X
X V I
Meu bom e grande amigo Pedro,
senti certo laivo amargo na última correspondência.
Não tinhas o hábito de tapar sol com peneira, e certas coisas carecem de ser
ditas. Tua personalidade me leva, no entanto, a tê-las presente no quadro
geral, e sem nada querer pôr debaixo do tapete, tampouco me anima o intento de
hipertrofiá-las. Se o fizesse, estaria
cometendo um deslize muito maior do que as eventuais falhas acima referidas – e
quem não as tem?
Por isso, passemos adiante. Nesse teu quadro – que os anos pintaram com sua por vezes suave, por vezes brutal crueldade – não poderias senão sair com felicidade no caprichoso instantâneo do tempo. Não me refiro, decerto, aos fotógrafos do lambe-lambe, em que nascendo mais de década na minha frente – e todos nós somos educados e cedemos de bom grado a vez se se trata de nosso ingresso no túnel do tempo – terás visto nos parques da tua infância.
Entraste tarde no Instituto Rio Branco. Já advogavas quando passaste pelo temível crivo do vestibular. Por isso, quando fui ao Hotel Inglês (na verdade, uma das pensões na Rua do Catete), já relatei a impressão havida com os teus livros – e estavas apenas no começo da tua caminhada de leitor e, sobretudo, de estudioso.
Depois, a película da mente
me abre a imagem fugaz do Secretário Pedro com a sua escrivaninha atopetada de
livros e maços, fazendo observações que o deus Cronos fez desaparecer. Mas o
quadro, mesmo sem palavras, me fala bastante do Diplomata lotado na então
prestigiosa Divisão Política do Itamaraty.
Sem embargo, tua real entrada
em cena no que seria o filme a estender-se por infinidade de seriados aconteceu
no aeroporto de Quito. Nesse quadro, estava eu adentrando, sem saber da missa a
metade.
Nem sei por que falei de missa se o personagem sempre fora agnóstico. Hás de entender, contudo, a mensagem. No tarmac do aeroporto me recebias ao pé da escada do avião da Avianca que me trouxera, com a jovem esposa, de New York, com escala em Bogotá. Não pretendo, porém, cansar-te com reprises do longo documentário de nossa amizade.
Se bem que me haja inquietado
um pouco com tua euforia, quando se confirmava pela respectiva presença a minha
transferência da embaixada em Paris para a de São Francisco de Quito. Semelha
óbvio que, sem o sabermos, ali se iniciava amizade que se estenderia por
quarenta anos.
Não ignoro – e como poderia? – que ao aventurar-me por plagas já percorridas, estou correndo sérios riscos, de que talvez o maior seja o de repetir impressões, ou, o que é quiçá mais grave, apresentar-se visões sucessivas e discrepantes.
Meu desígnio, entretanto, não é o de maçar-te com iterações, à moda daqueles que a idade ou a sorte madrasta transforma em quase-sombras do Hades, a que parecem arremedar no confinamento dos asilos.
Ao invés, quero tão só traçar-te as grandes linhas, como um pintor que se apressa, temeroso, sobretudo, do tempo que se escoa e não volta mais.
Por vezes, nas páginas acima surge a personagem de gestos imprevistos e mal-controlados, fonte perene de intervenções pontuais do teu fiel escudeiro, o Rezende, por vezes encarnando Sancho Pança para o irrequieto Dom Quixote.
Se este é o tempero que nos
evoca os tipos inesquecíveis da revista Seleções
do Reader Digest, será apenas uma
vinheta que pouco mostrará de o que realmente foste em vida.
Mais do que diplomata – em que, de resto, atuaste com proficiência e habilidade nos páramos quitenhos – te vejo como o apaixonado pelo estudo e leitor constante e inveterado. Na verdade, tua personalidade mora em palavra sem tradução exata em português, i.e. o scholar.
Onívoro em termos de saber, arrimaste sob o pretexto de que pretendias escrever sobre as origens do direito penal a necessidade de adquirir tudo a que esse tema se reportasse. Já escrevi a tal respeito, e não carece repetir. Dada a amplitude do assunto, se te obrigava a abrir muitas portas, também o passar dos anos te convenceu de sua inviabilidade. Já na década dos noventa, começaste a desenvolver a tua tese acerca da frase, para ti, sem sentido de Aristóteles.
Em passagem minha por Petrópolis,
me deste para ler o que seria o embrião do livro, com os dois primeiros
capítulos da tua obra “CRÍTICA DO ANIMAL POLÍTICO – O significado de uma expressão sem
sentido”.
Mais tarde, no meu período na
Secretaria de Estado e à testa do ERERIO (o conjunto arquitetônico com endereço
na Avenida Marechal Floriano, 196) fui acompanhando, com os fascículos que me
passavas, a elaboração da monografia. Como já referido acima, ela ainda está
pendente de publicação.
Praticamente, não te sobrou tempo em vida para cuidar da edição. O Rezende tentou, mas sem sucesso. O encargo passou para mim e até o presente ainda não foi concretizado – a despeito de que em uma editora esteve a ponto de fazê-lo – mas podes crer que a sua publicação não se acha longe de ser finalmente implementada.
Nesta carta de hoje, gostaria
sobretudo de bosquejar as razões pelas quais creio te assinalaste em vida.
Homem do século XX, serias coerente com ele até com o respectivo limite.
