quarta-feira, 30 de abril de 2014

A Queima dos Ônibus

                          

        O vezo não é de hoje, mas agora o problema ultrapassa qualquer limite – se limites pode haver nesse gênero de atividade criminosa.
        Nos últimos tempos, transformou-se em acontecimento corriqueiro a queima dos ônibus. Qualquer motivo se afigura válido para os incendiários, em geral moradores em comunidades pacificadas ou não. Quando algo ocorre de ruim ou que seja atribuído a ações de policiais, já se transformou em espécie de reflexo automático que um grupo, em geral de jovens, desça ao asfalto, para vingar-se de infausta ocorrência ou de suposta ação em geral da polícia militar, direta ou indiretamente ‘causando’ a morte de alguém da favela em apreço. E, como nos antigos sacrifícios, o sacrifício expiatório atingirá um número variável de coletivos, dependendo da importância da vítima.

        O grupelho pode estar agindo por conta própria, ou a mando do tráfico.  Talvez pela sua disponibilidade, o alvo preferido é o ônibus. Pouco importa que já tenha passageiros. Devem julgar essa ação criminosa muito fácil, mas agora virou recurso quase automático, de modo que o número de ônibus incendiados aumenta em progressão não mais aritmética, mas geométrica.
        Aqui a relação de causa e efeito faz parte menos da razão (se há alguma envolvida nesses atos), do que de difusa consciência de que os ônibus trafegam no asfalto, na cidade e não nos morros, em que vivem as comunidades. É apenas uma teoria para procurar entender ato que não tem sentido nem motivação racional e lógica. Aí entra a paixão, o animus que não se detém em motivações lógicas e fundadas, ou pelo menos amparadas em percepção de responsabilidade da outra parte.

       Portanto, esse triste fenômeno que já se espalhou por todas as grandes cidades desses brasis nada tem a ver com ações de fazer justiça pelas próprias mãos, como, v.g., nas penas de talião. Eis uma forma das mais rudimentares e, portanto, bárbaras de fazer a outra parte pagar por suposta falta ou crime cometidos. E, no entanto, essa forma primitiva de ‘fazer justiça’ pode apresentar uma motivação para a sua ação (por mais condenável que ela seja), enquanto a queima de ônibus atinge a pessoas e empresas que objetivamente nada têm a ver com o ‘malfeito’.

       Essa triste prática de fazer o transporte da coletividade pagar por doestos e fatos ocorridos em comunidades (ou por cabecilhas de facções criminosas aí homiziadas), fatos esses sem qualquer relação funcional ou objetiva com tal serviço de utilidade pública, só pode corresponder a uma sensação de generalizada raiva contra a cidade asfaltada, raiva esta que encontraria objeto de fácil atingimento e consecução, que são os ônibus de transporte publico.

       Além da relativa cercania, os ônibus são hoje presas indefesas e, ainda por cima, altamente atraentes para os perpetradores do ato criminoso, dada a facilidade com que o querosene os consome. Pouco lhes importa que prejudiquem e, em especial, ponham em grande risco os seus usuários. São incontáveis os feridos – alguns de forma mortal pela gravidade das queimaduras – e os fora da lei não têm maiores atenções com crianças, idosos e pessoas com dificuldade de locomoção. Projetando a sua raiva ou o seu nervosismo pelos riscos envolvidos, os fautores do ato criminoso semelham pouco se apoquentar não só com os transtornos, mas sobretudo com o perigo que infligem a inocentes.

          Ora, mesmo sem falar dos prejuízos materiais – e eles são grandes, pois ônibus não se adquirem a preço de banana – e de pôr em grave risco os usuários, motorista e cobrador, essa atividade delinquente tem proliferado de modo acintoso, sob a total inação da autoridade policial e das autoridades políticas que deveriam ter maior atenção e interesse para que seja resguardada a população trabalhadora e aquela que, por outros motivos, igualmente válidos, precisa servir-se dos ônibus públicos.
           Desse número crescente de ataques a ônibus, decorrem duas consequências que carecem de ser assinaladas. As perdas com um ônibus inutilizado ou gravemente danificado são despesas imprevistas, mas pesadas para as concessionárias. Que o número de transportes venha a diminuir é  consequência que dificilmente pode ser contra-arrestada (o que fará por exemplo a concessionária de São Paulo que viu um pátio inteiro de ônibus consumido pelo fogo ateado adrede por um grupo de meliantes?), pelo menos em tempo quantificável. Sofrerá com isso – além dos temores desses ataques imprevisíveis – o usuário que disporá de menos transportes para alcançar o seu local de trabalho.         

          Dos perigos de incendiar um ônibus e as queimaduras consequentes a que um inocente passageiro pode sofrer, com desfigurações permanentes, a par de por vezes longo tratamento hospitalar, eles são muitos. No entanto, noticiário e público permanecem quase indiferentes, como se a queima de coletivo equivalesse a contratempo da viagem, a exemplo de um pneu furado. Nem as numerosas vítimas desses incêndios cruéis - como a menina do Maranhão –  queimada viva por bandidos que desejavam ou protestar ou mandar ignóbil mensagem a alguém, mensagem essa que matou esta criança inocente.

           Ou será que algum pobre de espírito ouse alvitrar que o fato de aparecer na capa de revista semanal de grande circulação equivale a tal reconhecimento? Vá perguntar aos pais dessa pobre criança, para saber – se tal lhe parece absurdamente necessário – se eles não prefeririam tê-la saudável e louçã, no seu feliz convívio, do que nessa triste memória, que a ninguém ressuscita?

          Mas a pergunta que paira no ar exigindo resposta é porque as nossas falantes autoridades não encontram soluções para esse crime hoje quase banalizado, e que é de notória gravidade, por ser de motivo fútil, voltado contra terceiros inocentes, e danificando patrimônio público, além de prejudicar serviço de grande utilidade, que não careceria ser feito como se estivéssemos em guerra permanente.

        No entanto, tenham presente, senhores legisladores e juízes: no Brasil, não basta qualificar um crime de ‘hediondo’, para que o réu culpado cumpra a sua pena – que deveria ser longa.  A gravidade do ato e a responsabilidade do autor – acrescido a motivação fútil e voltada contra óbvios inocentes – recomendaria em outras terras penas de maior duração.  Se algo for feito – tanto na esfera administrativa, quanto na penal – teremos acaso segurança de que os criminosos ficarão na cadeia o tempo consentâneo, para a enormidade do delito (que, sem falar da propriedade, tantas vidas põem em perigo)?

 
 
(Fontes:  O Globo, Folha de S. Paulo, Rede Globo)

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