Depois da crise da invasão da
Crimeia, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Sergei Lavrov, pareceu agitar o ramo de
oliveira, ao repisar que o Kremlin
não pretende invadir a Ucrânia oriental (como o fez no processo da anexação da
Crimeia), mas apenas criar condições de reforço da paz nas relações entre
Moscou e Kiev.
Malgrado as
aparências, a exigência russa nada tem de anódina. Na recente entrevista em
Paris com o Secretário de Estado John
Kerry, Lavrov levantou a bandeira da federalização.
Uma Ucrânia
federalizada semelha, à primeira vista, condição razoável. Dada a virtual cisão
entre a metade ocidental, de fala ucraniana, e próxima da Europa de Bruxelas, e
a outra parcela, povoada em variadas, porém significativas proporções, por
gente de etnia russa, e onde o russo é a língua franca, fica difícil denegar de
pronto esse requisito que semelha tão democrático e, de resto, tão comum no
mundo civilizado.
Sem embargo,
neste vasto território a aplicação de tais normas pode implicar em molestas
consequências, que, para os desavisados, ou não enfronhados no espírito
oriental do poder moscovita – em que a sua larga e imperial presença em tantos rincões
não é recôndita lembrança de épocas perdidas na comprida noite da história –
constitui questão a ser tratada com extrema sutileza e, sobretudo, muito
cuidado.
Dessarte, essa
condição prima facie tão lógica pode
trazer no seu bojo consequências não só imprevisíveis, mas também molestas e
perigosas.
O ponto crucial
será determinar que espécie de federalização se acha em tela. Se, como deseja o
Kremlin, a estrutura federal do
estado ucraniano implicaria em regiões autônomas e com poderes de negociação além-fronteiras,
a ‘solução’ de Lavrov constituiria na
prática um esquema de cavalo de Tróia,
com o enfraquecimento da Ucrânia como estado digno deste nome.
Não por
estranha coincidência, Moscou tem feito valer o seu arbítrio imperial no que
tange a países que se independizaram da antiga União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS), quando da implosão
da ex-superpotência em 1991. Posto que haja outras antigas repúblicas que
lograram separar-se do jugo moscovita, neste caso semelham exemplos oportunos a
Armênia, o Azerbaijão, a Geórgia e a
Moldavia.
Se cotejados
com a Ucrânia, ressalta de imediato a grande diferença em termos demográficos e
de área territorial. Os quatro países acima que se acreditaram soberanos, por
força do corte do vínculo a Moscou, logo aprenderam a amarga lição dos que,
parafraseando Lenin, sofrem da doença
infantil da liberdade política.
Se tais nações
continuam formalmente independentes, os sonhos no exercício de soberania plena
foram celeremente dissipados por ações pontuais realizadas ou manipuladas a
partir das muralhas do Kremlin.
Não há negar
que a Ucrânia, uma nação de 45 milhões de habitantes, representa para gospodin Vladimir V. Putin desafio de outra ordem de grandeza. No
entanto, tampouco se pode ignorar que a república de Kiev já sofreu a primeira amputação, e não mais tem a população
acima referida. É, decerto, melancólico asseverar, mas, por ora, semelha
difícil não admitir que o homem forte de Moscou implementou com êxito o seu
golpe de mão inicial. Por enquanto, ele faz pouco das sanções aplicadas pelos
Estados Unidos, pela União Européia e das medidas palavras de censura de países
como a Alemanha da Chanceler Angela
Merkel et al.
Essa inebriante
sensação de haver logrado a primeira reinação sem perdas materiais e pensando
livrar-se das sanções aplicadas com a desenvoltura de quem se livra de incômodos
insetos é uma faca de dois gumes. O blefe bem-sucedido no jogo de poker é também potencial armadilha,
porque inibe a cautela enquanto predispõe a jogadas ainda mais arriscadas
diante de adversário (ou inimigo) de que julga ter razões para menosprezar.
O fato de
possuir arsenal termonuclear, herdado da ex-superpotência, é inegável trunfo no
raciocínio do autoritário Putin. Se
já o comparei a Benito Mussolini, e
não só pela postura, os lances publicitários e o atrevimento, e se não cabe
acenar-lhe com outras feições da biografia do Duce, importa não esquecer que, ao jogar com imponderáveis, o Senhor do Kremlin corre o risco de ter pela frente reações ou
desenvolvimentos que Sua Excelência não computara.
Dispor de tal
armamento induz seus adversários a muita cautela. Sem embargo, um realista
como Putin não há de ignorar que, se o arsenal lhe confere status e poder de deterrência, a sua utilização para outros fins é
altamente desaconselhável. Por isso, se a símile se afigura permissível,
Vladimir dispõe de brinquedo magnífico que, na prática, deve ficar bem guardado
nos arsenais da segurança máxima.
Trocando em
miúdos, portanto, gospodin Putin tem – pela peculiar lógica do brinquedo - de valer-se
exclusivamente de meios convencionais. Há limite para os recuos de um
adversário a que, supostamente, se desejaria intimidar e, ainda pior,
desmembrar.
(a continuar)
(Fonte subsidiária: The New York Times)
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