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Meu bom e mui prezado Amigo Pedro,
o livrinho sobre o niilismo me ficou na
mente, menos pela sua mensagem – por causa de teu entusiasmo não foste muito
explícito – do que pela doutrina em si, e o quanto ela significava para ti.
Ao ver-te
o entusiasmo com que nos mostravas o manual, me ficou a impressão que
reencontravas na modesta livraria a
tua
doutrina filosófica. No gesto alegre, radiante mesmo, acenavas para mim e
Resende, como se dissesses: olhem, homens de pouca fé, o que encontrei na
Loyola! E os teus olhos brilhavam com o júbilo não só do conhecimento, mas
também do reencontro.
Surgido
na Rússia no século XIX, na estufa da autocracia dos czares, cresceu a planta
do materialismo ateu e da contestação política extrema, de que sairiam os
atentados contra as cabeças reinantes. Mais tarde, já no século XX outros
movimentos lhe arrebatariam a iconoclastia política, enquanto mergulhava no
ceticismo moral e, arrastado pela própria semântica, na falta de sentido da
existência.
Sendo
ideologia dos mil e oitocentos, nascida na terra sáfara do absolutismo, a
perplexidade por mim experimentada não durou muito. Excluída a versão política
em que o simplismo tanatofílico não mais encontrava espaço, após fileira de
cruzes reais, o niilismo terá sido o canteiro onde deitou raízes tanto o
ceticismo dos teus heróis livrescos, quanto a difusa sensação sobre a falta de
sentido da vida.
Hoje,
transcorrida mais de uma década do episódio no Edifício Sisal, em que
empunhaste o que viste como cartilha de niilismo – que repontava nas coleções
da Loyola, uma livraria católica – e nos agitaste, com funda satisfação, o
exemplar da reexumada doutrina, tal qual fosse jocosa, quiçá um pouco irônica,
mas sempre epifania de uma verdade, inda que oitocentista, hoje, repito,
embrenhando-me nesse anacoluto, reconheço na cena dois largos traços: a alegria
do reencontro e a vontade de partilhar a singela experiência com os dois
amigos.
Pedro, amigo velho,
repensando-te a obra e o testemunho, ainda tenho dificuldade em
situar-te. Quando te conheci realmente – não na visão do protomestre do Hotel
Inglês, nem na passagem pela Divisão Política, com maços e livros espalhados na
escrivaninha, como era do teu feitio – foi na casinhola que fazia às vezes de
chancelaria da embaixada em São Francisco de Quito. Ali surgiria a amizade que
indene cruzaria os decênios, enquanto trocávamos de viva voz ou por carta as
figurinhas da nossa experiência. No que para mim era um álibi para explicar a
amplitude da rede que lançavas às então livrarias do paradigma de
Gutenberg sempre em busca de mais
livros, me disseste que pretendias escrever tratado sobre
as origens do direito penal. Por isso, estudaste acadiano e o
Código de Hamurabi, por isso encomendaste obras sobre a mesopotâmia e
respectiva civilização, inclusive a que é
reminiscente da ficção de Lima Barreto, com o Homem que sabia Javanês, e que
funda um dos teus casos inesquecíveis, com a frustrada aquisição da maior
autoridade no direito mesopotâmico, que, nas tuas perplexas mãos, te ficaria
epistemicamente inacessível pela ineludível circunstância de estar grafada em
tcheco... Sei que relevarás a repetição da historieta, pelo que me mostrou de
tua capacidade de autoironia. O humor – que está fora dos tacanhos limites dos
filisteus – sempre o levarias na algibeira, e com isso mostravas para o bom
entendedor a tua grandeza.
Mais tarde,
colherias outros motes para justificar as tuas aquisições livrescas. Como
estudioso do direito, da paleontologia, da filosofia, da história, da
sociologia, e de tudo o mais que ao homem interessar possa, tinhas particular
apreço por novos canais do saber – como, v.g., a bioética – mas havia limites
para a marcha batida através das florestas do conhecimento.
Eras um
leitor acima de tudo, um amante do livro, e por isso fugias do cinema e da
televisão. Essa dedicação integral à leitura te levava a evitar eventuais idas
aos teatros, mesmo que fossem para películas de grande sucesso entre os
cinéfilos. Certa feita, tentei convencer-te a ver um filme sobre Alexandre o
Grande, que pelas fumaças de reconstituição histórica despertara grande atenção.
Cheguei mesmo a recorrer ao golpe baixo de reportar a presença de Aristóteles –
como preceptor do jovem Alexandre – e o quanto me parecera devesse fazer
exceção à sua draconiana regra de exclusão.
Senti que
hesitavas, pela visão que se entreabria. Aquele cântico de sereia – mesmo a
despeito das palavras encorajadoras do Resende – não seria, ao fim e ao cabo,
bastante para demover-te de uma resolução que de tão férrea, meu caro amigo, te
cerrava um largo campo e não só da sétima arte.
Pela qualidade de nossa tevê, a telinha não
te seria ameaça de monta. Decerto, havia na tua casa uma televisão, mas era
cativa de Therezinha.
Assim,
sempre foste um amante do livro, como vetor do conhecimento. Nunca foste um
bibliófilo, um colecionador de edições raras e de exemplares bem encadernados.
Creio que só por uma vez vacilaste – perdoa-me, Pedro, o neologismo semântico:
vacilar pode hoje significar
tropeçar, fraquejar – quando pagaste os
olhos da cara por edição quinhentista do célebre editor veneziano Aldo Manuzio.
Por uma que outra vez os tomos podiam estar muito bem encadernados, mas nesse
caso a bela aparência seria apenas um ganho secundário, como no caso dos
in-octavo de Pierre Bayle.
Essa tua
rejeição das invenções do século XX – dirão que o cinema dos irmãos Lumière é
do XIX, com sua estação de trem, mas se tem de convir que antes de adentrarmos
no desastroso século passado, ele se cingia a documentários como a coroação de
Nicolau II e quejandos – não se limitava à Sétima Arte. Tinhas outra que se
tirada do contexto poderia talvez depor contra ti, ou pelo menos fazer-te
parecer como um humanista do século dezenove. Dada a tua negação, seria um
virtual tabu entre nós.
Por isso,
creio mais oportuno deixá-lo para a próxima carta. Com o abraço e a saudade do
teu Amigo,
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