quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

O papel da mentira na eleição do Reino Unido


                 
        Se a eleição de amanhã na pátria de Winston Churchill - que afirmara que " a verdade, em tempo de guerra, é tão preciosa que deveria ser sempre acompanhada de uma escolta de mentiras"- é guiada por alguma coisa, segundo o Economist,  são as mentiras no caso tão preciosas que precisam ser acompanhadas por uma escolta de novas mentiras. 
         Segundo o semanário inglês,  esta próxima eleição repousa na desonestidade: grandes e pequenas mentiras, meias verdades e pseudo-fatos, distorções, dissimulação e e desinformação, além de embustes digitais em escala industrial. Na verdade, a população está tão desiludida com o processo político que, quando alguém perguntou a  Boris Johnson, durante um debate pela TV, se ele valoriza a verdade, o público deu gargalhadas.  Diga-se, a propósito, que Johnson é favorito nesta eleição e deve vencer por boa margem.
            Dentro dessa atmosfera, não surpreenderá que um jogo popular nos círculos da política é debater qual partido é o mais mentiroso. Talvez os tories sejam provavelmente os piores, e os liberal-democratas, aqueles menos ruins. Mas o fato é que os dois principais candidatos - os conservadores e os trabalhistas - transformaram a desinformação em uma arte.
             Naturalmente, no entender da revista, a presença da mentira na política seria inegável. Anthony Eden contou descarada mentira na Câmara dos Comuns em 1956, quando disse que Inglaterra e França não entraram em conluio com Israel na invasão do Canal de Suez.  Segundo a revista a coisa nova a caracterizar esta eleição é o fato de ser uma campanha da pós-verdade. Assim, os partidos se comportam como se a verdade não tivesse importância, e por isso não se consideram mentirosos. Para o Economist, parte da culpa seria da nova tecnologia. Assim, os exemplos mais atrozes de distorção ocorrem online. Durante o debate de um líder, o Partido Conservador renomeou sua conta no Twitter para Factcheckup, e a usou para produzir e enviar mensagens partidárias disfarçadas de avaliação independente.

                Nessas condições, a internet mudou as regras do jogo político, enfraquecendo o poder dos ditos guardiães da velha mídia - que são regidos pela ética profissional e normas eleitorais - abrindo dessarte o campo de batalha para fanáticos e vigaristas. E dessarte permitiu às campanhas políticas urdirem narrativas diferentes para os eleitores do país.

                 Na opinião do Economist, parte da culpa é dos dois principais candidatos. Jeremy Corbyn seria imune à verdade porque estaria dominado pela ideologia global sobre os malefícios do capitalismo e do imperialismo, e as maravilhas do socialismo e do poder popular. Por sua vez, Boris Johnson é indiferente à verdade porque está possuído pela ambição. Ele foi duas vezes demitido por mentir - uma vez pelo Times, por causa de uma citação forjada e uma vez por seu partido envolvendo um caso - e sem embargo, ele chegou ao topo.  Boris está tão preocupado em ser chamado à responsabilidade por suas várias afirmações que (até agora em contraste com outros líderes do partido) se esquivou de uma entrevista com Andrew Neil, o respeitado e abalizado  entrevistador da BBC.  E sua escapada deu uma reviravolta sinistra no caso de seu principal assessor, Dominic Cummings, um imaginoso e maquiavélico ideólogo, que propagou a mentira de que o Brexit geraria US$ 460 milhões por semana para o Serviço Nacional de Saúde...

  Tribalismo.  Mas segundo a visão do Economist, há também uma força mais profunda em atuação, que seria o triunfo do tribalismo político.Assim, na época de David Cameron e de Tony Blair, a política tinha a ver em primeiro lugar com política.  Os políticos discutiam em que medida a abertura econômica estimularia o crescimento, ou, depois do colapso financeiro, que nível de austeridade manteria os mercados calmos. Organizações como o Departamento Nacional de Estatística se manifestavam com autoridade. Hoje, a discussão é mais sobre tribalismo, tanto quanto economia.
         Os conservadores usam o Brexit para conquistar eleitores, ao passo que os trabalhistas reafirmam sua identidade como partido de classe operária.Os especialistas perderam  muito de sua credibilidade na população em grande parte porque são vistos primo como membros de uma tribo - a elite cosmopolita londrina - e não como comentaristas objetivos. Mesmo antes desta eleição  começar seu trabalho corrosivo, somente 40%  dos eleitores pesquisados pelo Reuters Institute for the Study of Journalism disseram confiar nas notícias. Essa porcentagem é bem menor  entre os membros da classe dos trabalhadores e os eleitores que apóiam o Brexit.

          Nessas condições, a combinação desta epidemia de mentiras e o clima de desconfiança tem efeito assaz nocivo.  Distorce o processo de seleção.  E quanto mais eleitores acharem que todos os políticos são mentirosos,  maior a probabilidade de escolherem um mentiroso para representá-los.  Boris Johnson é o político ideal para uma era da pós-verdade, pois ninguém há de esperar que ele vá manter sua palavra.  Ele existe num mundo do nós contra eles, um mundo de emoção e não de razão, um mundo em que alegrar as pessoas seria mais importante do que deixá-las deprimidas sob o peso dos fatos reais.
           A democracia liberal depende de pessoas  fazendo algo extraordinário,ou seja, escolhendo um grupo de pessoas que representam seus interesses e opiniões no Parlamento.  Sem o elemento aglutinador da confiança e da verdade, esse processo extraordinário cedo ou tarde há de deteriorar.

Fontes: The Economist  (c/ tradução do Estado de S. Paulo)

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