domingo, 12 de maio de 2013

Papa Giovanni e Papa Francisco

                                   
        Assim como o argentino Cardeal Jorge Mario Bergoglio constituíu agradável surpresa para a Igreja, quando foi eleito Sumo Pontífice, depois de breve conclave, convocado pela inesperada renúncia de Bento XVI, igualmente o mundo recebeu o Cardeal de Veneza, Angelo Giuseppe Roncalli, com a perplexidade reservada a quem se rotulara, pela idade avançada, como um papa de transição.
        Depois do longo e rígido pontificado de Papa Pacelli (março de 1939 a outubro de 1958), por um Santo Padre de postura hierática e de aristocrática família, os cardeais eleitores terão preferido uma pausa na Santa Sé, com um pontífice idoso, que preparasse a Igreja para um sucessor seu mais jovem.
        E não é que o conclave de outubro de 1958, ao eleger um cardeal prestes a completar setenta e sete anos, realmente escolhera um Papa de transição. Não no sentido, porém, que se dera na eleição de Papa Giovanni. Como  disse o seu Secretário, Dom Loris Capovilla, bem outra era a transição que o breve, mas fulgurante pontificado de João XXIII traria para a Igreja.
        O Papa do Concílio – e ele que sabia não ter muito tempo à disposição, tratou de anunciá-lo a escassos meses de sua entronização, perante um punhado de atônitos cardeais na basílica de São Paulo fora dos Muros – convocara essa magna assembleia não para condenar, como deixou claro nas sua oração de abertura aos padres conciliares, mas para trazer a Igreja ao mundo.
       E,  para quem tivesse olhos e ouvidos, se bem atentasse, não deveria surpreender-se tanto. Quando lhe foi perguntado que nome escolheria, não trepidou em apelar-se João, apesar de ter sido abandonado pelos Papas por muitos séculos. E a mensagem já lhe indicava o magno propósito: João é o apóstolo das gentes. Quem hoje ousará negar que ali estava todo o programa de seu pontificado ?
      Ao contrário da postura de seu antecessor, Papa Giovanni iniciaria o seu ministério com a visita ao cárcere de Rebibbia, a prisão romana. E com a suas encíclicas e iniciativas pastorais, ele reintroduzia a primavera na Igreja, com o seu sorriso de boa vontade, o seu chamado a todos sem exceção e a sua faculdade de se aproximar não só dos irmãos separados, mas de credos e religiões que faziam da oposição e da contraposição extrema a própria estrela guia.
      Mais uma vez, para quem tivesse a fortuna de conhecer-lhe a longa caminhada, nada  seria uma surpresa.
      Além de tudo isso, João XXIII foi filho de camponeses pobres –  basta visitar-lhe o tosco abrigo onde nasceu para que , a um tempo,se admire os genitores pelo exemplo, o filho pelo esforço e o estudo, e a Igreja por elevar não só à Sé de Pedro, mas aos altares esse grande Papa que teve, a três de junho de 1963, morte inigualável.
      Com efeito, o seu desaparecimento foi saudado não com oficiais manifestações protocolares, em que a etiqueta se substitui ao sentimento. Perpassava  não só sensação de perda, mas também a consciência de que se afastava do nosso convívio um raro ser que tinha o condão de um verdadeiro traço de união entre as gentes.
     Descrever-lhe as qualidades é tarefa que de muito extravasa os limites deste artigo. Apreciaria, apenas,  sublinhar-lhe o dom do diálogo, fundado na boa vontade e nas qualidades que compõem a santidade. Esse raro fenômeno acompanharia a sua trajetória, tanto como Secretário do Bispo Radini Tedeschi[1], bispo de Bérgamo, quanto na longa e difícil estada na Bulgária e na Turquia, e até mesmo como Núncio Apostólico em Paris, nomeado por Pio XII, para surpresa da Cúria Romana.
     Conversar com o outro,  não como inimigo, mas com alguém que é digno de atenção e de compreensão, foi sempre uma característica do sacerdote Angelo Roncalli, em todos os avatares de sua longa caminhada, que não semelhara a muitos como predestinada às alturas por fim alcançadas, sempre como decorrência da própria personalidade e de suas qualidades humanas, jamais  postas ao serviço da ambição.      
     Dada a extensão de sua fama de santidade – manifesta para todos que tiveram a ventura de conhece-lo pessoalmente –  sua capacidade, em tão curto espaço de tempo, de transformar uma igreja triunfalista, cercada de ouropéis e de enganalados nobres, em um chamado a todas as gentes – através da inspiração do Concílio Vaticano II – assim como, de em palavras simples e de improviso – como no famoso discurso da Lua, feito por um extenuado Papa Giovanni ao cabo do longo dia da abertura do tão desejado Concílio, em que até hoje ouvimos o tocante clamor da multidão, embevecida pela espontaneidade da imagem.
     O culto popular à santidade desse Pontífice precedeu de muito o reconhecimento deveras tardio pela Santa Sé de sua beatitude. João Paulo II o elevaria aos altares somente no ano 2000. A própria negação de Paulo VI, seu sucessor, em fazê-lo santo, constituiria um enigma para o seu Secretário Particular, dom Loris Capovilla, que dedicaria inúmeras obras relativos às excelsas qualidades de Papa Giovanni.
    Não tenciono compará-lo a outros que obtiveram a canonização em tempos muito mais rápidos. Talvez a grandeza de Papa Giovanni – e a profundidade do culto que lhe é devotado – tenham causado essa longa pausa.
     Tomando como  mote as palavras de um grande teólogo – o maior do Concílio – o padre jesuíta Karl Rahner, que se referiu ao inverno na Igreja (o efeito doutrinal dos papas conservadores), quer-me parecer que estão colocadas as condições para que a Igreja acolha entre os santos a título pleno ao beato Angelo Giuseppe Roncalli.
     Não podemos negar à Igreja dos dias de hoje o benefício de tal reconhecimento. Ainda na Idade Média, os santos não eram consequência de processos clérico-burocrático em congregação romana. A santidade era proclamada pela comunidade dos fiéis, em função da experiência e da convicção.
      O presente Papa em tantos aspectos mostra alvissareiras semelhanças com o Papa do Concílio, e  tem pautado as suas primeiras semanas com gestos e mudanças tendentes a aproximar de suas raízes a Igreja de nossos dias.   
       A iniciativa de reconhecer a santidade do Beato João XXIII representaria o reconhecimento de uma nova primavera na Igreja de Cristo. Seria medida que pela sua magnitude não faria apenas justiça ao Papa do Concílio, mas o sinal de novos tempos com a mensagem de obediência e paz ao mundo que jamais se furtou às palavras e ao exemplo deste Santo da Igreja.

 

( Fontes:  Annuario Pontificio 1988, The New York Review of Books )



[1] Bispo Giacomo Radini Tedeschi (1857-1914), bispo de Bérgamo, famoso pelo interesse na condição operária, foi modelo para o futuro Papa João XXIII, seu secretário.

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