segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A Terra da Cuccagna

                 

          Ouvi falar dessa mítica região já faz tempo, quando o meu conhecimento de italiano ainda capengava. Todo dia, no entanto, agradecia à sorte o fato de haver nascido onde se fala o que o poeta chamara de última flor do Lácio, tão bela quanto inculta. Lá estava a contemplar o velho Tibre, com planos de visitar as aldeias e cidadelas do Lácio, e me animava a vantagem que o conhecimento do português me conferia.
           A cada linha dos jornais locais, me surpreendia que, mesmo sem dicionário, pudesse bispar algo daqueles longos e tortuosos parágrafos em língua italiana. Sem embargo, meu caro leitor e eventual passageiro ilustre em participar de experiências,  modestas é verdade, mas não destituídas de interesse, permita-me apresentá-lo a essa terra da Cuccagna que conheci nas verbosas folhas do Messaggero, um jornal romano.
            Ao invés do significado que ía colhendo, com paciência e imaginação, pela leitura, ora difícil, ora suspeitamente fácil, a palavra cuccagna me ficou como um travo na garganta. Que diabos queria dizer ?
            A pesada névoa da ignorância me acompanharia até que chegasse ao trabalho, e buscasse no dicionário o que significava.  O verbete do Zingarelli[1] não me desiludiu: país fabuloso em que reinam delícias do todo gênero.
           Acudiu-me, então, que cuccagna retrata a terra da fartura. O desenho da cornucópia se apresenta como o complemento natural de tal visão.
           Seria, assim, compreensível que pensasse no significado deste tão humano desejo que é o de conhecer paragens e regiões  onde morem a abundância e a felicidade.
           A fartura é uma noção relativa. Quem a tem, ou não mais a procura, ou o faz sem demasiado empenho. Os povos ibéricos nos dão a respeito uma boa ideia. Os conquistadores espanhóis herdaram as imensas riquezas dos impérios asteca e inca. Por sua vez, aos portugueses coube de início a faina de esgotar o pau-brasil das costas da terra da Santa Cruz.
           Mas a gente de São Paulo, nos séculos subsequentes, não quis acreditar em tão cruel diferença na sorte. Em entradas e bandeiras eles se embrenharam pelo imenso interior, na busca teimosa do Eldorado, com a sua prata e esmeraldas. Sem o saber, desceram rios, adentraram selvas e sertões, arrostando fadigas e desafios mil.
           Sob falsas premissas, mostraram do valor da ilusão, que fez com que os bandeirantes devassassem céus e terras ignotas, matas antes impenetráveis e toda espécie de adversidade. Nessa procura da riqueza em míticos reinos mostrariam coragem e determinação, como na expedição de Pedro Teixeira, enviada por Jácome de Noronha, governador do Maranhão que, ao adentrar São Francisco de Quito, após atravessar a Amazônia, causaria estupor e raiva ao Conselho das Indias, no lusco-fusco da União Ibérica.
          Com o denodo da ambição, eles rasgaram plagas imensas e, sem o saber, desenharam com traços portentosos um país-continente, nos grandes espaços que demoram sob a cordilheira do Pacífico.  
            A ilusão pode ser causa de ventura e de satisfação ? Sim, e o Brasil é prova disto.  A gesta dos bandeirantes, enfrentando enormes obstáculos nos sertões desconhecidos, atravessando selvas na busca do Eldorado e das minas de  esmeraldas, lançaria as bases do Tratado de Madri e do uti possidetis. São, entre outras, as bandeiras de  Bartolomeu Bueno, Antonio Raposo Tavares, Fernão Dias Pais, Paschoal M. Cabral, Silva Braga e Manuel de Borba Gato. 
             Se a meta, quando voltada para a descoberta de tesouros e minas, não correspondia à realidade, a grande contribuição das bandeiras saídas de São Paulo estaria no processo que desencadearia.
            Os grandes espaços interioranos rasgariam, dessa maneira, os estreitos confins do tratado de Tordesilhas, e desenhariam as extensões que tão bem nos documentam os livros de Jaime Cortesão sobre ‘Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri’.

 

 
(Fonte:  Jaime Cortesão e obras sobre Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri )



[1] Assim como Larousse é sinônimo de vocabulário na França, Webster nos Estados Unidos, Zingarelli o é na Itália.

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