Dedicaste tua existência ao livro, que acumulaste não como mercadoria ou objeto
de bibliofilia, mas como fonte de saber. Não recusavas o novo, desde que
inserido no paradigma de Gutenberg. Acreditavas no estudo, e por isso encetavas
a leitura de cada tomo pelo exame cuidadoso de suas fontes de referência. Nelas
te abeberavas, antes de ir adiante, para obter uma primeira idéia da proposta e
de suas possibilidades.
Por isso, aprenderias muitas línguas (além do inglês e do francês, de que a fluência era então obrigatória para os diplomatas, lias em espanhol, italiano, alemão e holandês). Tinhas conhecimento mediano do latim. Do grego, não o desenvolveste como decerto o desejavas. Ainda por cima, te embrenhaste pelo acadiano, porque querias ler no original o Código de Hamurabi !
O teu interesse em termos de
conhecimento se estendia do direito a paleontologia. Acompanhavas de perto a
pesquisa sobre o homo sapiens sapiens,
e procuravas nas mesas de exposição da Leonardo
da Vinci (incontáveis eram as livrarias
e os sebos que frequentavas) os tratados mais recentes sobre bioética. Assim, a
par de filosofia e história (bastante jovem leste Farias Brito, o nosso único autêntico filósofo, porque proponente
de um sistema original), além dos compêndios jurídicos, da política, sociologia
e antropologia, biografia e daquilo que os alemães chamam de Zeitgeschichte (crônica contemporânea).
Como esquecer a cara assustada de fregueses do Urich ao ver a capa do calhamaço
de Joachin Fest sobre Hitler, com uma
foto das reuniões pagãs do Terceiro Reich, que sobraçavas como a tua aquisição
da jornada!
Os basbaques levaram para casa a
impressão errada. Não havia maior democrata que o meu amigo Pedro. Se eras
partidário do pior regime que existe (com exceção de todos os demais, na
definição de Churchill), respondias também ao imperativo de conhecer melhor o
mundo, através da leitura e do estudo.
Compravas para Thérèse – e havia
um ulterior interesse em satisfazer a cara-metade, com os custosos volumes em
papel bíblia da Pléiade que creio já
ter mencionado, i.e. aplanar o caminho para a tua contínua aquisição de livros
e mais livros, mas, no que te concernia, nunca de literatura! – aquilo que
humoristicamente denominavas de “demagogias culturais”.
Como amante da obra impressa
dedicada ao estudo e à ciência – e a quem te posso comparar enquanto alguém que
acaso haja como tu sacrificado a própria carreira no altar do Livro? – jamais
encontrei pessoa que se identificasse tanto com a obra impressa como vetora de
saber.
Compreendo agora que, como o romântico Rollo, que chegara demasiado tarde em um mundo demasiado vetusto, não tinhas condições psicológicas e epistêmicas de identificar-te, mesmo que forma colateral, com o novo paradigma que irrompeu nas últimas décadas do século vinte. Não foi por preguiça, nem por reacionarismo que disseste a frase do Pontífice medieval: Non possumus !
Recordo-me do preço abusivo que te exigia a velha máquina Olivetti, com os seus papéis carbonos, as suas teclas gastas pelo tempo (na prática, o, e e a) batiam na folha branca o mesmo caracter ! Jamais sequer consideraste a hipótese de abandonar o velho barco, para experimentar o novo. Por quê? Pura e simplesmente por ser tarde demais.
Dado o teu temperamento, não saiste de cena pé ante pé. Preferiste esbravejar contra a nova ordem, que, sem combinar contigo, viera para pôr de cabeça para baixo a tua visão da realidade.
Hoje, quando a tarde vai caindo e o crepúsculo, com o seu lusco-fusco se espraia, devo confessar-te que entendo cada vez melhor a tua luta. Nada a fazer quando o paradigma muda. Ele não costuma pedir licença, mas, de certo modo, vai infernizar-te o que te restava de vida.
Todavia – e não duvido que gostarás
da imagem – viremos a página. Nas terras frias, quando a escuridão da noite
começa a avançar, soa a hora de querer buscar o próprio refúgio, o lar
respectivo, com a sua promessa de segurança e aconchego. Home, before dark[1]
é título da filial memória biográfica sobre John Cheever, que é, a um tempo
pressago, e reconfortante.
Antes de concluir, gostaria de
escrever sobre um outro Pedro que conheci. Nos almoços que marcavam a tua
passagem pelo Rio de Janeiro, depois de cumprido o ritual meteorológico que não
dispensavas – e avalanches e desastres posteriores me mostraram à saciedade
quão oportuna e apropriada era a tua prudência – vinhas para essas ocasiões em
que o alimento mais substancioso estava em nossas discussões e nos temas e
tópicos que trazias à baila. Do Bar Monteiro, tangidos pelas exalações dos
bueiros, passamos para o Urich, que tinha o requinte do ar condicionado. Ali
conversávamos de tudo e sobre todos, mas na mesa teríamos duas certezas: a tua
voracidade – que entenderia depois quando nos tocou, depois da tua partida,
almoçar na casa de Therezinha – e capacidade de congregar em bar ou restaurante
um grupo de pessoas, que ali estavam atraídos pela tua aura de estudioso e
pensador.
Com forte abraço, mas sem o sempre
temível tapa nas costas, do teu amigo velho
Nenhum comentário:
Postar um comentário