segunda-feira, 13 de maio de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (III)


 

          Meu mui prezado Pedro,

 

          difícil acreditar, mas já transcorre hoje o primeiro mês da tua partida. Nesse exílio dourado, não sei como andam as coisas com Terezinha. Tenciono em breve comunicar-me com o Dr. Brito, em verdade mais para fazer-lhe sentir que não está sozinho, de o que com o intuito imediato de ajudá-lo. Da distância, no entanto, busco, de alguma forma, ser útil. Estou intentando, meu caro Amigo, reabrir a conta no Banco do Brasil que, me releva a observação, não devias ter encerrado. Entendo o significado do teu gesto. Aposentado aos sessenta anos, querias cortar os laços com o exterior. Esqueceste, porém, que  a dita conta representa instrumento indispensável para quem é membro do seguro em grupo do Itamaraty. Todos os pagamentos médicos – que num assomo emocional não solicitaste do Segrupex – teriam sido creditados nesta conta. Se nesses vinte e dois anos não terás feito nenhuma consulta, médica ou odontológica – o que pela lógica me é quase impossível admitir, por mais robusta que haja sido a tua saúde -, decerto Thérèse terá carecido de atenções médicas especializadas, pelo menos em função do problema auditivo. Não discuto, todavia,essa tua negação: como posição de princípio, não me compete julgá-la por critérios racionais.

         Discuto, isto sim, a desnecessária e – me perdoes a franqueza – desavisada resolução de fechar a conta. Por mais que a ingratidão do ministério te haja afrontado – e compartilho da justiça dessa mágoa -, continuaste a ser um diplomata, inda que aposentado. Essa tua inconcussa prerrogativa, nenhum capricho poderia torná-la írrita. E, por conseguinte, estavas registrado sob o número XXX no Segrupex, número este que é igualmente assignado a Terezinha, como tua dependente.

         Adrede emprego argumentação jurídica, pois aqui me dirijo ao advogado praticante, membro da O.A.B. Neste caso, forçoso será reconhecer que não te assistia o direito de privar a tua esposa da prerrogativa de uma conta no exterior do Banco do Brasil, em que serão depositadas regularmente as indenizações devida pelo seguro médico, além dos cem mil dólares a que faz jus pelo seguro de vida do M.R.E. Dada a tua perene preocupação em proteger Teresinha, não tenho dúvidas de que, neste passo, te deixaste arrebatar pelo corcel das paixões, e que, por tal motivo, não tinhas ideia da consequente dificuldade criada.

         Por reputar imprescindível que a Thérèse venha a dispor da conta, não me conformei com a resposta do Arlindo (x), a qual, após consignar a atual inexistência de conta em nome do membro do serviço exterior brasileiro Pedro Carlos Neves da Rocha, a par do número de registro no Segrupex e a condição de dependente do cônjuge, indicava como solução a emissão de cheques em dólares pela seguradora. Assim, para cada transação, um cheque seria encaminhado pelo correio...

         Como aceitar um despautério dessa ordem ? Se, em tese, este expediente semelha absurdo, se tivermos presente a situação de Thérèse, meu estimado Pedro, a situação se agravaria deveras. E, nesse contexto, tudo aconselha que se adote a via mais garantida, mais discreta, e infinitamente mais prática, da conta em dólares na agência do Banco do Brasil em Miami.

         A celeridade da doença que veio abreviar os teus dias, se te poupou de sofrimentos, contribuíu e muito para o desorganizado estado de coisas com que se viu a braços a viúva, despreparada para lidar com as inúmeras consequências da fatalidade. Já me referi a essa situação – e enfatizei a preciosa e auguro continuada ajuda do Dr. Brito em atender às diversas formalidades da tua sucessão. Nesse quadro,  desejo ocupar-me por ora tão só da relevância do procedimento burocrático e bancário para reforçar a precária posição da viúva no que respeita à preservação de seus recursos.

         Por isso, me empenho em obter através de e-mails os dados necessários para que Terezinha possa abrir a aludida conta em Miami. A despeito da presteza do meio que nunca quiseste utilizar, a lentidão dos empregados continua a mesma dos tempos em que só se podia recorrer ao correio postal. Espero que a minha insistência venha a prevalecer, para que a tua mulher tenha afinal condições de exercer tal direito.

