Meu bom e grande Amigo Pedro,
tinhas
visão generosa do novo, sobretudo nos campos da ciência e do conhecimento.
Nesse sentido, observei o teu entusiasmo com a bioética, cujos volumes ías
perscrutar nas salas interiores da Leonardo da Vinci. Assim, sempre te
mostravas aberto e receptivo ao novo, desde que pudesses sentir não modismo
passageiro, mas desígnio fundado na busca de caminhos de interesse para o
homem. Era atitude que se entranhava como segunda natureza na tua
personalidade. Mas até que me surpreendesses com imprevista e seletiva guinada
epistemológica, creio oportuno reportar-me à nossa trajetória comum e procurar,
dessa forma, entender o porquê da tua singular recusa quanto à avaliação da
transformação maior de que seríamos testemunhas.
Dada a
nossa diferença de idade, no entanto, e porque entraste mais tarde no
Itamaraty, o nosso conhecimento só deixaria de caracterizar-se pelo eventual
quando fui dar com os costados em São Francisco de Quito.
Vinha de
Paris e estava recém-casado. Em meados de 1966, eras Segundo Secretário,
bastante mais antigo do que eu, e a embaixada em Quito era o teu terceiro
posto. Depois de estágio como Terceiro Secretário na mesma Quito, tinhas sido
removido para o Consulado-Geral em Paris, na época em que o Ministro Antônio
Francisco Azeredo da Silveira era o Consul-Geral.
Começaste
a te mostrar sui-generis, quando
pediste para sair de Lutetia antes do
tempo. De lá, foste para a embaixada em Lima, onde ficaste cerca de três anos.
Removido mais uma vez para Quito, lá me receberias no aeroporto, como já
referi.
Depois da estada em Paris, as diferenças com a pequena Quito, eu as sentiria por toda parte, seja nos enormes e previsíveis contrastes entre a Cidade-Luz e a acanhada capital equatoriana, a 2850 m de altura, cercadas pelas infindas gradações de verde nos Andes, seja nos aspectos funcionais da missão, que costumam ser decorrência da realidade circundante.
Já falei
do convívio na chancelaria da embaixada, e de quanto me ajudou a vencer os desafios do novo posto.
Gostaria
nesta correspondência de tratar de dois temas: a tua negação à revolução
digital e, em particular, a oposição ferrenha ao novo paradigma e a tudo que se
relacionasse com a internet.
Sempre me
perguntei por que alguém tão sequioso do saber e do progresso, tenha a partir
de um certo momento evitado qualquer incursão com novas tecnologias da
comunicação, como o celular. Conquanto o seu uso já fosse bastante difundido
nunca te servirias do aparelhinho que tanto facilitou os contatos das novas
gerações.
Nesse
aspecto a tua recusa se inseria na dificuldade encontrada pelas mais velhas
gerações de lidar com o celular. Se bem que o seu uso se tenha generalizado,
não há negar a maior facilidade encontrada pelos jovens em utilizar o celular,
e a naturalidade com que transformam os i-pads
em todos os seus avatares em naturais projeções da respectiva conectibilidade,
inclusive no mergulho digital que já os distingue como segunda natureza.
Quanto me
surpreende e admiro a facilidade das novas gerações em servir-se do celular
como prolongamento virtual no meio herziano, com os smartphones a abrir-lhes o acesso digital, nas miríades de
possibilidades de conexões antes impensáveis, tanto compreendo as tuas dúvidas.
O que me é mais difícil de entender, sobretudo em alguém que tanto prezava o
conhecimento, que hajas preferido não empregá-lo, mesmo na sua versão mais
limitada, a do aparelho celular simples.
No
entanto, seria simplismo se colocasse no mesmo nível a tua negação do celular
com a que viria mais tarde. Trata-se de aparelho de comunicação, de nova tecnologia,
mas com aplicação ainda limitada. Pode-se até dizer que surgia como linha
avançada, mas ainda dentro de setor demarcado. A sua integração na informática
seria desenvolvimento posterior, que não interessa no caso.
