O vezo não é
de hoje, mas agora o problema ultrapassa qualquer limite – se limites pode
haver nesse gênero de atividade criminosa.
Nos últimos
tempos, transformou-se em acontecimento corriqueiro a queima dos ônibus.
Qualquer motivo se afigura válido para os incendiários, em geral moradores em
comunidades pacificadas ou não. Quando algo ocorre de ruim ou que seja
atribuído a ações de policiais, já se transformou em espécie de reflexo
automático que um grupo, em geral de jovens, desça ao asfalto, para vingar-se
de infausta ocorrência ou de suposta ação em geral da polícia militar, direta
ou indiretamente ‘causando’ a morte de alguém da favela em apreço. E, como nos
antigos sacrifícios, o sacrifício expiatório atingirá um número variável de
coletivos, dependendo da importância da vítima.
O grupelho
pode estar agindo por conta própria, ou a mando do tráfico. Talvez pela sua disponibilidade, o alvo
preferido é o ônibus. Pouco importa que já tenha passageiros. Devem julgar essa
ação criminosa muito fácil, mas agora virou recurso quase automático, de modo
que o número de ônibus incendiados aumenta em progressão não mais aritmética,
mas geométrica.
Aqui a relação
de causa e efeito faz parte menos da razão (se há alguma envolvida nesses
atos), do que de difusa consciência de que os ônibus trafegam no asfalto, na
cidade e não nos morros, em que vivem as comunidades. É apenas uma teoria para
procurar entender ato que não tem sentido nem motivação racional e lógica. Aí
entra a paixão, o animus que não se
detém em motivações lógicas e fundadas, ou pelo menos amparadas em percepção de
responsabilidade da outra parte.
Portanto, esse
triste fenômeno que já se espalhou por todas as grandes cidades desses brasis
nada tem a ver com ações de fazer justiça pelas próprias mãos, como, v.g., nas
penas de talião. Eis uma forma das mais rudimentares e, portanto, bárbaras de
fazer a outra parte pagar por suposta falta ou crime cometidos. E, no entanto,
essa forma primitiva de ‘fazer justiça’ pode apresentar uma motivação para a
sua ação (por mais condenável que ela seja), enquanto a queima de ônibus atinge
a pessoas e empresas que objetivamente nada têm a ver com o ‘malfeito’.
Essa triste
prática de fazer o transporte da coletividade pagar por doestos e fatos ocorridos em comunidades (ou por
cabecilhas de facções criminosas aí homiziadas), fatos esses sem qualquer
relação funcional ou objetiva com tal serviço de utilidade pública, só pode
corresponder a uma sensação de generalizada raiva contra a cidade asfaltada,
raiva esta que encontraria objeto de fácil atingimento e consecução, que são os
ônibus de transporte publico.
Além da
relativa cercania, os ônibus são hoje presas indefesas e, ainda por cima,
altamente atraentes para os perpetradores do ato criminoso, dada a facilidade
com que o querosene os consome. Pouco lhes importa que prejudiquem e, em
especial, ponham em grande risco os seus usuários. São incontáveis os feridos –
alguns de forma mortal pela gravidade das queimaduras – e os fora da lei não
têm maiores atenções com crianças, idosos e pessoas com dificuldade de
locomoção. Projetando a sua raiva ou o seu nervosismo pelos riscos envolvidos,
os fautores do ato criminoso semelham pouco se apoquentar não só com os
transtornos, mas sobretudo com o perigo que infligem a inocentes.
Ora, mesmo sem falar dos prejuízos materiais –
e eles são grandes, pois ônibus não se adquirem a preço de banana – e de pôr em
grave risco os usuários, motorista e cobrador, essa atividade delinquente tem
proliferado de modo acintoso, sob a total inação da autoridade policial e das
autoridades políticas que deveriam ter maior atenção e interesse para que seja
resguardada a população trabalhadora e aquela que, por outros motivos,
igualmente válidos, precisa servir-se dos ônibus públicos.
Desse
número crescente de ataques a ônibus, decorrem duas consequências que carecem
de ser assinaladas. As perdas com um ônibus inutilizado ou gravemente
danificado são despesas imprevistas, mas pesadas para as concessionárias. Que o
número de transportes venha a diminuir é consequência que dificilmente pode ser contra-arrestada
(o que fará por exemplo a concessionária de São Paulo que viu um pátio inteiro
de ônibus consumido pelo fogo ateado adrede por um grupo de meliantes?), pelo
menos em tempo quantificável. Sofrerá com isso – além dos temores desses
ataques imprevisíveis – o usuário que disporá de menos transportes para alcançar o seu local de trabalho.
Dos perigos
de incendiar um ônibus e as queimaduras consequentes a que um inocente
passageiro pode sofrer, com desfigurações permanentes, a par de por vezes longo
tratamento hospitalar, eles são muitos. No entanto, noticiário e público
permanecem quase indiferentes, como se a queima de coletivo equivalesse a contratempo
da viagem, a exemplo de um pneu furado. Nem as numerosas vítimas desses
incêndios cruéis - como a menina do Maranhão – queimada viva por bandidos que desejavam ou
protestar ou mandar ignóbil mensagem a alguém, mensagem essa que matou esta
criança inocente.
Ou será que
algum pobre de espírito ouse alvitrar que o fato de aparecer na capa de revista
semanal de grande circulação equivale a tal reconhecimento? Vá perguntar aos
pais dessa pobre criança, para saber – se tal lhe parece absurdamente
necessário – se eles não prefeririam tê-la saudável e louçã, no seu feliz
convívio, do que nessa triste memória, que a ninguém ressuscita?
Mas a
pergunta que paira no ar exigindo resposta é porque as nossas falantes
autoridades não encontram soluções para esse crime hoje quase banalizado, e que
é de notória gravidade, por ser de motivo fútil, voltado contra terceiros
inocentes, e danificando patrimônio público, além de prejudicar serviço de
grande utilidade, que não careceria ser feito como se estivéssemos em guerra
permanente.
No entanto,
tenham presente, senhores legisladores e juízes: no Brasil, não basta
qualificar um crime de ‘hediondo’, para que o réu culpado cumpra a sua pena –
que deveria ser longa. A gravidade do
ato e a responsabilidade do autor – acrescido a motivação fútil e voltada
contra óbvios inocentes – recomendaria em outras terras penas de maior
duração. Se algo for feito – tanto na
esfera administrativa, quanto na penal – teremos acaso segurança de que os
criminosos ficarão na cadeia o tempo consentâneo, para a enormidade do delito
(que, sem falar da propriedade, tantas vidas põem em perigo)?
(Fontes: O Globo, Folha de S. Paulo, Rede Globo)
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