quarta-feira, 1 de maio de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (II)


                                                       II

 

           Meu mui prezado e bom Amigo Pedro,

 

           Antes de te relatar o almoço com o Rezende, a que me referi na carta anterior, gostaria de partilhar contigo algo que pesa na minha consciência. O nosso último encontro foi a 26 de abril. Dessa quarta-feira até a data da tua partida, transcorreram dezoito dias. Cabe, portanto a pergunta que, insistentemente, me tenho feito: Por que diabos não te telefonei mais ? Poderia recorrer a um modismo que ora reponta, a cada instante, no linguajar corrente. A resposta não seria fácil, por serem as coisas mais complicadas do que parecem. Tinha arrostado um processo gripal que me forçara a adiar a reunião prevista para dezenove de abril; e na manhã seguinte ao almoço, viajara para Brasília, de onde retornei no domingo, 30, com uma recaída da afecção respiratória, que devo agradecer ao ar condicionado central do Itamaraty e aos contínuos deslocamentos aéreos.
          Passado o feriado do primeiro de maio, ficaria sozinho no apartamento, com a ida de Ana para Porto Alegre. A par dos tradicionais transtornos que a ausência uxorial tende a causar, houve outras questões materiais, como as dificuldades com a gestão da casa e inesperado desarranjo no sistema de refrigeração da moderníssima Brastemp, o que me tornaria não só dependente do eficiente sistema de atendimento e reparação, senão com o desconforto de não ter geladeira em terra quente como o Rio. Se, dentro desse contexto, se pôde manter esquema aceitável, eu o devo à experiência e boa vontade de nossa colaboradora Solange.
         Depois, e às vésperas do regresso ao posto, fui passar um fim de semana nos pagos. Seja dito, a propósito, que sempre invejei a tua resolução de limitar as viagens aos deslocamentos terrestres entre Rio e Petrópolis. Enfrentei nesse vôo a Porto Alegre um atraso de duas horas e meia, comunicado, de resto, e sem maiores explicações, a medida que a disponibilidade da aeronave se via ulteriormente afastada, em avisos sucessivos do pessoal da Gol (a atual preferida nos transportes internos).
         Já vai longe esse intróito justificativo e, sem embargo, não logro satisfazer-me, nem apartar o amargo ressaibo que me deixa a inarredável circunstância de  que, nesses dezoito dias, não reabri, no horário previsto das nove horas da noite, a janela para as nossas conversas telefônicas. Tantos assuntos que eu gostaria de comentar contigo, alguns mesmo que me esquecera levantar no almoço de 26 de abril, que as cruéis Parcas determinaram fosse o derradeiro. Decerto, conto retirá-los da bolsa do silêncio, em que os relegou o destino, mas, por muito que o diapasão se eleve, as palavras não ressoarão nos teus ouvidos, nem disporei do benefício do parecer do amigo, seja expresso tal obiter dictum[1], seja fruto de conhecimento e funda reflexão. 
        Não importa. A nossa longa prática, se qualquer coisa me ensina, é que as minhas observações, relatos, confidências não são obra do acaso, não são frases lançadas ao vento, ou gritos em busca do irracional consolo dos ecos erráticos e imprevisíveis nas anfractuosidades de vastas formações rochosas. Não se apaga amizade de quarenta anos, e tampouco me há de faltar a obstinada e para ti improvável convicção  de que, de alguma forma, essas palavras, essas frases, em vão, não hão de ser. Aqui suspeito entrever um leve sorriso do amigo, como se eu, aristotélico de boa cepa, me permitisse a platônica irrupção de vagas lembranças de existências anteriores... Com alguma trepidação, me animo a assegurar-te que não. Dentre as nossas afinidades, está a de nos incluirmos entre os simpatizantes do Estagirita, nessa divisão filosófica que ignoram os filisteus, ïj ðïëëïß[2], que crescem a olhos vistos, e já assumem, por toda a parte, a herança de um patrimônio que não construíram. Por isso, ó  Pedro, onde estiveres não interpretes essas minhas certezas como consequentes de desvios doutrinários. Elas, ao invés, pertencem àquelas noções que nos ensejam prosseguir na nossa jornada, e nos valem em horas difíceis, nas quais intentamos rasgar o pétreo silêncio de desafortunadas perdas.
        Tais considerações, se bem que necessárias, ora se estendem um pouco além do previsto. Cabe, portanto, reencaminharmo-nos ao convívio ameno do Urich, e da refeição que lá comparti com o comum amigo Rezende.
       Não diferiu do formato costumeiro que eu chegasse primeiro. Esperei largos minutos pelo  Rezende, que viria pouco antes da hora aprazada. Divisei a figura quando atravessava a porta; e com os meus acenos e a ajuda do teu conhecido e solícito garçom, cruzou sem tardança o restaurante repleto.
       Tão pronto nos abancamos, nos envolveu sensação de que faltava à mesa mais um conjunto de prato e talheres. O ambiente, o cardápio, as bebidas, a dupla remanescente, tudo evocava o amigo ausente. Pedimos a comida – desta feita, o Rezende se contentou em dividir o frango na chapa, a que agregou um arroz com brócolis, e eu as habituais batatas  fritas – e a princípio falamos das experiências havidas por força da tua morte.
       Contei da ida a Petrópolis, da missa na igreja da Ressurreição, a que acorreu o teu colega Luis Cláudio Cardoso e o até então para mim desconhecido Dr. Brito. Rezende, por sua vez, me disse da missa que encomendara no Icaraí. Expressamos a comum preocupação com a situação da Thérèse, de o que podia ser feito para ajudá-la, e o quanto fora providencial a assistência do Dr. Brito. Essa carta, para nós ignota, e que ciosamente guardaras na manga, se afigurava de muita importância para ajudar tua mulher neste transe, quando são escassos os recursos, e tantas providências surgem no plúmbeo caminho da implacável burocracia dos óbitos.
