domingo, 17 de novembro de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XXV)


 

 
  

                                             X  X  V

 
 

 
         Meu bom, mas por vezes preconceituoso Amigo,

     

         quero referir-me desta feita, mestre compassivo e velho colega, à psicanálise, que devemos – excluídos o punhado habitual de detratores – ao gênio vienense do Dr. Sigmund Freud.

         Sei que adentro vereda que para ti é um descaminho, que confunde os que nela avançam, como aqueles pobres exploradores que entravam selva adentro para desaparecer, ou retornar com o passo incerto e o olhar esgazeado.

         Com efeito, hás de convir que não te exagero o sentimento. Em verdade, e te peço relevar-me a franqueza, tua oposição à cura de males psíquicos pela palavra podia ser estridente e filisteia.

         A expressão inglesa – a pain in the neck[1] (que Lord Altrincham experimentava ao ouvir as alocuções da jovem rainha Elizabeth) – seria o que sentia, quando vocalizavas a tua repulsa e  - uma vez mais, me perdoe dizê-lo -  as preconceituosas invectivas que estavam em gritante discordância com a tua formação e nível intelectual.

        Chegavas a ponto de arguir como mácula na bagagem cultural de alguém a circunstância de haver sido analisado. Tais posturas, quando expressas, pelo seu caráter irracional, mais próprio de gente inculta, para não dizer boçal, eu timbrava em ignorar, por me confranger que alguém tão preparado e amante dos livros se atrevesse a avançá-las. 

       Parecias tão seguro de desnudá-las, a ponto de sequer atentar para o silêncio do Rezende, que costumava ausentar-se em espírito nessas ocasiões.

       Só posso atribuir-te a agressividade  e os comentários – que antes se ouviam amiúde – sobre a empulhação do método do professor vienense, a um singelo e revelador motivo. Sentirias insegurança diante das possíveis revelações que sessão com  psicanalista poderia trazer-te? Dada a ênfase que Freud atribuía à sexualidade, será por tal razão que traías, nas raras ocasiões em que o tema fosse levantado, alguma alterada rispidez, sobretudo se questões conexas ao gênero estivessem envolvidas ?

      Se perguntado por que o casal não tivera filhos, te refugiavas em atitudes de senhor oitocentista, com sobrecenho cerrado e abrupta mudança de assunto. Vias invasões inadmissíveis de privacidade, no que podia ser simples e inócua curiosidade.

 
      Por outro lado, as inopinadas reações, tão fora de contexto pareciam, a ponto de levantar antigas estórias acerca de tua suposta insegurança e o ciúme com que cercavas Therezinha. O Itamaraty daquele tempo ainda permitia que lhe chamassem de Casa, quer pelo número do pessoal – ainda era possível conhecer a todos os diplomatas -, quer pelas características de diversos tipos humanos, com suas peculiaridades. Talvez fosse mais representativo nos seus corredores que se debruçam sobre o jardim com palmeiras e lago de cisnes, do que os espaços desertos e portas fechadas dos inúmeros anexos ao segundo palácio do Itamaraty, este riscado pelo lápis genial de Oscar Niemeyer.

 
      Não há de estranhar que tenhas conhecido Thérèse em frequentando a Biblioteca do Itamaraty. Muitas moças casadoiras íam lá trabalhar, e a tua mulher era filha de bibliotecária. Dessarte, segundo diziam os mexericos, tinhas escolhido Quito pelas suas alturas, que manteriam à distância a sogra, por causa do coração.

    
     Os parâmetros atuais dão pálida idéia do isolamento de Quito. Quando fui buscar o meu carro em Guiaquil, ao retornar sozinho não me foi difícil acertar o caminho, apesar da total falta de sinalização. Não havia como errar, segundo então me asseguraram, porque era a única estrada asfaltada. Os quatrocentos e tantos quilômetros do percurso ganhavam em emoção, pelo fato de inexistir contenção nas encostas dos Andes, e, por isso, os carros assistiam à queda contínua das pedras, umas tantas de tamanho considerável. A Deusa Fortuna me acompanhou no trajeto e foi somente nas cercanias de São Francisco de Quito que o meu Porsche parisiense teve um pneu furado. Mas chegaria em casa no lusco-fusco, pela boa ajuda de um grupo motorizado de jovens, que supriu providencialmente da minha inexperiência na troca de pneus. A respeito, as estadas em Brasília me fariam um ás na desconfortável arte de substituir pneus furados por estepes.

