segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XXIV)


                                                            

 

          Meu bom e grande Amigo Pedro,    

 

          tinhas visão generosa do novo, sobretudo nos campos da ciência e do conhecimento. Nesse sentido, observei o teu entusiasmo com a bioética, cujos volumes ías perscrutar nas salas interiores da Leonardo da Vinci. Assim, sempre te mostravas aberto e receptivo ao novo, desde que pudesses sentir não modismo passageiro, mas desígnio fundado na busca de caminhos de interesse para o homem. Era atitude que se entranhava como segunda natureza na tua personalidade. Mas até que me surpreendesses com imprevista e seletiva guinada epistemológica, creio oportuno reportar-me à nossa trajetória comum e procurar, dessa forma, entender o porquê da tua singular recusa quanto à avaliação da transformação maior de que seríamos testemunhas.

          Dada a nossa diferença de idade, no entanto, e porque entraste mais tarde no Itamaraty, o nosso conhecimento só deixaria de caracterizar-se pelo eventual quando fui dar com os costados em São Francisco de Quito.

         Vinha de Paris e estava recém-casado. Em meados de 1966, eras Segundo Secretário, bastante mais antigo do que eu, e a embaixada em Quito era o teu terceiro posto. Depois de estágio como Terceiro Secretário na mesma Quito, tinhas sido removido para o Consulado-Geral em Paris, na época em que o Ministro Antônio Francisco Azeredo da Silveira era o Consul-Geral.

         Começaste a te mostrar sui-generis, quando pediste para sair de Lutetia antes do tempo. De lá, foste para a embaixada em Lima, onde ficaste cerca de três anos. Removido mais uma vez para Quito, lá me receberias no aeroporto, como já referi.
          
         Depois da estada em Paris, as diferenças com a pequena Quito, eu as sentiria por toda parte, seja nos enormes e previsíveis contrastes entre a Cidade-Luz e a acanhada capital equatoriana, a 2850 m de altura, cercadas pelas infindas gradações de verde nos Andes, seja nos aspectos funcionais da missão, que costumam ser decorrência da realidade circundante.

         Já falei do convívio na chancelaria da embaixada, e de quanto  me ajudou a vencer os desafios do novo posto.

         Gostaria nesta correspondência de tratar de dois temas: a tua negação à revolução digital e, em particular, a oposição ferrenha ao novo paradigma e a tudo que se relacionasse com a internet.

         Sempre me perguntei por que alguém tão sequioso do saber e do progresso, tenha a partir de um certo momento evitado qualquer incursão com novas tecnologias da comunicação, como o celular. Conquanto o seu uso já fosse bastante difundido nunca te servirias do aparelhinho que tanto facilitou os contatos das novas gerações.

         Nesse aspecto a tua recusa se inseria na dificuldade encontrada pelas mais velhas gerações de lidar com o celular. Se bem que o seu uso se tenha generalizado, não há negar a maior facilidade encontrada pelos jovens em utilizar o celular, e a naturalidade com que transformam os i-pads em todos os seus avatares em naturais projeções da respectiva conectibilidade, inclusive no mergulho digital que já os distingue como segunda natureza.

         Quanto me surpreende e admiro a facilidade das novas gerações em servir-se do celular como prolongamento virtual no meio herziano, com os smartphones a abrir-lhes o acesso digital, nas miríades de possibilidades de conexões antes impensáveis, tanto compreendo as tuas dúvidas. O que me é mais difícil de entender, sobretudo em alguém que tanto prezava o conhecimento, que hajas preferido não empregá-lo, mesmo na sua versão mais limitada, a do aparelho celular simples.

         No entanto, seria simplismo se colocasse no mesmo nível a tua negação do celular com a que viria mais tarde. Trata-se de aparelho de comunicação, de nova tecnologia, mas com aplicação ainda limitada. Pode-se até dizer que surgia como linha avançada, mas ainda dentro de setor demarcado. A sua integração na informática seria desenvolvimento posterior, que não interessa no caso.

        O que me provocou espécie foi o teu visceral repúdio à internet e a tudo que dissesse respeito ao computador. Na última década do século XX, o preço dos computadores se tornara mais acessível.  Com a entrada da Microsoft e da Apple, e o uso crescente do mouse – que substituíra o anterior sistema DOS, de comandos digitais -, o emprego e a segurança na digitação e na preservação dos textos ficaram a um tempo simplificados, posto que o seu instrumental abrisse perspectivas muito mais elaboradas e sofisticadas.

        Poderias, assim, ter adquirido um dos novos computadores, com programas acessíveis. Preferiste, no entanto, continuar com a tua velha Olivetti, com as suas teclas gastas, e que exigia de ti, enquanto datilografavas o teu livro sobre Aristóteles “Crítica do Animal Político”, um esforço muito maior, com as aborrecidas, incômodas cópias de papel carbono, e  nenhuma flexibilidade em termos de correção de erros.

