segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O Levante de Hong Kong


                                   
           Milhares de manifestantes - segundo os organizadores do evento, cerca de oito-centos mil - saíram às ruas estreitas e tortuosas de Hong Kong, a oito de dezembro, para participarem de uma das maiores manifestações das últimas semanas, que coincide com os seis meses do início dos protestos antigoverno - a princípio da então novel governa-dora Carrie Lam e seu mal-avisado apoio a projeto de lei que buscara instituir a extradição para a China Continental.

           De acordo com a Frente Cívica para os Direitos Humanos, que se ocupou da organização do evento - cerca de oitocentas mil pessoas compareceram.
           A mobilização teve apoio nos resultados das últimas eleições regionais, há duas semanas, quando o parlamento local foi eleito com maioria de candidatos pro-democracia, aplicando pesado revés à habitual hegemonia da RPC. Pautas como a brutalidade da polícia e a demanda pelo sufrágio universal foram defendidas pelos manifestantes, em ato que se caracterizou como majoritáriamente pacífico.

             Outro aspecto inédito está em que a autorização para a manifestação haja sido concedida pela Polícia, e válida para toda a Ilha, algo que não sucedia desde agosto passado.  Dessarte, pautas como a brutalidade policial e a demanda pelo sufrágio universal foram defendidas pelos manifestantes, em ato que se assinalou por majoritariamente pacífico. 
               O que, de resto, sublinha tal caráter em que se desenrolou a colossal passeata foi a circuns-tância de que  somente duas facas e uma pistola foram apreendidas, e onze pessoas foram detidas.
                Dentro de uma perspectiva em que a ex-colônia britânica era vista por muitos observadores como mergulhada em sua pior crise desde a sua devolução para a China, em 1997, e o território é palco de manifestações desde junho último, com frequências quase diárias, para reivindicar reformas democráticas, assim como  investigação imparcial  da atuação da polícia durantes os protestos.

                  No entanto, sem fáceis otimismos, se lográssemos deter o relógio do tempo, se veria uma atmosfera de menos confrontação, e de maior compreensão, ainda que com doses substanciais de boa vontade. E a existência dessa atitude reflete pluralidade de fatores. Primo, o glamour, se assim pudéssemos chamá-lo, de manifestação em que a ênfase não está na violência, e sim na reivindicação dos próprios direitos. Secondo, o sucesso mundial e a consequente maior repercussão dessas gigan-tescas passeatas, que com o passar do tempo revelam entre suas marcas as frases inteligentes - que correm mundo à fora - e que, apartando-se da violência, assinalam  a originalidade e a respectiva beleza no gesto, eis que o traço da habilidade embeleza as reivindicações, e, por conseguinte, as torna mais palatáveis e, também, mais difíceis de serem rejeitadas com o bate-pronto das negações maquinais. Não se deva, de resto esquecer, que a beleza e a originalidade dos slogans e das palavras-de-ordem, vem a conferir-lhes características que participam da inteligência do povo cosmopolita de Hong Kong, e a que as invisíveis aduanas desse mundo, vasto mundo, estejam prontos a acolhê-las nos seus mercados da notícia, com as pressurosas atenções que se reservam à inteligência e à veia artistica e cultural no ultramar da inteligência e originalidade.

                 É difícil contornar a realidade e, sobretudo, a eficácia dessa inteligência, máxime quando se defende as verdades da democracia - exclusão da brutalidade policial, demanda pelo sufrágio universal - enquanto aceitos ainda que pro forma - trazem para essas multitudinárias demonstrações a pátina da democracia, que com seus adereços, ainda mais luzentes do que as "jóias"  de Cornélia, na Roma antiga, conferem aos partícipes desses atos-monstro, em que se entoam vivas! a esses gigantes da política, nascidos e embalados pela Gloriosa, pela Francesa, e com direito à antiguidade na primazia, na simplicidade dos Helenos, cabendo aos seus cultores na Modernidade o placet quase irrefutável a esse abre-alas que ignora milhares de quilômetros, por trazer esses coruscantes adereços que se envolvem nas jóias singelas da liberdade de pensa-mento e dos direitos com que acenam ao mundo as grandes revoluções do conhecimento e da política, que habilitam aos manifestantes de Hong Kong desconhecer as bestas-fera da Injustiça e da Negação, enquanto tantos servos do poder se vêem constrangidos a aceitarem o que os respectivos amos e senhores abominam, mas a que não ousam denegar, pela força de uma aceitação determinada pela inteligência e as luzes do respeito devido à originalidade.

(Fontes: Carlos Drummond de Andrade, O Estado de S. Paulo )

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