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X V
Meu bom, mas por vezes preconceituoso
Amigo,
quero
referir-me desta feita, mestre compassivo e
velho colega, à psicanálise, que devemos – excluídos o punhado habitual de
detratores – ao gênio vienense do Dr.
Sigmund Freud.
Sei que
adentro vereda que para ti é um descaminho, que confunde os que nela avançam,
como aqueles pobres exploradores que entravam selva adentro para desaparecer,
ou retornar com o passo incerto e o olhar esgazeado.
Com efeito,
hás de convir que não te exagero o sentimento. Em verdade, e te peço relevar-me
a franqueza, tua oposição à cura de males psíquicos pela palavra podia ser
estridente e filisteia.
A expressão
inglesa –
a pain in the neck
(que Lord Altrincham experimentava ao ouvir as alocuções da jovem rainha
Elizabeth) – seria o que sentia, quando vocalizavas a tua repulsa e
- uma vez mais, me perdoe dizê-lo -
as preconceituosas invectivas que estavam em
gritante discordância com a tua formação e nível intelectual.
Chegavas a
ponto de arguir como mácula na bagagem cultural de alguém a circunstância de
haver sido analisado. Tais posturas, quando expressas, pelo seu caráter
irracional, mais próprio de gente inculta, para não dizer boçal, eu timbrava em
ignorar, por me confranger que alguém tão preparado e amante dos livros se
atrevesse a avançá-las.
Parecias tão
seguro de desnudá-las, a ponto de sequer atentar para o silêncio do Rezende, que
costumava ausentar-se em espírito nessas ocasiões.
Só posso
atribuir-te a agressividade e os
comentários – que antes se ouviam amiúde – sobre a empulhação do método do
professor vienense, a um singelo e revelador motivo. Sentirias insegurança
diante das possíveis revelações que sessão com
psicanalista poderia trazer-te? Dada a ênfase que Freud atribuía à
sexualidade, será por tal razão que traías, nas raras ocasiões em que o tema
fosse levantado, alguma alterada rispidez, sobretudo se questões conexas ao
gênero estivessem envolvidas ?
Se perguntado
por que o casal não tivera filhos, te refugiavas em atitudes de senhor
oitocentista, com sobrecenho cerrado e abrupta mudança de assunto. Vias
invasões inadmissíveis de privacidade, no que podia ser simples e inócua
curiosidade.
Por outro
lado, as inopinadas reações, tão fora de contexto pareciam, a ponto de levantar
antigas estórias acerca de tua suposta insegurança e o ciúme com que cercavas
Therezinha. O Itamaraty daquele tempo ainda permitia que lhe chamassem de Casa, quer pelo número do pessoal –
ainda era possível conhecer a todos os diplomatas -, quer pelas características
de diversos tipos humanos, com suas peculiaridades. Talvez fosse mais
representativo nos seus corredores que se debruçam sobre o jardim com palmeiras
e lago de cisnes, do que os espaços desertos e portas fechadas dos inúmeros
anexos ao segundo palácio do Itamaraty, este riscado pelo lápis genial de Oscar
Niemeyer.
Não há de
estranhar que tenhas conhecido Thérèse em frequentando a Biblioteca do
Itamaraty. Muitas moças casadoiras íam lá trabalhar, e a tua mulher era filha
de bibliotecária. Dessarte, segundo diziam os mexericos, tinhas escolhido Quito
pelas suas alturas, que manteriam à distância a sogra, por causa do coração.
Os parâmetros
atuais dão pálida idéia do isolamento de Quito. Quando fui buscar o meu carro
em Guiaquil, ao retornar sozinho não me foi difícil acertar o caminho, apesar
da total falta de sinalização. Não havia como errar, segundo então me
asseguraram, porque era a única estrada asfaltada. Os quatrocentos e tantos
quilômetros do percurso ganhavam em emoção, pelo fato de inexistir contenção
nas encostas dos Andes, e, por isso, os carros assistiam à queda contínua das
pedras, umas tantas de tamanho considerável. A
Deusa Fortuna me acompanhou no trajeto e foi somente nas cercanias
de São Francisco de Quito que o meu Porsche parisiense teve um pneu furado. Mas
chegaria em casa no lusco-fusco, pela boa ajuda de um grupo motorizado de
jovens, que supriu providencialmente da minha inexperiência na troca de pneus.
A respeito, as estadas em Brasília me fariam um ás na desconfortável arte de
substituir pneus furados por estepes.
