quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Relatório Final da Comissão da Verdade


                    
         Foi com agradável surpresa que a cerimônia de encerramento da Comissão Nacional da Verdade (CNV) se realizou em termos bem diferentes dos prognosticados por informes prévios na grande imprensa.

        A dez do corrente, em salão lotado do Palácio do Planalto, a Comissão apresentou seu relatório final, em que responsabiliza 377 pessoas por violações aos direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985).

        Dentre as importantes correções quanto ao período em tela, a CNV acaba com a estória de que as sevícias e demais torturas ocorriam nos porões da ditadura, sem que o comando das forças armadas tivesse conhecimento dessas violações.

        Nesse quadro, a comissão concluíu que a violação de direitos humanos – como a prática de tortura, execuções e desaparecimento forçado - era sistemática, com a cadeia de comando indo até a presidência da república. Nesse sentido, foram listados os cinco generais-presidentes: Humberto de Alencar Castello Branco (1964-1967), Arthur da Costa e Silva (1967-1969), Emilio  Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985).

         A Comissão esclarece que a tortura e outras violações não ocorriam por capricho ou vontade própria de chefes militares, havendo uma estabelecida escala de comando. As três listas que englobam os oficiais responsáveis, apontam, de forma hierárquica, os oficiais responsáveis. Da primeira, constam 53 nomes de militares que tinham “responsabilidade  político-institucional pela instituição e manutenção de estruturas e procedimentos destinados à prática de graves violações de direitos humanos”. A lista, além dos presidentes, abrange os ministros das três forças e chefes dos centros de informação do Exército (CIE), Marinha (Cenimar) e Aeronáutica (CISA).

          A segunda lista tem 88 nomes – quatro deles presentes na primeira – e inclui militares e civis que ocupavam cargos de comando de hierarquia inferior.  Consoante a CNV, tais cargos têm “responsabilidade pela gestão de estruturas e condução de procedimentos destinados à prática de graves violações de direitos humanos”. Estão nesse rol comandantes de unidades das Forças Armadas e dos notórios Destacamentos de Operações de Informações/Centros de Operações de Defesa Interna, v.g. os DOI-CODI.

          Decisão da Corte Interamericana de 2010 e necessidade de revogar  Lei da Anistia.

           É conhecido o avanço do direito internacional humanitário e, em tal sentido, foi assaz positiva a recomendação da Comissão (com um único voto contrário) de que seja revogada a Lei da Anistia – que já na fase final do Regime Militar o Governo militar se autoconcedera. Tanto em São José, na Corte Interamericana, como nas principais Cortes europeias, a tortura e outras formas graves de crimes contra os direitos humanos, não mais são suscetíveis de prescrição. Pela sua gravidade, tanto a tortura, quanto os demais crimes contra os direitos humanos não podem ser objeto de anistia sob qualquer título.

          Infelizmente, no momento atravessa uma fase intermediária, em que muitos corajosos juízes de 1ª. Instância tem sentenciado, em questões recentes, a inaplicabilidade da Lei da Anistia, por ser imprescritível o delito contra os direitos humanos.

         Nesse aspecto, a vanguarda do atraso se acha com o Supremo Tribunal Federal que, na contramão do direito internacional humanitário, em juízo relativamente recente, pronunciou-se, por maioria de votos, em favor da manutenção da Lei da Anistia.

         O próprio Governo Dilma Rousseff, de acordo com a linha concessiva que caracteriza o poder civil em nossa terra, continua a manifestar-se  pela não-revogação da Lei da Anistia (aprovada pelo Congresso no ocaso do regime militar). Nesse contexto, o ex-Ministro da Justiça, José Carlos Dias, e integrante da Comissão, asseriu que muitos crimes anistiados em 1979 não são políticos, mas comuns e assim imprescritíveis. Nesse contexto, a posição de Dilma Rousseff, conformando-se com essa postura retrô (em termos de jurisprudência do direito internacional humanitário) só pode ser levada a conta de conveniência política no tratamento do setor castrense com uma postura atrasada e muito diversa da de nossos irmãos sul-americanos, como os argentinos, que condenaram e encarceraram presidentes militares responsáveis por graves abusos aos direitos humanos, como o tenente-General Jorge Rafael Videla.

         Infelizmente, no Brasil a quartelada do general Deodoro da Fonseca derrubando o Império, e o mais democrático de nossos governantes, o Imperador Pedro II, a quinze de novembro de 1889, ainda constitui o sinalizador para a atitude do Poder Civil em nossa terra defronte do castrense. São raros os presidentes que, sem confrontação, mas com energia, afirmam a soberania do poder civil. Dentre esses, Epitácio Pessoa , que presidiu  o país (1919-1922) em um momento quando inexistia qualquer rede internacional de dissuasão para o golpe militar, tenha nomeado dois civis para os ministérios militares (Exército e Marinha, eis que inexistia a Aeronáutica  nos anos vinte), e haja sempre afirmado na prática a supremacia do Poder Civil, que é o primado da Nação sobre as corporações militares. Essa altanaria não é atitude comum entre os políticos de Pindorama.

          Nesse contexto, não surpreende a pouca colaboração do estamento militar brasileiro à Comissão. De uma certa forma, a CNV sofreu de alguns embaraços à sua ação. Não dispunha do poder de convocar as testemunhas, mas apenas o de convidá-las. Por outro lado, a própria lei que a instituiu já mostrou fraqueza, eis que não se cingiu ao período militar propriamente dito (1964-1985). Para ficar melhor na foto, o estamento castrense conseguiu que o período analisado seria de 1946 a 1988. Com isso, a CNV teoricamente não se cingiria à análise dos 21 anos da Redentora, acrescentando-se o período de vigência da Constituição de 1946, quando, apesar de grandes distúrbios – inclusive o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954 e o movimento de retorno aos quadros constitucionais vigentes (que atalhou tentativa de golpe da UDN), em novembro de 1955 – prevaleceu, apesar de tudo e os sobressaltos do subdesenvolvimento, a Carta Magna de 1946. Por outro lado, a cortina que mostra uma vez mais a atitude de composição do Poder Civil é puxada até 1988, data da promulgação da Constituição Cidadã.

           Foi noticiado que a Comissão recomenda que sejam retiradas as designações de logradouros, vias públicas, pontes, etc. com o nome de presidentes e comandantes do período do regime militar. Eis uma norma oportuna, que deveria ser logo implementada, e não relegada às calendas.

           Há outras providências oportunas da CNV, como a proibição de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar, a desmilitarização das PMs, a reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação nas Forças Armadas e na área de segurança pública para valorizar o conhecimento sobre direitos humanos e democracia. Nesse sentido, muda os currículos das academias militares e policiais com o mesmo objetivo.

          Infelizmente, nada se fez para colocar a necessidade de suprimir a Justiça Militar – que em alguns países irmãos da América do Sul não mais existe. Nada justifica a manutenção dessa justiça corporativa, que hoje se acha em nível dos tribunais superiores.                                                                                                                                                                                    

          Em termos de cooperação do estamento castrense, o não-comparecimento dos Comandantes das Três Forças Militares à cerimônia de encerramento da Comissão Nacional da Verdade semelha um pronunciamento (aqui sem trocadilho) das principais autoridades de Exército, Marinha e Aeronáutica que não é condizente com o espírito de subordinação ao Poder Civil e de cooperação com a Comissão, sem falar de que a cerimônia se realizou no Palácio do Planalto, encabeçada pela própria Presidente Dilma Rousseff. Espera-se mais em termos de liderança da autoridade do Ministro da Defesa, cuja presença simboliza a subordinação militar aos poderes constitucionais constituídos.

           Não se trata de ocasião social e sim de comparecimento a cerimônia que culmina um processo de integração do militar nas estruturas constitucionais civis do Estado brasileiro.

           Nesse sentido, constitui lacuna que, pelo visto, não se tenha estudado o longo trabalho feito pelo governo de Bonn, e mais adiante, com a reunificação, através das instâncias de Berlin, com vistas à reinserção do militar alemão dentro de um espírito democrático. Nesse contexto, o princípio da Innere Führung (liderança interior) deveria ser avaliado, pelo que representa de aporte novo e democrático ao regulamento militar. Com as necessárias adaptações do conjunto normativo empregado pela Bundeswehr (exército alemão) que visa a dar um conjunto de normas de comando, com o respeito do soldado enquanto pessoa e cidadão, e.g. liderança a ser exercida  de conformidade com a modernidade e a democracia, assim como a indispensável preparação psicológica.  

           Por fim e terá sido a circunstância que pelo inesperado provocou particular atenção, foi a emoção experimentada pela Presidente. Dada a sua passagem pelas prisões do governo militar, além do julgamento a que foi submetida pela Corte castrense, presidir à cerimônia de conclusão do processo da Comissão, órgão especificamente encarregado para avaliar o período à luz dos princípios democráticos que felizmente hoje norteiam a atuação das nossas corporações militares, terá trazido à lembrança de Sua Excelência memórias e ideias que carregam de volta o assédio de recordações de um momento na sua vida em que ilusões e convicções foram colocadas em dura, por vezes cruel provação. Quando as comportas do sofrimento são abertas, por maior que seja a disparidade com as alturas do poder, o contraste entre o feérico atual e as sombras de um passado que teima reaparecer é por vezes demasiado violento para que possa ser sufocado no choque das duas realidades. E, assim desgrenhada no gesto e aspecto, a memória ressurge vívida, com a sua carga de sofrimento e de tristeza, que não mais podem ser resgatadas. Por isso as lágrimas e quiçá o choro, que ela, enquanto desfia as linhas preparadas para a ocasião, relembra e por isso revive no rictus facial um fundo padecimento que os anos não logram sufocar.

( Fonte:  O  Globo )

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