terça-feira, 21 de maio de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (V)

                                                 

        Meu mui caro e estimado Amigo Pedro,

 

        se a situação da Therezinha não está ainda desembaraçada, aos poucos se conseguem os primeiros resultados concretos. Assim, o que a burocracia denomina auxílio-funeral está sendo creditado na conta aberta em agência do Banco do Brasil. O aporte financeiro não atenderá decerto a todos os compromissos pendentes, porém releva notar que doravante já existem condições para que a tua esposa passe a receber do Estado o que lhe é devido. A participação do Dr. Brito tem sido decisiva para que os requisitos formais sejam atendidos; de minha parte, faço o que se acha ao meu alcance para que se normalize o estado de coisas. Nesse sentido, há duas questões a que empresto particular ênfase: a autorização para uma conta em nome de Therezinha em agência do Banco do Brasil  (a meu ver, bem encaminhada); e a portaria de concessão de pensão vitalícia, o que daria à viúva  os meios para a sua subsistência. Nesse contexto, caberá a ela verificar se a renda mensal é consentânea com seu sustento e as obrigações decorrentes da manutenção da residência e da criadagem, nos termos por ti deixados.

       Afastemo-nos, contudo, e depressa, dessas incômodas intrusões das cruezas existenciais, para mergulharmos em um passado que nos pertence. Se bem que frágil criatura ora por inteiro dependente de memória perecível, cuidemos de revivê-lo das sombras solertes e sub-reptícias, que, nas areias do tempo, vão a princípio esmaecendo, empós desfigurando, e ao cabo enterrando as fragmentárias e pulverizadas lembranças no turvo, obscuro, estagnado poço, em que, como Totonho Rodrigues, hão de dormir profundamente.

        Partimos de Quito às carreiras, fechando a casa – cujo aluguel continuei a pagar pelos três seguintes meses, por força de cláusula contratual – em dois dias. A gravidez de minha esposa beirava os oito meses e ‘tecnicamente’ ela não poderia viajar. Mesmo assim, pôde chegar indene ao Rio de Janeiro.

        À época, eras o Encarregado de Negócios, e a ausência de Lucillo Haddock Lobo me foi providencial. Ao invés de aborrecer-te com a partida do segundo diplomata, foste de grande ajuda para o colega e amigo que prematuramente voltava à Secretaria de Estado, chamado a serviço, para ser oficial do gabinete do Ministro Magalhães Pinto. Como a minha estada no Equador mal chegava a nove meses, não poderia ser removido para o Brasil. Só podia levar comigo bagagem acompanhada. Todo o restante, inclusive os inúmeros artigos e petrechos que importáramos para o nascimento de nosso filho, deveria ficar em Quito à espera da oportunidade para ser enviado ao Rio de Janeiro.

        Nos meses subsequentes, soubeste aproveitar os voos do DC-4 do Correio Aéreo Nacional (CAN) para o transporte dos objetos de mais urgente precisão, entre os quais, o berço para o recém-nascido, o seu carrinho, e a mesinha para a troca das fraldas.

       Foram préstimos de grande utilidade, que nos habilitaram a reconstituir em algumas semanas quase toda a infraestrutura amorosamente escolhida e encomendada pela futura mãe, de um catálogo do John Plain, um department store estadunidense. 

        Nascido o primogênito, e completado o ano regulamentar, regressaria a Quito, por uma breve semana, em que, arranchado na minha desfeita moradia, providenciei o embalamento dos móveis, livros e demais pertences. O Porsche, não sem certa melancolia, vendi para Blanche Norton, a rica proprietária de uma das poucas emissoras da televisão equatoriana. Sem embargo da curta permanência, me entregaste caixa de prata com a tua assinatura e as dos Adidos Cultural e Militar. Mais uma vez para minha fortuna, estava o Embaixador ausente do posto.

        Em honra que a mui poucos reservavas, para almoço de despedida, me recebeste com Thérèse no teu apartamento, já decorado com os porta-retratos dos antepassados. Nas amplas salas da morada, sobre as mesas circulares de mogno reluziam as molduras de prata. Na luminosidade quitenha, o ambiente era espaçoso e acolhedor. Muitos anos mais tarde, na mansão portuguesa da Barão do Rio Branco, na calada de uma noite ignóbil, a vilania de um serviçal e anônimo bando de cúmplices privaria o casal de todas as argênteas alfaias. Se suportaste a perda com filosófica dignidade, sabedor que ao longo dos anos tinhas amealhado outra material riqueza de incomparável valor, sentiste pela companheira Therezinha, a quem a visão de tais enfeites, adquiridos com cuidado e mantidos com esmero, se afigurara especialmente prazerosa.

        Seguiram-se anos em que, se os contatos não se interromperam, eles se tornaram algo esgarçados, em virtude de trajetórias diversas e das contingências da distância. Recordo-me que voltaste para a Secretaria de Estado, quando a minha permanência no gabinete já se acercava da próxima remoção.  Foste para a Divisão de Segurança e Informações, menos por ideologia do que para atender a convite de amigo,o Ministro Areias Neto. Ao partires de Quito, lá deixaste a biblioteca não só enquanto penhor do previsível regresso, senão como sinal da opção não contra a carreira, mal em prol da cultura no livro imantada.

       Por mais que intente encontrar nessa década e meia traços memoráveis de consultas ao mestre e de intercâmbio de impressões e ideias, só depara o vasto, desbotado manto da quase hibernação da amizade, pontualmente sacudido pelos votos de boas festas. Decerto, mais haverá, se pudesse pesquisar os maços de correspondência que dormem nos armários do Rio de Janeiro. Na atual impossibilidade de fazê-lo, não posso eludir a conclusão de que tais lembranças foram abafadas seja pelas peripécias da carrière, seja, na encruzilhada dos setenta e dos oitenta, no lento resvalar da crise conjugal para a dolorosa derrocada.

        Desses dias de desventura, tratei alhures. Aqui, não merecem a baldada faina de ulterior tentativa de escorço. Para eles, que baste a frase lapidar de Tucídides: KÇí ìåßæù êáêN } êáôN äÜêñõá.[1]

       Em fins de 1984, recordo-me da visita feita ao teu apartamento na Joaquim Nabuco, sito entre a avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Raul Pompeia. Adquiriras uma cobertura duplex, que a custo acomodava os livros e o mobiliário afinal trazidos dos páramos quitenhos. Não me escapou a coincidência de te instalares em edifício no mesmo posto seis que, por tantos anos, me abrigara. Havias superado, com serena sabedoria, a injustiça perpetrada pela instituição, te aposentando compulsoriamente no cargo de conselheiro. Por contingências de horário, não me demorei o que desejara. Sem embargo, tal circunstância não me impediu de perceber que não estavam satisfeitos com as insuficientes dependências do novo endereço.

       É provável que antes de seguir para a Guatemala te haja visitado no solar da avenida Barão do Rio Branco. Construção térrea, com pátio interno, de acordo com o estilo português, em virtude do portão alto e de alentado muro, a casa e suas senhoriais dimensões não eram visíveis da rua. Saudado por dois boxers, que amistosamente me acompanharam, fui por ti recebido com as habituais efusões.Não tardaria em rever a Therezinha, que trocara os negros cabelos por um louro esbranquiçado. O casal me mostrou a parte social da residência, e, em seguida, me encaminharias para o pavilhão posterior, aonde tinhas instalado a biblioteca. Ao contrário do confinamento da Joaquim Nabuco, as estantes e a famosa escrivaninha dispunham de ambiente amplo, bem-arejado e luminoso.

         Impressionou-me, de resto, a vastidão de teus domínios. A propriedade ocupava toda a falda de bem arborizada colina. À esquerda, mais alto do que a mansão, se estendia um segundo nível terraplenado. O dono anterior lá fizera construir churrasqueira, ladeada por rústica mesa e os correspondentes bancos sem encosto, e à direita, recanto em alvenaria para duas bulhentas araras. Por uns minutos, ali nos sentamos para divisar a paisagem. Não me ficou a impressão de que aparecesses muito por aquelas bandas. Depois, sempre precedidos pelos cães, galgamos um trecho da encosta. Ao descer, retornamos pela vertente à direita, acompanhados pelas límpidas águas de um córrego que, ao cabo da ribanceira, formava pequeno lago margeado por pedras de vários tamanhos. Após palmilhar cerca de um terço do terreno, e ver, de longe, o topo do cômoro que lhe delimitava os fundos, era sem dúvida de admirar-se  tanto a sua extensão, quanto a respeitável área construída.Se então, pela consueta discrição entre vivos, houve por bem não levantar o tema, achei excessivo para o teu bolso o custo de mantê-la nas boas condições em que se achava.

        Almoçamos rodeados de balouçantes gaiolas, em que saltitavam multicolores passarinhos, carinhosamente aprisionados por Therezinha. A despeito do ônus que devia trazer-te, pareceu-me que tinham feito muito bem, fugindo das úmidas paredes do prédio no extremo de Copacabana, para fruir daquelas bucólicas, acolhedoras e tão sorridentes paragens. Se anos mais tarde te visitaria o triste flagelo dos assaltos, fruto da inépcia dos governantes e do descalabro social, não me animo hoje a reprovar-te a escolha. Ao invés de enterrar-se em lúgubres edifícios, estreitos na vista e nos cômodos, preferiste o clima ameno da serra e a oportunidade de morar em cidade quase interiorana. Se desconhecias que a insegurança da metrópole já se alastrava àquelas alturas, não semelha lícito imputar-te por desejar respirar o ar puro e viver como viviam os nossos antepassados.

       Ao regressar a Brasília, viria a sofrida promoção – de que recebi a notícia à frente do prédio da Assembleia Geral, em New York, a dezesseis de dezembro de 1987 – a embaixador. Já unido com minha mulher, Ana Maria Bohrer, entraria em 1988 não mais atenazado por listas de antiguidade. Em janeiro do ano seguinte rumávamos para o novo posto, que me prodigaria tantas inesperadas benesses.

        Dentre essas vantagens, a minha leitura sistemática de Aristóteles nos livros de capa verde da coleção Loeb, muitos dos quais adquiridos através da Bookmailer, desde os priscos tempos de Quito. Findara o seu longo abandono nas prateleiras das minhas estantes. Dessa diuturna e ordenada tarefa, se abririam, qual rosa de ventos benfazejos, caminhos antes impensáveis de ambicioso e continuado estudo.

        Já é hora de fechar esse parêntesis de espera e indefinição. Sem de longe atinar para o que se desenhava, criavam-se as condições para que se reativassem os nossos diálogos, quer à distância, quer em encontros bissextos à mesa de bar.

       Mas isso é matéria, meu caro Amigo, para a próxima carta.

 

 

PS.  Para ti, que jamais me disseste sequer uma palavra sobre preferências clubistas, ou mesmo acerca dos quadrienais frenesis coletivos da campanha da seleção em copas do mundo, pareceria difícil entender a tristeza brasileira com a derrota de ontem para a equipe da França. A tua dedicação ao livro admitia poucas exceções, dentre as quais o interesse para o futebol não se incluía. Dessarte, creio que, se ainda estivesses cá por baixo, saudarias o adiamento do sonho do hexa como uma volta à normalidade, sem mais pontos facultativos, nessa hipócrita multiplicação de feriados que o jeitinho nacional inspirou aos demagogos.

                                       
                                                   *          *

 



[1] Eram males demasiado grandes para serem chorados.

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