        Porque a alternativa, Pedro, se me afigura assustadora. Cercada pelo Hermes (y) e com as outras empregadas à espreita, a tua amada Thérèse corre sério risco. O Dr. Brito mora em Niterói. Se a sua presença eventual em Petrópolis mostra a essa gente que ela não está completamente desemparada, é mister reconhecer que se acha bastante exposta a mor parte do tempo.

        Hás de relevar o desabafo, porém me resulta muito difícil entender o motivo que te levou a manter como agregado à criadagem um indivíduo com os defeitos de caráter do Hermes. Apontam-me como motivo a tua bondade. Se a explicação corresponde à realidade, o que me parece provável, tal não me induz a aceitar-lhe a consequência. Até a bondade tem um limite, na medida em que, não obstante a caridosa intenção, a condescendência pode transformar-se em vetor de ulteriores efeitos danosos. Creio que onde te encontras, se vês o que ocorre na tua casa e, principalmente, o que pode aí acontecer, estarás decerto arrependido em haver tolerado a permanência de uma figura tão dúbia e repulsiva quanto o teu chofer.

       Assim, se lograr contribuir de algum modo para que a Terezinha tenha conta no Banco do Brasil, já me será bastante. Por ora, contudo, não é o momento de alvíssaras, pois o moço da gávea não distingue fímbria de terra à vista. Tenho de armar-me de muita paciência e tenacidade para vencer o egoismo humano, cujas funduras são insondáveis.

       Antes de ir adiante, julgo oportuno versar as dimensões da casa da Visconde do Uruguai e da criadagem que lá se acha. Dadas a inexistência de rendimentos colaterais e o esgotamento da poupança, pelos dispêndios com a tua enfermidade e passamento, salta aos olhos a disparidade existente entre os meios financeiros disponíveis e as despesas permanentes com a manutenção da residência, incluídos os salários dos empregados e as contribuições previdenciárias. Sei que será difícil para a Thérèse, mas se me afigura inevitável e urgente que ela se transfira para moradia mais conforme à sua situação, que lhe proporcione o que, a par de corresponder aos seus meios, melhor atenda à respectiva segurança. Pelo que vi, Terezinha não considera sequer a alternativa. Desejo sinceramente que ela não tarde demasiado em conscientizar-se dessa necessidade, de modo a que possa fazê-lo não tangida por credores e injunções judiciais, e que, em consequência, guarde certa margem de manobra, não só quanto à nova residência, senão para preservar as alfaias e objetos que lhe são caros.

        É de augurar-se que, nessa prova, o Dr. Brito confirme na prática a sua amizade. Como nu-proprietário, dele dependerá o êxito da transação, para que a viúva possa viver condignamente, com os recursos da pensão vitalícia, e em domicílio confortável, com a assistência de uma boa serviçal. Até o presente, todo o comportamento do teu amigo médico nos infunde confiança de que a tua indispensável intermediação será honesta e generosa.

       Cresceu o que pretendia ser apenas preâmbulo de correspondência, a ponto de transformar-se no seu teor precípuo. Malgrado não me tenha sido fácil levantá-lo, devo dizer-te que, como uma pedra no meio do caminho, não havia jeito de ignorá-lo. E é melhor que as verdades sejam expressas, mesmo aquelas a beirar o desagradável, para que não continuemos o nosso diálogo com a sobrecarga de pensamentos embargados por temores e precauções que ora não mais cabem.

       Essa carta, tão plena de incertezas e esperanças, comparte um pouco da dor das transições, que consigo carregam decisões passadas, de súbito e brutalmente questionadas pela precariedade da condição humana. Ao invés, sentiria mais prazer em referir o escrito na nossa memória, e que mais se coaduna com os traços marcantes da tua personalidade. É o que – se me valer a inspiração das musas e atendidas as injunções do diálogo – me proponho esboçar nas páginas adiante.

       Com amizade e entranhada tristeza,

 

 
(x) e (y)  Pseudônimos.
 

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