sexta-feira, 11 de abril de 2014

Putin e a Ucrânia (II)

                               
 
        Depois da crise da invasão da Crimeia, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Sergei Lavrov, pareceu agitar o ramo de oliveira, ao repisar que o Kremlin não pretende invadir a Ucrânia oriental (como o fez no processo da anexação da Crimeia), mas apenas criar condições de reforço da paz nas relações entre Moscou e Kiev.

        Malgrado as aparências, a exigência russa nada tem de anódina. Na recente entrevista em Paris com o Secretário de Estado John Kerry, Lavrov levantou a bandeira da federalização.

        Uma Ucrânia federalizada semelha, à primeira vista, condição razoável. Dada a virtual cisão entre a metade ocidental, de fala ucraniana, e próxima da Europa de Bruxelas, e a outra parcela, povoada em variadas, porém significativas proporções, por gente de etnia russa, e onde o russo é a língua franca, fica difícil denegar de pronto esse requisito que semelha tão democrático e, de resto, tão comum no mundo civilizado.

       Sem embargo, neste vasto território a aplicação de tais normas pode implicar em molestas consequências, que, para os desavisados, ou não enfronhados no espírito oriental do poder moscovita – em que a sua larga e imperial presença em tantos rincões não é recôndita lembrança de épocas perdidas na comprida noite da história – constitui questão a ser tratada com extrema sutileza e, sobretudo, muito cuidado.

       Dessarte, essa condição prima facie tão lógica pode trazer no seu bojo consequências não só imprevisíveis, mas também molestas e perigosas.

       O ponto crucial será determinar que espécie de federalização se acha em tela. Se, como deseja o Kremlin, a estrutura federal do estado ucraniano implicaria em regiões autônomas e com poderes de negociação além-fronteiras, a ‘solução’ de Lavrov constituiria na prática um esquema de cavalo de Tróia, com o enfraquecimento da Ucrânia como estado digno deste nome.

       Não por estranha coincidência, Moscou tem feito valer o seu arbítrio imperial no que tange a países que se independizaram da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), quando da implosão da ex-superpotência em 1991. Posto que haja outras antigas repúblicas que lograram separar-se do jugo moscovita, neste caso semelham exemplos oportunos a Armênia, o Azerbaijão, a Geórgia e a Moldavia.

       Se cotejados com a Ucrânia, ressalta de imediato a grande diferença em termos demográficos e de área territorial. Os quatro países acima que se acreditaram soberanos, por força do corte do vínculo a Moscou, logo aprenderam a amarga lição dos que, parafraseando Lenin, sofrem da doença infantil da liberdade política.

       Se tais nações continuam formalmente independentes, os sonhos no exercício de soberania plena foram celeremente dissipados por ações pontuais realizadas ou manipuladas a partir das muralhas do Kremlin.

       Não há negar que a Ucrânia, uma nação de 45 milhões de habitantes, representa para gospodin Vladimir V. Putin desafio de outra ordem de grandeza. No entanto, tampouco se pode ignorar que a república de Kiev já sofreu a primeira amputação, e não mais tem a população acima referida. É, decerto, melancólico asseverar, mas, por ora, semelha difícil não admitir que o homem forte de Moscou implementou com êxito o seu golpe de mão inicial. Por enquanto, ele faz pouco das sanções aplicadas pelos Estados Unidos, pela União Européia e das medidas palavras de censura de países como a Alemanha da Chanceler Angela Merkel et al.

       Essa inebriante sensação de haver logrado a primeira reinação sem perdas materiais e pensando livrar-se das sanções aplicadas com a desenvoltura de quem se livra de incômodos insetos é uma faca de dois gumes. O blefe bem-sucedido no jogo de poker é também potencial armadilha, porque inibe a cautela enquanto predispõe a jogadas ainda mais arriscadas diante de adversário (ou inimigo) de que julga ter razões para menosprezar.

      O fato de possuir arsenal termonuclear, herdado da ex-superpotência, é inegável trunfo no raciocínio do autoritário Putin. Se já o comparei a Benito Mussolini, e não só pela postura, os lances publicitários e o atrevimento, e se não cabe acenar-lhe com outras feições da biografia do Duce, importa não esquecer que, ao jogar com imponderáveis, o Senhor do Kremlin corre o risco de ter pela frente reações ou desenvolvimentos que Sua Excelência não computara.

      Dispor de tal armamento induz  seus adversários a muita cautela. Sem embargo, um realista como Putin não há de ignorar que, se o arsenal lhe confere status e poder de deterrência, a sua utilização para outros fins é altamente desaconselhável. Por isso, se a símile se afigura permissível, Vladimir dispõe de brinquedo magnífico que, na prática, deve ficar bem guardado nos arsenais da segurança máxima.

      Trocando em miúdos, portanto, gospodin Putin tem – pela peculiar lógica do brinquedo - de valer-se exclusivamente de meios convencionais. Há limite para os recuos de um adversário a que, supostamente, se desejaria intimidar e, ainda pior, desmembrar.

                                                                                                    (a continuar)

 

(Fonte subsidiária:  The New York Times)

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