      Não vás porém iludir-te com tal exórdio. Pois os dois amigos lá estavam – e sem o ar compungido dos velórios – para recordar-te. Se permites a perífrase ... PëëÞëïõò äéáëåãüìåíïé, dðéìÝìíçíôáé  ÐÝôñïõò[3].
        O lugar nos era tão familiar, tantas vezes nos tínhamos ali reunido, seguindo uma sugestão minha, dado o manifesto e crescente desconforto que nos causava a refeição no Bar Monteiro. Se com o passar dos anos, a rotina dos almoços tivera que sofrer algumas modificações, na verdade apenas nos adaptávamos às circunstâncias. Assim, não mais nos encontramos previamente no Sebo da São José, pelo simples fato de que, tangidos pelo aumento do aluguel, os donos tiveram de mudar-se para uma loja acanhada na Primeiro de Março. Antes, já o mau cheiro da rua da Quitanda me induzira a alvitrar experimentássemos o restaurante Urich, que oferecia maior comodidade, inclusive a do ar condicionado. E lá nos quedamos, satisfeitos com o estabelecimento e a atenção do pessoal, em particular um garçom mais jovem, que nos dava atendimento preferencial.
       Sentados na apertada mesinha que reservam aos clientes, sentíamos ambos a sombra da tua presença, e se era estranhável o silêncio, tudo o mais colaborava para tornar senão real, pelo menos verossímil a sensação de que te achavas ao nosso lado, beliscando as azeitonas, remexendo nas tuas sacolas para entregar-nos xerox de um artigo, ou recorte de revista que, em duplicata, nos trouxeras das alturas serranas. Em geral, a produção do papel fora antecipada em telefonema, e se reportava a questão a que desejavas chamar a nossa especial atenção. Sempre tinhas o cuidado de nos proporcionar cópias idênticas dessas matérias, e para tanto chegavas ao requinte suplementar de sobrescritar o nome do destinatário.
        Se, no entanto, por acaso o recorte ou a folha datilografada não pudesse interessar ao Rezende, ou por tratar-se de tema que me concernia diretamente, ou por estar vazado em alemão, te esmeravas em m’o passar longe dos olhos do velho amigo. De resto, não tenho dúvidas de que, com igual atenção, evitavas que eu me desse conta do que destinavas exclusivamente ao Rezende. 
         Respeitamos o ritual dos encontros – que, no último ano da minha permanência no Rio, haviam escasseado, provavelmente por uma inconsciente relutância tua em empreender a travessia – ao ponto de que o Rezende enjeitou as suas iguarias para associar-se ao consueto e acima referido frango na chapa. E sem acacianos comentários e formais elogios, enveredamos pela conversa à rédea solta que sempre marcara tais almoços.
         A única diferença esteve no assunto. Com efeito, eis-te transformado em larga pradaria, que percorremos com a naturalidade de cavaleiros afeitos à paisagem. Da imensidão do campo, escolhíamos um que outro recanto, e lá nos demorávamos, a rememorar episódios, que havias cunhado com estilo e verve habituais.
        Para ti decerto não valia o dito les absents ont toujours tort[4], mas tampouco julgamos à altura do personagem choramingadas e louvaminheiras evocações.
        Com a sem-cerimônia das antigas amizades, não desdenhamos mesmo aqueles desvãos que outrem desconheceria. Dessarte, armados de malícia carioca, expusemos cenas em que explodia a característica impetuosidade do teu temperamento. Jamais hão de confundir-se o gesticular por vezes desordenado com a excitação do energúmeno. Esse traço da tua personalidade – a vibração nos cumprimentos, o ardor intempestivo a frisar no gesto largo uma assertiva específica ou a flama da emoção – se agregava às cuidadas, sopesadas  ponderações do intelectual que se empenha em sobraçar um tema em todas as suas facetas e implicâncias. Dos tempos acadêmicos, Rezende revivia os assomos de quem, no calor da discussão, à guisa de pontuação, não hesitavaa em girar acima da cabeça o próprio guarda-chuva... Escusado acrescentar que, estando no passeio público, tal demonstração seria suscetível de turbar ou contrariar a terceiros. O acúmulo das alheias reações acabaria por dissuadi-lo dessas efusões.
       Aludi então à peripécia de que não ficaria eu indene, quando, já ao cabo de acalorado debate, Pedro culminaria um argumento com largo, inopinado bracejo que lançaria por terra o meu copo de chopp e – o que foi pior – me forçou a movimento brusco que iria agravar afecção na coluna que pensava estar em vias de superar.
        Naquela hora, nada foi dito. Bastou a tua expressão mais do que contrafeita, na verdade envergonhada, pelo que intuías haver o teu arrebatamento provocado. E, não obstante o dano involuntário sofrido, como sentir-se agravado por atitude em que o eventual excesso se confunde com a ínsita, juvenil inocência de quem, indaa que de forma desajeitada, apenas ansia reforçar a conclusão de um raciocínio ?
        O almoço se acercava do fim e me descobri a espreitar um Rezende que, malgrado os dois copinhos de Ipioca e os dois chopes, permanecia lúcido e fagueiro. Com os seus oitenta e sete anos, o andar mais lento e a postura algo encurvada, terá provocado em nós alusões ao estado de sua saúde, o que tacitamente traduzia a preocupação comum de que, ao longe, repontasse o dia no qual viesse a faltar ao encontro dos três amigos.
        Nem a ti, ouso dizê-lo, nem a mim, acaso sobrepairou a dúvida de que tal suposta ordem não se cumprisse um dia. E, agora, eu deparo, quiçá não o Rezende que conheci, mas um senhor a movimentar-se pela cidade, a participar plenamente de existência povoada de filhos, esposa e amigos, sem nenhuma marca do avanço dos lustros que os inevitáveis e genéricos achaques físicos.

