A princípio, não se deu muita atenção. Mas com o
passar do tempo, uma nova realidade veio infernizar a vida nos domínios de Vladimir
Putin. Como modesto observador desta realidade, a coisa me escapou de
início. A guerra na Tchetchênia se estende como fenômeno que os russos mais
consideram como problema interno no império moscovita. A revolta no Caucaso se prolonga
faz muito, e os observadores já se acostumaram a considerá-la como um daqueles
conflitos de baixa intensidade, que atazanam a vida de tantos países. Por
vezes, ele logra mostrar a carantonha na própria metrópole, mas o mais comum
está em que se demore na área contestada, com a sua presença mais intuída na
opressa atmosfera ambiente, do que em acontecimentos porventura sangrentos.
Não se poderia falar que o governo de
Putin tenha trazido atmosfera de paz para o império russo. Uma vez assenhoreado
do poder, o ex-funcionário da KGB
trouxe novos ares para os domínios do Kremlin.
As ilusões democráticas do período de Boris Ieltsin não tardaram a ceder
espaço para outra atmosfera, que pouco tinha a ver com a liberdade que antes
prevalecera.
O regime autoritário de gospodin Putin não parou de crescer, e
se as liberdades de antes as levou o vento, com a repressão impiedosa dos
comícios e passeatas, o controle maior dos meios de comunicação, e a estuante
presença parlamentar na Duma da nova
ordem, tampouco tardou a surgir um movimento que levasse além-fronteiras a
estranha força do autoritarismo, que se sente impelido a projetar entre os
infelizes vizinhos a pesada mão do imperialismo.
Desde a assunção do novo Império, o
entorno do gigante russo voltara a sentir-lhe a sôfrega manopla, como
adumbraram os episódios da Transnistria, da Abkazia e Georgia do Sul.
A queda de Viktor Yanukovych, provocada
pela guerra de barricadas da praça Maidan,
não tardaria a enodoar o futuro que se augurara promissor da nação ucraniana.
Os desenvolvimentos do não do
povo ucraniano à aliança com Moscou, atada à mediocridade de união aduaneira
com outros satélites do Kremlin, em
primeiro momento de exultância semelhou varrida do mapa por levante de
barricadas remêmoro do romantismo do século XIX.
O acordo com a União Européia – que
Yanukovych enjeitara – voltou com as suas promessas de comércio, progresso e
tecnologia que em passageira efusão semelharam ao alcance da mão.
No entanto das brumas do norte surgiu
um monstro que não estava no visor nem de Kiev, nem de Bruxelas, mas que o
governo Putin cedo transformou em deprimente e desalentadora visão para os
patriotas ucranianos.
Barack Obama, por circunstâncias que
o seu antecessor George W.Bush
entenderia bem, não pôde ajudar muito os patriotas ucranianos, além de apodar
Moscou de poder regional.
Não esqueçamos o enxame de sanções
direcionadas e pontuais com que Washington procura amarrar o Gulliver do Kremlin. No entanto, esse
tipo de reação tem valor relativo, embora contribua para incomodar a Federação
Russa. É discutível, contudo, que além
de acirrar os ânimos, possa criar condições para o estabelecimento de atmosfera
de paz.
Sem embargo, a ambição de Vladimir V.
Putin pode trazer no seu bojo a arma secreta que vá afinal abrir-lhe a mente e
mostrar-lhe que não é por aí que se descerram os prados do progresso e do
desenvolvimento do povo russo.
Ao quebrar o botijão com os ventos da
guerra, a ambição de Putin logrou objetivo que propriamente não estava no seu
visor.
Não foi por acaso que o Imperador Augusto fez tanta questão de
levantar o Ara Pacis (Altar da Paz).
Depois das agruras da guerra civil, pareceu ao novel Imperador que o Povo de
Roma, senhor do universo, merecia fruir das benesses da paz.
Uma passagem incidental da escritora Masha Gessen, que é escritora merecedora
de respeito e admiração, me chamou a atenção para aspecto de interesse. A
política do Presidente russo tem levado a guerra para o entorno da Federação
Russa. A infelicidade, a morte, e a consequente insegurança tem visitado os
países vizinhos, a começar pela Ucrânia.
Mas a referência feita por essa
corajosa opositora de Putin - a ela
devemos biografia do atual Senhor do Kremlin[1] - detém outro elemento, que nem sempre
desperta a atenção que merece. Apesar de
ter sido levado além-fronteiras da Rússia, como um boomerang o conflito também atinge o território do agressor. Daí o Ara Pacis, de Augusto, que ainda subsiste com as suas lápides, guarda
relevância até os dias de hoje, em que tantos monumentos do estado universal
romano já viraram pó. Octavio, que o ventre da terminal guerra civil do Império
gestara, não desejava que a Pax Romana afinal alcançada recebesse apenas
lápide inconsequente. O primeiro imperador não desejava que as benesses da paz
e sua relevância escapassem a seus súditos.
Enganam-se, por conseguinte, os
que crêem no conto de que as guerras não se voltem para quem as provoca, a
começar pelos cadáveres de seus soldados, assim como pelos inúmeros efeitos
colaterais que a quebra da ordem da paz costuma trazer com o seu rastilho não
só de mortes, mas de sofrimento psicológico e material, sem falar nas existências atingidas por males
ainda mais cruéis do que a cega brutalidade do conflito.
Assim, a anexação da Crimeia –
a que a diplomacia de D. Dilma em má
hora se associou para vergonha de nossos maiores – abriu mais uma página de
tropelias e ilegalidades, a que se tem seguido outras.
Os crimes se sucedem – como o
nefando cometido contra a Malaysian
Airlines – mas a agressão contra a Ucrânia multiplica os ovos da serpente.
A última novidade do arsenal
de Vladimir Putin é o chamado ataque
imperfeito. Procura-se desestabilizar a nação ucraniana – notadamente na região
leste – através de operações incompletas. Assim, se alimenta a secessão pela
metade. Diante de uma força superior, Kiev não se anima a tentar restaurar a
própria autoridade. Deixando a conquista pelo meio, Moscou sinaliza a Kiev
que de pouco valeria intento restaurador, porque não trepidaria em retomar o
conflito, que de propósito deixara ficar inacabado.
A guerra pode ser ilegal –
afinal a legislação russa proíbe que conscritos sejam forçados a combater sem
autorização expressa – mas prevalece de qualquer forma.
O exame do mapa da Ucrânia
oriental – com as suas repúblicas autônomas- representa na verdade um terreno
minado, em que o faz-de-conta de republiquetas de opereta lá está para fazer o
projeto de uma Ucrânia independente enlanguescer, enquanto assim aprouver ao
Senhor do Kremlin.
Mas pairando no ar – e não
há por aí só aviões de carreira – o câncer da guerra, com a sua colheita
maldita de insegurança, incerteza e inflação não limitará decerto os seus
pútridos ares aos infelizes ucranianos. Há oportunidade para todos, inclusive
para os mais zelosos defensores do projeto de concórdia do Presidente Vladimir Vladimirovich
Putin.
(Fontes: Artigos de Tim Judah (The Specter facing Ukraine) e George
Soros (Wake up, Europe) in The New York
Review of Books, ns. 16 e 18.)
[1] O Homem sem Face – A
improvável ascensão de Vladimir Putin (Riverhead Books. Penguin Group, New
York, 2012, 314 pp.)
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