Quanto às mais
dificuldades de acesso e comunicação de Quito – então cidade pequena, quase
pastoril (vacas pastavam na
Seis de
Diciembre, nossa rua que era uma das principais) – basta lembrar que não
havia conexões aéreas diretas com o Brasil (o transbordo em Lima era
indispensável), nem ligações diretas telefônicas. Além das chamadas serem
difíceis, eram feitas via
New York, o
que dá idéia da dificuldade material do telefonema.
Mas voltemos
ao que mais interessa. Havias então
entrado há pouco nos quarenta. Dadas as frequentes ausências do chefe da
missão, amiúde eras o Encarregado de negócios. Ainda jovem, portanto, te cabia
receber os visitantes brasileiros e as delegações. Se eram raras, te cabia, de
qualquer modo, a obrigação de fazer as honras da casa às missões. Procedias, no entanto, de forma diversa
àquela adotada pelos diplomatas em situações do gênero. Com efeito, não tinhas
o hábito de receber autoridades e teus colegas do Itamaraty no teu apartamento
quitenho, posto que fosse muito bem decorado.
A voz
corrente era que a recepção no hotel se destinava a que acolhesses os
visitantes
sem a Therezinha. Como
penso ter antes referido, despertou espanto que tivesses acedido a comemorar a
entrada do Ano Novo de 1967 na residência do jovem casal Azeredo.
Posto que
Thérèse tivesse comportamento discreto, o ciúme não carece de razões objetivas
para atenazar a mente daqueles que dele sofrem.
O problema
na audição de tua esposa se agravaria com os anos. Desde cedo, porém, a surdez
seria o motivo para que fosses sozinho às reuniões sociais e diplomáticas.
Somente em visitas de Ministro – de resto bastante raras em tais paragens – que
Therezinha aparecia. Nessas ocasiões, desmentia os teus temores e cuidados,
demonstrando naturalidade e até mesmo alegria no convívio com os colegas e a
sociedade quitenha.
Por mais
pense sobre o assunto, não posso atinar com outra motivação para a tua recusa
da psicanálise – chegando ao extremo de ignorá-la e até achincalhá-la – que a
insegurança sentida diante de uma suposta
ameaça.
Pobre Pedro! se houvesses sabido vencer o preconceito, talvez aprendesses a
ser menos rígido em determinados aspectos existenciais, o que te abriria uma
relação mais aberta com a Therezinha, e dessarte uma coexistência mais equilibrada e, por conseguinte, mais
feliz.
Que o bom
amigo me releve a franqueza. Com a tua bondade – de que deste tantas
provas para os empregados – e as extremadas atenções com
que sempre a prodigaste, um maior conhecimento de tuas fraquezas, de suas
origens na ausente figura de um pai jogador, terias
visão mais serena e menos constrita. O amor
excessivo, se demasiado possessivo, pode sufocar o convívio mais tranquilo e
equilibrado, a ponto de trasformá-lo em um arremedo da harmonia conjugal,e
fonte perene de ressentimento por uma afeição onipresente que sufoca ao invés
de dar rédea solta aos sentimentos.
Me releve,
amigo velho, esse inusitado, quiçá exagerado rasgo que as convenções impedem de
dizer aos viventes. Se tivesses aberto um pouco a mente para a cura pela
palavra, se tivesses deixado entrar em tua biblioteca as obras do doutor que
dava consultas em
Berggasse 19
verias o mundo psicológico de forma menos suspicaz, sobretudo nas relações
afetivas. Ganharias com isso, junto com Therezinha, e vocês teriam sido mais
felizes.
Com o apreço
e a estima de sempre, do
Um comentário:
Obrigado por mais essa carta, que mais do que as vicissitudes de seu amigo Pedro, revela algo da vida e pensamentos do missivista. São detalhes desconhecidos e preciosos para mim. Espero que o missivista se anime um dia a escrever mais cartas de reminiscências, talvez expandindo o número de correspondentes.
Sobre a atitude de Pedro sobre a psicanálise, ouso discordar. O bloggeiro aplica a metodologia psicanalítica para explicar a rejeição dela por seu amigo – isto não esclarece. Na verdade, a psicanálise está longe de poder ser considerada uma ciência. Falta-lhe quaisquer possibilidade de falseabilidade e testabilidade. A roupagem dada-lhe por Freud e outros encoberta o que é em essência interpretação cultural associado a apoio moral e pessoal. É uma ideologia que funciona bem para quem está predisposto e para tal e aceite os preceitos da psicanálise. O confessionário católico cumpre papel semelhante, apenas trocando a ideologia.
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