       Meu bom e insubstituível Amigo,’

 

        se a sorte madrasta te convocou, na sinistra chamada a que são raros aqueles que se precipitam em responder, a dupla remanescente te recordou ainda no cafezinho tomado no bar em frente. Timbravas em assumir a despesa com as três xícaras no balcão  do café Capital, cuja qualidade decrescera no curso dos anos. O dedo de prosa que ali gastamos, se não diferiu pela brevidade dos anteriores, acentuava, por outro lado, a tua ausência. Pois a rápida passagem por um bar decadente apontava para o último rito da liturgia de nossos encontros. Rezende e eu te acompanhávamos ao segundo andar do Terminal Menezes Cortes, aonde te esperava o ônibus que te transportaria para Petrópolis. Amiúde, no passado recente, o embarque se transferira  para a praça que ladeia o trecho final da Nilo Peçanha. No dia 26 de abril, todavia, o ponto voltara para o Terminal, e lá foi que, por derradeira vez, te abracei. Com a postura de sempre, alerta, alegre e altaneiro, me desejaste boa sorte, sem saber que, em futuro iminente, dela mais precisarias.
      Como de costume, me afastei sem esperar que soasse a hora do embarque e te sentasses à janela da poltrona dianteira. A passos largos, deixei para trás a imagem costumeira dos dois velhos conhecidos me acenando.
       Desta feita, as coisas sucederam diversamente. Na calçada esburacada, fronteira ao Capital, me despedi do Rezende. Sobraçando a quentinha, levada para a simpática segunda esposa Vera, ele caminharia, ajudado por bengala, até a Praça Quinze e as barcas, com destino a Niterói. O meu rumo era oposto, eis que seguiria até a quadra do edifício Central, onde apanharia o metrô, no regresso a Ipanema.
      Ao abraçá-lo, meu caro Pedro, já outros temores me assaltavam. Pensava na próxima travessia transoceânica e no meu presumível apartamento, em terra estrangeira e por longos meses, do convívio do Rezende. Ao regressar, como o encontraria ? O deus Cronos é inclemente com os anciãos e, por vezes, acelera o ritmo.
       Adivinho o teu sorriso. Terá um sopro de merencório, mas a ironia, eu a mereço. Quem sou para presumir da ordem das coisas, como antes se dizia ? As volúveis Parcas podem decidir doutra maneira: ô ìÝëëïí Püñáôïí. [5] 
      Com funda saudade, do amigo de sempre,

 

 

 

 

 

                                                       

 

         



[1] dito de passagem.
[2] os muitos, a multidão
[3] falavam entre si e lembravam Pedro (a citação original se refere a Sócrates).
[4] Os ausentes nunca têm razão
[5] O futuro é invisível.

Nenhum comentário: