O leitor conhece a minha
opinião sobre a reeleição. Respeito Fernando
Henrique Cardoso, que sempre me deu
provas da sua fé democrática, e de seu sentido republicano, que não se traduz
apenas em aparências, mas também no comportamento do dia-a-dia.
No
entanto, por estar acima do comum dos mortais, FHC terá errado ao aplicar para consumo geral a extensão da
faculdade de prorrogar o respectivo mandato.
Com o seu
conhecimento humanista, o culto discreto da ironia – que é a visão facetada e
filtrada das humanas idiossincrasias – o professor e sociólogo bem faria se não
abrisse esta cancela na terra de Pindorama.
A nossa
história política, se para alguns pode parecer tragicomédia, a deusa Túxe não nos foi de todo adversa. Se o
jovem Imperador acedeu em pagar ao velho Pai uma inexistente dívida,
os cronistas compreenderam o suposto dever filial. Se o tempestuoso primeiro
reinado cuidou de preservar os limites do Império (com a nota de pé de página
da Cisplatina, por culpa, dizem, da Domitila)
– e já não foi pouco – e as regências trina e uma nos trouxeram o digno Padre Feijó, o hábil Marquês de Olinda. De permeio, começou a
luzir o gênio de Caxias com as vitórias sobre as revoltas separatstas, o que
diremos do aparente remanso do Segundo Reinado. Encetado pelo famoso ‘quero já!’ do adolescente, neles se
sucederam, com habilidade e discrição o que se chamaria depois dos estadistas
do longo reinado de Pedro II.
Sabendo
intercalar os liberais – que o encetariam em 1840 e o terminariam para geral
infortúnio em 1889 – e conservadores, enquanto não nos contaminou a questão
militar pelas dubiedades do Marechal Deodoro,
o Brasil seria, na palavra célebre de estadista portenho, a única república
sul-americana. Foram quase cinquenta anos de democracia – censitária, é
verdade, mas conforme os mores oitocentistas, e com um Soberano que, por
democrata ,suportava excessos que não lhe mereciam.
Na
primeira fase da República, luziu o Barão do Rio Branco, quase
unanimidade nacional – no Brasil, muitos consideram burro o apoio unívoco. Recebendo
o facho da diplomacia de Estado, com que o segundo Império concluira a obra de Alexandre
de Gusmão, brasileiro, mas moço de escrivaninha de D. João V – que com
risco magnífico de gerações de bandeirantes e padres matemáticos - nos legou o
Tratado de Madri, José Maria da Silva Paranhos do Rio Branco que no Palácio
Itamaraty colhera os frutos plantados por tantos silentes diplomatas e por
infatigáveis negociadores, como D. Duarte
da Ponte Ribeiro, iria morrer no acanhado salão, transformado em pouso e
gabinete, na manhã de dez de fevereiro de 1912.
Rio Branco
se transforma – e não da noite para o dia – em unanimidade nacional, construída
por vitórias arbitrais, em que o estudo e a habilidade diplomática, com os
contributos de gerações de diplomatas, iria guindá-lo a espaços que desafiam a
definição, embora possam irritar a aurea
mediocritas que costuma seguir.
Nos passos
largos da história, a República Velha cederia com seus carcomidos, assistiria
no seu carro rumo ao exílio a partida de Washington
Luiz, na ritual companhia do Cardeal Sebastião Leme. Viriam os tempos novos
da Revolução de Trinta, sob a chefia de Getúlio Vargas, que fora Ministro da
Fazenda do paulista Washington Luiz, e deixava a presidência do Estado do Rio
Grande do Sul.
Nas águias
do Palácio do Catete, Getúlio ficaria, por primeira vez, quinze anos, e depois
do interregno em São Borja voltaria para entrar na história, a despeito de todo
o fel e o indescritível encarniçamento de uma soberba frente de militares
ambiciosos e da pequenez da imprensa de então. Nunca nenhum brasileiro teria
comparável funeral – nem mesmo Juscelino Kubitscheck nos largos
espaços de Brasília. Sem floreios, nem hipocrisias naquele aziago 24 de agosto
de 1954 a champanha dos conspiradores se transformaria em água salobra,
enquanto o Povo que pode até enganar-se por um tempo experimentava o seu choque
de verdade, ao sentir o quanto perdera ao cabo de um tiro, tão solitário quanto
certeiro, de quem saía da vida para entrar na história. E como pode ser belo e
ressuscitador essas confluências de humanos rios, saídos sabe-se lá de onde,
tangidos pelo nojo e pela incômoda, difusa sensação de haver permitido que tão
clamorosa injustiça ora se transformasse em rito de passagem, preito da
nacionalidade, que ora se sentia verdadeiramente órfã de quem vencera tudo e
todos, e sobretudo a morte, entrando pelas avenidas de um Rio de Janeiro que
acreditavam jamais seria o mesmo, levado pelas mãos e braços dos que confluíam
do lugar nenhum e de toda parte para assinarem com anônimos garranchos o físico
atestado de meninos, eu vi!
Soi acontecer
que aos grandes sucedem os pequenos, que como personagens de estórias alheias,
repontam, se espadanam, mas para seu desalento só podem deixar as marcas
pequenas das mentes respectivas.