O que me
provocou espécie foi o teu visceral repúdio à internet e a tudo que dissesse respeito ao computador. Na última
década do século XX, o preço dos computadores se tornara mais acessível. Com a entrada da Microsoft e da Apple, e o
uso crescente do mouse – que substituíra
o anterior sistema DOS, de comandos
digitais -, o emprego e a segurança na digitação e na preservação dos textos
ficaram a um tempo simplificados, posto que o seu instrumental abrisse
perspectivas muito mais elaboradas e sofisticadas.
Poderias,
assim, ter adquirido um dos novos computadores, com programas acessíveis.
Preferiste, no entanto, continuar com a tua velha Olivetti, com as suas teclas gastas, e que exigia de ti, enquanto
datilografavas o teu livro sobre Aristóteles “Crítica do Animal Político”, um
esforço muito maior, com as aborrecidas, incômodas cópias de papel carbono,
e nenhuma flexibilidade em termos de
correção de erros.
No caso
da internet, a recusa seria não de utilização de um novo tipo de telefone, e
portanto, de um aparelho determinado e específico. Não havia comparação no que
tange à refutação da internet e da informática. Agora te inscrevias entre os
negadores do novo paradigma. Mais tarde, mostrarias a fragilidade dessa
atitude, pois até tentaste obter acesso a informações livrescas pelo trâmite da
internet. Se quiséssemos aprofundar a questão, se corre
o risco de desvendar o que não passaria de capricho, de um repúdio ditado pela
idade e o sentimento, e nunca pela razão.
Creio já haver-te mencionado a dúvida sobre texto de Simonides. Às tuas indagações, preferi mandar-te duas ou três páginas que preparara no meu computador de então, utilizando programa especial para grafar em caracteres gregos nas citações do fragmento deste poeta arcaico. Após receber o papel pelo correio, a impressão quanto à disparidade de meios terá sido tamanha, que apesar da tua habitual reserva, não lograste sopitar a admiração em que eu pudesse apresentar-te o texto com as citações gregas no original, o que para ti seria impossível.
Percebendo a tua reação – em que te vias com certa tristeza incapacitado
de dispor de tal flexibilidade quando pretendias inserir citações em grego no
corpo do teu livro – preferi calar-me, ao sentir o quanto te doía não poder
valer-se da nova tecnologia.
Se eu buscava entender a tua reação – malgrado o leve, irônico sorriso me acompanhasse, quando me repassavas inúmeros recortes de revistas e jornais, com denúncias e invectivas contra o demônio da internet, por ti coletados em epimetéica, se bem que baldada faina – esforçava-me em não parecer patronizante na discordância, pois não desejava alargar o fosso que já necessariamente se abria entre as duas posições. De uma certa forma, me via constrangido, no gesto e na palavra, a repetir a conhecida expressão latina do non possumus[3], e com isto queria deixar cristalinamente clara a minha discordância no capítulo.
Como o
espaço em que demoras, não sofre das contingências terrenas, eis que, por artes
que oportunamente hás de explicar-me, a ansiedade não é mais fator computável,
peço licença para versar o assunto na correspondência a seguir.
Sem –
pesa-me reconhecê-lo - o desatado vigor dos teus demasiado saudáveis tapas nas
costas, com que fustigavas, na entusiástica manifestação da amizade sem peias,
e de que o colega mais jovem fugia por causa da frágil coluna, aceita o abraço tingido de saudade
[1] Tempos agitados, que surgem entre o
esfacelamento da civilização anterior e o surgimento da nova civilização.
[2] A
circunstância de ser carregado pela corrente, sem qualquer controle sobre a
direção do movimento.
[3] Não podemos (os papas costumavam falar
em plural majestático).
[4]
Pôr as contas em dia (mais utilizado em filmes policiais).
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