        No caso da internet, a recusa seria não de utilização de um novo tipo de telefone, e portanto, de um aparelho determinado e específico. Não havia comparação no que tange à refutação da internet e da informática. Agora te inscrevias entre os negadores do novo paradigma. Mais tarde, mostrarias a fragilidade dessa atitude, pois até tentaste obter acesso a informações livrescas pelo trâmite da internet.  Se quiséssemos aprofundar a questão, se corre o risco de desvendar o que não passaria de capricho, de um repúdio ditado pela idade e o sentimento, e nunca pela razão.
         
        Creio já haver-te mencionado a dúvida sobre texto de Simonides. Às tuas indagações, preferi mandar-te duas ou três páginas que preparara no meu computador de então, utilizando programa especial para grafar em caracteres gregos nas citações do fragmento deste poeta arcaico. Após receber o papel pelo correio, a impressão quanto à disparidade de meios terá sido tamanha, que apesar da tua habitual reserva, não lograste sopitar a admiração em que eu pudesse apresentar-te o texto com as citações gregas no original, o que para ti seria impossível.

        Percebendo a tua reação – em que te vias com certa tristeza incapacitado de dispor de tal flexibilidade quando pretendias inserir citações em grego no corpo do teu livro – preferi calar-me, ao sentir o quanto te doía não poder valer-se da nova tecnologia.

        Mais tarde, infelizmente se  enrijeceu a tua rejeição à internet e a tudo que concernia o novo paradigma. Era como se te sentisses com o acesso barrado ao novo paradigma, de repente jogado no limbo dos párias digitais. Não espantará, por isso, que essa sensação de inarredável privação se tenha transmutado em negação do novo modelo para o conhecimento. Vivias no paradigma de Gutenberg e seria como se de súbito caísses no time of troubles[1] de que nos fala Toynbee. Como esse modelo descreve também a sensação de drift[2], no processo que leva à formação de nova civilização, se a tua raiva era inteligível, em nada te servia para que superasses o problema. De uma certa maneira, te sentias como um copista de manuscritos, agora tornado irrelevante pelo novo paradigma do livro impresso.

         Tudo isso aumentava o afeto (no sentido psicológico), diante daquela espécie de apartheid tecnológico. Sabias ter condições de vencer o desafio, dominando a nova técnica. Mas, como te sentias parte de um legado anterior – o paradigma do livro que remontava ao século XV – emocionalmente te descobrias impossibilitado de explorar a nova seara. O que, em fim de contas, só contribuía para enrijecer-te a atitude e a lançar-te em quixotesca campanha contra a internet.
       
         Se eu buscava entender a tua reação – malgrado o leve, irônico sorriso me acompanhasse, quando me repassavas inúmeros recortes de revistas e jornais, com denúncias e invectivas contra o demônio da internet, por ti coletados em epimetéica, se bem que baldada faina – esforçava-me em não parecer patronizante na discordância, pois não desejava alargar o fosso que já necessariamente se abria entre as duas posições. De uma certa forma, me via constrangido, no gesto e na palavra, a repetir a conhecida expressão latina do non possumus[3], e com isto queria deixar cristalinamente clara a minha discordância no capítulo.

        A propósito desta oposição – e o Rezende, como professor universitário, tinha postura similar à minha, embora fosse mais velho do que tu – gostaria de utilizá-la na próxima correspondência para discutir outra idiossincrasia tua, com a qual me encontrava em contraposição ainda mais marcada. Hoje lamento nunca haver sido tão explícito o quanto desejaria na matéria,  mas sem chegar a pretensões de règlement de comptes[4], julgo oportuno obtemperar que como um intelectual do século XX deverias ter adentrado a vereda de uma de suas criações mais insignes.

        Como o espaço em que demoras, não sofre das contingências terrenas, eis que, por artes que oportunamente hás de explicar-me, a ansiedade não é mais fator computável, peço licença para versar o assunto na correspondência a seguir.

        Sem – pesa-me reconhecê-lo - o desatado vigor dos teus demasiado saudáveis tapas nas costas, com que fustigavas, na entusiástica manifestação da amizade sem peias, e de que o colega mais jovem fugia por causa da frágil coluna,  aceita o abraço tingido de saudade

             
        do teu sempre Amigo,

 



[1] Tempos agitados, que surgem entre o esfacelamento da civilização anterior e o surgimento da nova civilização.
[2] A circunstância de ser carregado pela corrente, sem qualquer controle sobre a direção do movimento.
[3] Não podemos (os papas costumavam falar em plural majestático).
[4] Pôr as contas em dia (mais utilizado em filmes policiais).

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