos homéricos, virgílicos, camonianos, sem esquecer os dantescos...

         Na verdade, o Homem continua como a medida de todas – ou quase todas – as coisas. Temos assim de acompanhá-lo de perto pela relevância que tem – e, infelizmente, isto vale não só para o bem, senão igualmente para o mal.

         Nesse contexto, acho comovente o interesse que manifestam os nossos mais altos juízes na fixação do respectivo salário para o ano entrante. Ministros vitalícios, nomeados pela autoridade presidencial, e após passar por exame pro-forma do Senado Federal (desde o início da República, apenas uma indicação para o Supremo foi barrada) podem permanecer até os setenta se não desejarem aposentar-se antes. Ultimamente, no entanto, mordidos talvez pela mosca da carestia, têm feito propostas de aumento de ordenado, que vão muito além da Trapobama.

         E o mais grave é que todos os juízes formam uma enorme escada, cujos vencimentos são fixados a partir dos Ministros do Supremo.

        Não é um espetáculo gratificante assistir aos aumentos anuais  a que se precipitam Suas Excelências dos três poderes da República. Será comovente a rapidez da respectiva autoconcessão, que chega a ser efetuada em um único dia.

       Aos demais mortais, não são reservados tais parâmetros. Quem deve assistir comovido a tal cerimônia é o senhor dragão. Essas cerimônias de auto-concessão, se mostram o ardor de tão altas autoridades trazem consigo o sal da ironia e a dúbia qualidade de incrementos que ativam um mecanismo infernal de remarcações que cada vez mais lembram aquelas menos nobres, mas também filhas da inflação, que nos é dado presenciar na corrente infinda dos aumentos – de todos os serviços, com as passagens de ônibus e dos demais transportes na sua fila anual da ganância anualizada.

           Por graça de Dona Dilma, que cuidou de manter a inflação viva, a cada ano cresce a sinfonia dos índices, dos serviços, dos supermercados e das feiras-livres.

           A carestia está de volta, com as suas diversas e espalhafatosas – por vezes cínicas - roupagens.  Estão todos vivos! Entramos na roda-viva da inflação.

           Em meio a essa ignominiosa correria, nessa busca do tosão de ouro, que por mais altos e relevantes que sejam as autoridades a receberem o dúbio prêmio de um aumento que já sai diminuído das gavetas e dos contra-cheques federais, estaduais e municipais, corre no povão a certeza de que a um canto cabe o registro de um infausto evento:

          Em todos esses aumentos, lamentamos comunicar a morte lenta, e, na aparência inexorável, do Senhor Plano Real. A cada ano, o sentimos mais débil e fragilizado, ao lado da velha companheira – que também inspira cuidados -, a Lei da Responsabilidade Fiscal.
 
 

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