Ainda nos anos cinquenta a rua Saint Roman – ladeira que sai da Sá
Ferreira e sobe o morro – era uma via tranquila, ladeada por casas de classe
média. Recordo-me que certa feita, junto com amigos e colegas, estive numa
dessas residências, para ver sessão de cinema de diplomata brasileiro. A
própria Sá Ferreira era outra rua calma, ladeada por prédios de qualidade,
muitos deles dando as costas para o morro onde ainda não havia a favela do
Pavão-Pavãozinho.
Não muito depois
todo aquele entorno de serenidade se modificaria. Com a abertura do túnel Sá
Freire Alvim – ligando a artéria da Barata Ribeiro à Raul Pompeia – essa
última, de plácida rua, praticamente sem tráfico, foi transformada em via de
ligação não só entre o Posto Seis e o restante de Copacabana, mais também daria
acesso através da Rainha Elizabeth ao Arpoador e sobretudo Ipanema.
Começava, assim,
a transformação daquele final de Copacabana, eis que ruas de bairro antes
sonolentas e aprazíveis foram repuxadas para finalidades que até então se
quedavam distantes de suas calçadas bem-cuidadas e que muita vez pareciam sair
de um poema de Drummond acerca dos encantos dos arrabaldes.
As mudanças nessa
vizinhança – cujos braços hoje vão dos contrafortes de Ipanema e Lagoa, de um
lado, e do entorno da Sá Ferreira e da Bulhões de Carvalho, entre os postos
cinco e seis de Copacabana, de outro - têm o seu epicentro na favela do
Pavão-Pavãozinho. Na política de pacificação das comunidades no Rio de Janeiro,
levada à frente pelo Secretário José Mariano Beltrame, também essa ganhou a sua
UPP, que é o símbolo-distintivo da
entendida articulação da antiga favela com o asfalto da cidade.
Para muitos, as UPPs são a sinalização da transformação
– uma espécie de superação da cidade
partida de que nos falara, de forma memorável, o cronista Zuenir Ventura.
No entanto, as Unidades de Polícia Pacificadora,
distribuídas pelo Rio de Janeiro, desde que tal política foi encetada na favela
do Morro de Santa Marta, se têm sido vetores de esperança – e não só para as
comunidades em que foram implantadas – vêm até o presente se espichando em uma
trajetória, na qual a confiança em melhores dias tem repetidas vezes sido
cruzada por disturbantes imagens de suposta reencarnação daquelas aldeias
Poniatowski, que marcaram a longínqua visita da Tzarina Catarina a Grande a
vastas glebas de seu Império.
Os jornais de
hoje e ontem a tevê trouxeram com a brutalidade costumeira dos dias correntes a
revolta das comunidades do Pavão-Pavãozinho, pela morte de um seu morador,
integrante do programa ‘Esquenta’ de
Regina Casé, encontrado morto em creche dessa favela. Douglas Rafael da Silva
Pereira, de 26 anos, fazia parte do elenco desse programa vespertino da Rede Globo, e foi o estopim do protesto,
pela suspeita de ter sido espancado pelos PMs
da UPP.
A indignação
dessa gente diante de o que seria ulterior violência da guarnição da Unidade
Pacificadora veio súbita e com a força das reações desde muito sopitadas. O
protesto abarcou toda a vizinhança, fechando a estação de metrô, General Osório,
o túnel Sá Freire Alvim (em que se abrigaram as forças da PM), e as demais
artérias dos postos cinco e seis de Copacabana, além dos quarteirões de Ipanema
servidos pelas ruas e avenidas bloqueadas.
Quiçá o maior
símbolo do desafio que confronta a dita política de pacificação esteja inserido
em duas discretas linhas de chamada de
primeira página da Folha de S. Paulo:
“Cercados
na UPP do morro, dez PMs foram resgatados pelo BOPE”.
É difícil não ver nessa imagem o que realmente
confronta a política de pacificação do
Secretário Beltrame. Enquanto a P.M.
for considerada um quisto dentro da comunidade, um fautor de discordância e
revolta ao invés de promotora de união,
o simbolismo da imagem – de que só o Batalhão de elite da PM tem condições de salvar os PMs da gente a que são supostos
proteger – não faltarão indícios e chamados para que se reforme essa política,
de maneira a que seja um vetor de paz e de reintegração das comunidades das
favelas dentro da cidade grande.
Senão a Cidade Partida de Zuenir Ventura
continua a prevalecer, com todas as explosões de uma raiva que não é nem
entendida, nem resolvida, com mastros e bandeiras, a tremularem ao vento.
(Fontes: O Globo,
Folha de S. Paulo)
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