 
      Quanto às mais dificuldades de acesso e comunicação de Quito – então cidade pequena, quase pastoril (vacas pastavam na Seis de Diciembre, nossa rua que era uma das principais) – basta lembrar que não havia conexões aéreas diretas com o Brasil (o transbordo em Lima era indispensável), nem ligações diretas telefônicas. Além das chamadas serem difíceis, eram feitas via New York, o que dá idéia da dificuldade material do telefonema.


       Mas voltemos ao que mais interessa.  Havias então entrado há pouco nos quarenta. Dadas as frequentes ausências do chefe da missão, amiúde eras o Encarregado de negócios. Ainda jovem, portanto, te cabia receber os visitantes brasileiros e as delegações. Se eram raras, te cabia, de qualquer modo, a obrigação de fazer as honras da casa às missões.  Procedias, no entanto, de forma diversa àquela adotada pelos diplomatas em situações do gênero. Com efeito, não tinhas o hábito de receber autoridades e teus colegas do Itamaraty no teu apartamento quitenho, posto que fosse muito bem decorado.

 
       A voz corrente era que a recepção no hotel se destinava a que acolhesses os visitantes sem a Therezinha. Como penso ter antes referido, despertou espanto que tivesses acedido a comemorar a entrada do Ano Novo de 1967 na residência do jovem casal Azeredo.

 
        Posto que Thérèse tivesse comportamento discreto, o ciúme não carece de razões objetivas para atenazar a mente daqueles que dele sofrem.

 
        O problema na audição de tua esposa se agravaria com os anos. Desde cedo, porém, a surdez seria o motivo para que fosses sozinho às reuniões sociais e diplomáticas. Somente em visitas de Ministro – de resto bastante raras em tais paragens – que Therezinha aparecia. Nessas ocasiões, desmentia os teus temores e cuidados, demonstrando naturalidade e até mesmo alegria no convívio com os colegas e a sociedade quitenha.

          
       Por mais pense sobre o assunto, não posso atinar com outra motivação para a tua recusa da psicanálise – chegando ao extremo de ignorá-la e até achincalhá-la – que a insegurança sentida diante de uma suposta ameaça. Pobre Pedro! se houvesses sabido vencer o preconceito, talvez aprendesses a ser menos rígido em determinados aspectos existenciais, o que te abriria uma relação mais aberta com a Therezinha, e dessarte uma coexistência mais equilibrada e, por conseguinte, mais feliz.

 
       Que o bom amigo me releve a franqueza. Com a tua bondade – de que deste tantas
provas para os empregados – e as extremadas atenções com que sempre a prodigaste, um maior conhecimento de tuas fraquezas, de suas origens na ausente figura de um pai jogador, terias  visão mais serena e menos constrita. O amor excessivo, se demasiado possessivo, pode sufocar o convívio mais tranquilo e equilibrado, a ponto de trasformá-lo em um arremedo da harmonia conjugal,e fonte perene de ressentimento por uma afeição onipresente que sufoca ao invés de dar rédea solta aos sentimentos.

 
       Me releve, amigo velho, esse inusitado, quiçá exagerado rasgo que as convenções impedem de dizer aos viventes. Se tivesses aberto um pouco a mente para a cura pela palavra, se tivesses deixado entrar em tua biblioteca as obras do doutor que dava consultas em Berggasse 19[2] verias o mundo psicológico de forma menos suspicaz, sobretudo nas relações afetivas. Ganharias com isso, junto com Therezinha, e vocês teriam sido mais felizes.

 
        Com o apreço e a estima de sempre, do

 




[1] Literalmente, dor no pescoço.
[2] Endereço em Viena do criador da psicanálise.

Um comentário:

Mauro disse...

Obrigado por mais essa carta, que mais do que as vicissitudes de seu amigo Pedro, revela algo da vida e pensamentos do missivista. São detalhes desconhecidos e preciosos para mim. Espero que o missivista se anime um dia a escrever mais cartas de reminiscências, talvez expandindo o número de correspondentes.
Sobre a atitude de Pedro sobre a psicanálise, ouso discordar. O bloggeiro aplica a metodologia psicanalítica para explicar a rejeição dela por seu amigo – isto não esclarece. Na verdade, a psicanálise está longe de poder ser considerada uma ciência. Falta-lhe quaisquer possibilidade de falseabilidade e testabilidade. A roupagem dada-lhe por Freud e outros encoberta o que é em essência interpretação cultural associado a apoio moral e pessoal. É uma ideologia que funciona bem para quem está predisposto e para tal e aceite os preceitos da psicanálise. O confessionário católico cumpre papel semelhante, apenas trocando a ideologia.