Mas meu
ilustre passageiro desse bonde que não mais circula, o belo tipo faceiro que o
senhor tem a seu lado pensou ver, no espaço de vida que as Parcas lhe
concederam, gente importante e até de nomeada.
Fausto Barreto e Carlos de Laet, da sua Antologia Nacional, sabiamente omitiram os
escritores vivos. E, confessam judiciosos, que foi de propósito. Ao retomar
essas longas linhas, peço vênia a quem inseri, a despeito de contrariar regra
que, por toda parte, insiste em reclamá-lo. E, sem embargo, conto a bonomia e a
grandeza de espírito de Fernando Henrique, a quem sequer
apequenou a palavra de despedida de um grande amigo.
Não poderia
decerto calar sobre a figura de Juscelino Kubitschek de Oliveira, a quem tive o
sumo prazer de fruir – e de perto – da respectiva presença. Do seu consagrador
enterro – a que também levou o braço anônimo de um Povo que nunca deixou de
amá-lo e pranteá-lo já tive a honra de escrever
nessas etéreas páginas.
De Juscelino ou de JK, como o quis o Povão, pude
ver e sentir a grandeza nos momentos por que fê-lo passar a ditadura militar.
Jamais dele ouvi palavra que descesse à queixa até compreensível das baixarias
que lhe foram cometidas. Guardo para sempre mais do que a lembrança o orgulho
de que me apertasse a mão e me abraçasse, porque atravessei o círculo de mofina
sala com que pululam os aeroportos, para saudá-lo à frente de todos. E o abraço
com que me correspondeu, nada tinha de político, pois Juscelino prezava e
valorizava tais manifestações, mesmo de um modesto diplomata, porque se alevantavam
muito além da circundante mesquinharia.
De Juscelino,
em verdade, os adjetivos são desnecessários, quase inúteis. Como nas fantasias
de carnaval, só costumam empavonar-se os que sem elas quedam invisíveis. Por
isso, o mineiro das Alterosas caminha célere para continuar crescendo, tal a
relevância dos seus cinquenta anos em cinco. Dizem que mandaram matá-lo. E se non è vero, è molto ben trovato, pois a grandeza de JK está aí para
ficar, com todos os seus derivativos de democracia, lungimirança, capacidade
ideativa e construtiva, sem falar de sua perene boa vontade, a anistiar gente
pequena que tentava derrubá-lo, e de toda a sua enorme inteligência e
generosidade.
E, com as
minhas escusas ao paciente leitor, encareço que se demore ainda um tanto, pois
já desta gávea possa até animar-me a pedir alvíssaras ao velho capitão.
Meu caro
Presidente Fernando Henrique,
com a sua
exceção, nenhuma dessas figuras que enobrecem e dão sentido ao Brasil, carecem
do penacho da reeleição. Antes que me venham obtemperar com os avatares de
Getúlio Vargas, peço vênia para discordar, porque o seu projeto foi único,
malgrado os diversos modos porque percorreu o próprio caminho, e para isso
basta compulsar a grande trilogia de Lira Neto.
Na última eleição, verdadeira pantomima
em que o Brasil sofreu em dois turnos, o primeiro pela destruição impiedosa de
quem era culpada de trazer boas ideias, e que tivera a pertinácia de
prosseguir, sem embargo do aparelhamento do Estado, e das pedras que lhe
jogaram à frente; e no segundo, em que o marqueteiro queria impingir-nos que o
governo a ser discutido era o de Vossa Excelência, e não o dílmico desgoverno.
Pois vejam
só, a falácia da reeleição ficou pendente por mais nervosos minutos que o
círculo de Lula da Silva pensaria fosse possível. O Brasil se cindiu em dois,
mas ao cabo de tudo, as palavras de Marina, que pode parecer frágil mas vejam a
mensagem que teima em transmitir.
Será do
norte que virá a boa nova? Ou dos grotões de Minas, levada pelo facho de Aécio?
Breve,
para desgosto dos marqueteiros, e de seus filmetes que prefiro não definir, a
reeleição, essa súbita praga nacional – que deixa a velha saúva para trás – há
de virar uma nota de pé-de-página de nossa história. Pois por aqui, que me perdoe FHC, ela não merece guarida, ainda mais
pela variegada fauna que tem produzido (federal, estadual e municipal). Se ela
nunca existiu na Terra de Santa Cruz, na Colônia, no Império e em todas as
repúblicas que nos engrandeceram (e algumas infestaram), a hora está chegando
de despedirmos dessa malta que não veio para engrandecer a terra dos seus
maiores, mas sim para infernizar-nos a vida com a respectiva sede de poder, sob
o amparo de imensa, sólida, inquebrantável,
perniciosa e pululante mediocridade.
Chega de imitação latino-americana! Voltemos a gritar por um Brasil
democrático, livre dos aparelhamentos, das alianças espúrias e que não pensa em
eternizar-se no chavascal da reeleição.
Fontes: Jaime Cortesão (Alexandre de Gusmão e o
Tratado de Madri); Pedro II (Heitor Lyra); Alvaro Lins (Rio Branco), Lira Neto
(Getúlio – 3 vols.); C. Bojunga (Juscelino Kubitschek); Fausto Barreto e Carlos
de Laet (Antologia Nacional); Almeida Garrett: XXVI- A Nau Catarineta
(pp.963/965)
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