quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A Balada das Balas Perdidas


                        
Todos os dias aparecem nos jornais
notícias já em canto de página.
Nesses tempos difíceis, descorçoados,
em que anomia, cinismo e injustiça
erguem as horrendas, desgrenhadas,
repulsivas cabeçorras,
recai até sobre estúpidas, subitâneas
mortes o ignóbil tratamento
de uma banalizada rotina.

Abatida a estudante,
o jovem, a criança e o operário,
rumo à escola ou trabalho,
seja na rua, esperando condução,
seja em ônibus, van e carro,
seja ainda dormindo,
no que antes seria o sossego
do próprio anônimo quarto.

Dizem que ninguém está livre
de sorte tão triste e madrasta,
embora os riscos sejam maiores
nas zonas conflagradas
por pobreza, anarquia e tráfico.
No país da ordem e do progresso
a corrupção se pavoneia triunfante
dos palácios dos poderosos
aos fétidos pátios de milagres.

São balas perdidas
apregoam imprensa, radio e tevê.
Frases cunhadas em dias mais tranquilos
fulminam o insondável capricho das Parcas
a ceifar inocentes com gratuita crueldade.

Repetindo tais expressões
acaso transferimos para prosaica fatalidade
a autoria de tantos crimes
supostamente sem causa e sem agente?

Quem aperta o gatilho de armas
tão ativas, diversas e profusas,
nessas jornadas tintas de angústia,
medo e incerteza ?

Para expor ao exame das testemunhas,
sob as ofuscantes luzes policiais,
que suspeitos devemos alinhar?

Será acaso a pobreza,
mãe da revolta e do desespero ?
Será a loteria do nascimento,
favorecendo a uns poucos em dourados berços,
negligenciando  muitos nos grotões do olvido,
e tantos despejando na miséria das ruas ?

Mas quem, meu Deus, engenha tal pobreza,
e quem se compraz em fazer girar
a aleatória roda da fortuna?
Serão porventura anos, décadas de desgoverno,
a serviço de dúbias ideologias,
de injunções estrangeiras,
e de privadas, inconfessáveis ambições ?

A máquina do Estado, imensa, pesada burocracia
serve aos quarenta ministros de Ali Baba e a si própria,
e não ao interesse maior do Povo,
em nome de quem são feitas as leis,
e se engordam os bancos e o grupo dominante.

Na sombria, espúria aliança
de corporativismo, corrupção e incompetência
se manipula a esperança do bom governo,
enquanto se lança sobre os ombros da Nação
o jugo insaciável e odioso do tributo
de que o cidadão não colhe a equa contrapartida.

São promessas e palavras vãs,
que ouvimos às vésperas dos comícios,
cada vez menos críveis,
cada vez mais escarnecedoras
da realidade do dia-a-dia.

Desse monstro que devora inocentes,
desta estranha entidade composta
por falsos, iníquos compromissos
e solerte desrespeito do bem público
surge o indiciado maior,
ídolo ávido de sangue e humano sacrifício.

Pois em verdade, mentem os arautos modernos -
as balas não são perdidas,
são balas certeiras,
deflagradas por muitas e nefandas mãos.

Ao malbaratar os recursos gerados pela faina do Povo,
ao privilegiar o interesse de poucos ao invés dos muitos,
ao engordar a alta burguesia e seus cães de guarda,
ao sangrar operário anônimo pela opulenta Finança,
e na diuturna orgia do superávit primário
menoscabar o direito à educação, saúde e segurança,
entre miopia, desídia, incompetência e corrupção,
se obra com nefasta pertinácia,
para engrossar as hostes do mal,
cevar as hordas odientas e subalternas,
de sequazes, parasitas e clientes,
enquanto a massa amorfa dos que crêem na justiça
se debate na incerteza, no pessimismo,
e na ignorância da própria força.

São horas difíceis, graves, dolorosas.
Será à toa o sacrifício da maioria,
e infindas as hipócritas promessas ?
Tudo se há de resumir a baldados protestos,
inúteis, patéticas, desarmadas passeatas
contra a arrogância do poder,
e no execrável endeusamento da malversão,
do privilégio e da corrupção,
sob o sórdido manto da impunidade acobertados ?

Por quanto tempo ainda espoucarão
as balas assassinas
sob o compasso de ordem iníqua ?

Por quanto tempo
permanecerá silente e resignada
a massa laboriosa e sofredora
enquanto as potestades que dizem representá-la
se aferram ao atual descalabro,
a que erigem em sistema de governança ?
Que não se iludam os sôfregos, os cínicos e os tolos,
por que tem limites a paciência e a pacífica índole
de uma grande, espezinhada  Nação.


                                        Esboçado em Porto Alegre, a 5 de maio de 2007
                                        e completado no Rio, a 26 de agosto de 2008.

Nenhum comentário: