segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Espanha e Monarquia: Amor e Ódio


                        
       Mais uma vez o povo espanhol questiona o regime monárquico.  No começo do século XX, Afonso XIII, de Casa de Bourbon, ascendera ao trono. Nesse contexto,há um paralelo com D. Pedro II, que teve proclamada a maioridade ainda aos catorze anos, em 23 de julho de 1840. No caso dos Bragança, a opinião pública sentia a necessidade de apressar o processo, diante dos percalços da regência.
      No trono aos dezesseis anos, Afonso XIII reinaria em  período de crescente agitação, com o surgimento de uma minoria republicana forte, e problemas regionais notadamente na Catalunha.
      Com a 1ª Guerra Mundial – de que a Espanha não participou militarmente, mas que afetou a economia – se exacerbou a agitação, inclusive militar. A instauração da ditadura de Primo de Rivera (1923-1930) culminaria o processo revolucionário. Ao rebelar-se no seu quartel-general em Barcelona, o capitão-geral da Catalunha, Miguel Primo de Rivera, marquês de Estella, rejeitou a autoridade do governo civil e ameaçou pôr os seus membros na cadeia.
      O Primeiro-Ministro propôs ao Rei enérgica ação contra os rebeldes, que já abarcavam Bilbao e Saragoça, e um conselho castrense em Madrid. Afonso XIII pediu tempo para refletir, e o gabinete renunciou. Duas horas depois, uma deputação de generais foi recebida em palácio, e o Rei encarregou Primo de Rivera, ainda em Barcelona, de assumir.
      Gozando ainda de popularidade, Primo de Rivera preferiu em dezembro de 1925 estabelecer regime com predominância civil. Com problemas internacionais e nacionais, a popularidade inicial de Rivera se foi liquefazendo. Em meio ao descontentamento civil e a interveniente crise de 1929, com a desvalorização da peseta, a situação se tornara insustentável para o ditador, que em 28 de janeiro de 1930 submeteu, em caráter irrevogável, o pedido de demissão. A sua condição física acompanhou a débacle, e o antes condestável da monarquia, faleceu em Paris, a dezesseis de março do mesmo ano.  
      Sucedeu-se um governo temporário, sob o general Dámaso Berenguer, com vistas a preparar o retorno ao poder constitucional. No entanto, Afonso XIII era visto como co-responsável pela noite ditatorial. Com o favor do republicanismo, em meio dos distúrbios na Catalunha e alhures, o despencar da peseta, surgiu nova administração com o Almirante Juan Bautista Aznar em fevereiro de 1931. Estavam previstas eleições municipais para doze de abril de 1931, a que se seguiriam comícios parlamentares para as Cortes Constituintes. Havia o entendimento que o resultado das primeiras poderia tornar írritas as segundas, ao indicar clara vontade popular para a troca de regime.
      Em meio à confusão de dados contrastantes, com a maioria das cadeiras indo para os monarquistas, a votação majoritária republicana nas principais capitais soou o dobre da monarquia. O chefe do comitê revolucionário, Alcalá Zamora, com a maior votação em Madri, decidiu por reclamar a abdicação de Afonso XIII e a passagem dos poderes para o Comitê.
      Se a nação espanhola não se manifestara de forma incontrastável, fortes eram os ventos contra a permanência do monarca, a quem manchara a implicação com o regime ditatorial. Sem abdicar formalmente, Afonso saíu de cena, embarcando para a França.
     As irresoluções de o que pensavam fosse o último Bourbon no trono de Espanha, se lhe fizeram inescapável a queda, a par do ambiente conflagrado, no embate das vontades contraditórias, seriam o ovo da serpente de que renasceria o autoritarismo do regime franquista, fruto da indisposição da direita, que se houve por traída pelos conciliábulos revolucionários.
     Com a Guerra Civil Espanhola, estabelecida a liderança do General Francisco Franco a Espanha foi lançada na longa noite do fascismo, já a partir de 1936, com a insurreição contra o regime republicano, e a vitória militar em 1939, às vésperas da IIa  Guerra Mundial, de que o conflito espanhol constituiria uma espécie de treino geral.
     Na França, Afonso XIII designaria, em 1941, como seu herdeiro o terceiro filho Don Juan, conde de Barcelona. Este, em março de 1945, solicitara ao Generalíssimo que renunciasse, a par de prometer à Espanha nova constituição com assembleia legislativa, garantias de liberdade política e direitos individuais, reconhecimento das características regionais e uma anistia.  O general Franco responderia apenas ao pedido de anistia, aquiescendo na retirada de todas as acusações contra os republicanos, o convite ao retorno dos asilados, e, em outubro, proclamação de pleno indulto para todos os prisioneiros pelas faltas políticas cometidas durante a guerra civil.
    O suposto ânimo pacífico de Franco tem de ser visto no contexto enfrentado pela nação espanhola. Um pária internacional, afastado das Nações Unidas – por suas notórias simpatias pelo derrotado Eixo – a situação do regime só reassumiria relativa normalidade com o ingresso na ONU em catorze de dezembro de 1955 (precedida pela entrada na FAO e na UNESCO em janeiro de 1953), e a retomada gradualista das indicações de embaixadores junto ao governo franquista.
    Com as preocupações do ditador em encaminhar a sua sucessão – sob a suposta aliança entre Coroa e Exército – em dezembro de 1954, Franco e don Juan concordaram em que o filho primogênito deste, Juan Carlos, fosse designado herdeiro presuntivo do Generalíssimo. Nesse momento, Juan Carlos, nascido em 1938, tinha dezesseis anos. Em dezembro de 1954, o infante don Juan casou-se com a filha do Rei Paulo, do então Reino da Grécia.  Em 1969, a 22 de julho, Franco tratou da formalidade da aprovação das Cortes. Agora com 77 anos, o ditador cuidava da própria sucessão, ao designar Juan Carlos de Borbón como futuro Rei de Espanha. No dia seguinte, o filho de don Juan jurou lealdade aos princípios do Movimiento  Nacional.
     Nos incômodos braços de  velhice inarrestável e de declinante saúde, decreto do Palácio de 16 de julho de 1971 previa que, em caso de doença ou de sua ausência de Espanha, os poderes de chefe de estado e de chefe do governo seriam exercidos por Juan Carlos, segundo o cargo de Capital-general, que lhe foi outorgado em outubro.
      O Generalíssimo cuidara da preparação do pupilo real para sucedê-lo. Julgou que o filho de don Juan seria preferível ao voluntarioso pai, e há sobejas provas que Juan Carlos cumpriu à risca o árduo papel que lhe foi cometido, aproximando-se do déspota, e tratando de parecer absorver sem resistências as determinações quanto às suas futuras funções, como Chefe Nominal do Poder Militar Franquista. O velho caudilho terá inclusive evidenciado alguma estima para o descendente de uma Casa Real que tinha as suas longínquas raízes na terra de Espanha com os acordos de sucessão de Espanha, nos quais se embalou Luiz XIV, no acaso de seu reinado absoluto, como se houvesse logrado fazer desaparecer o obstáculos dos Pirineus entre os reinos de Paris e Madrid.
     D. Juan Carlos dera tanta verossimilhança às suas alegadas atenções, que no crepúsculo do poder franquista, e com a longa enfermidade do Caudilho, a voz do Povo o afirmara como Juanito el Breve, descrente do que era da perspectiva de renascimento das cinzas  do franquismo fascista, à sombra das democracias europeias, e inclusive do próprio Portugal, em que Marcelo Caetano , sucessor do ditador Salazar seria varrido, pela revolução dos cravos, a 25 de abril de 1974.
      O assassínio pelo ETA do Almirante Carrero Blanco, em 20 de dezembro de 1973, vitimado pela sua ida rotineira à missa matinal, afastou inimigo importante da restauração da democracia. A 29 de dezembro o enfermo Franco nomeou Arias Navarro para suceder ao almirante na chefia do governo.
     Nos primeiros meses da atribulada passagem da guarda, não estava decidida a orientação do governo, às voltas com as pressões democráticas e as desconfianças da direita.
     Nesse sentido, o papel de Adolfo Suárez, o líder centrista que deu condições para a redemocratização, chegaria ao momento da verdade, quando da tentativa de putsch de um integrante da guarda nacional contra as Cortes. A sua farcesca intervenção – em que apenas o velho ministro da Defesa não se curvou perante a arma do policial – culminaria em uma derrota da reação franquista, e talvez a grande hora de Juan Carlos, manifestando-se de forma inequívoca pela democracia, trabalhando os receiosos bastidores, quanto a opinião pública pela opção da Espanha como um país democrático, reinserindo-se no processo histórico da nova Europa.
    Naquele instante, a que se seguium comportamento coerente, Juan Carlos se despiu dos farrapos remanescentes de Juanito el breve, e de certa forma encapsula pela sua postura o longo itinerário democrático de Espanha. Dá as costas ao avô Afonso XIII, mostra que o pupilo de Franco cumprira o seu papel, e se reaproxima das convicções democráticas do pai don Juan.
    Sob o aplauso popular e a aprovação de esquerda e  centro, Juan Carlos I abria um longo reinado, não mais sob a sombra inquietante de um esvaziamento político, por uma fementida associação com o guardião e caudilho Francisco Franco.
    Sem embargo, os longos reinados de personagens carismáticos podem mostrar os cruéis caprichos da deusa Fortuna.
    Se o congresso de nuvens não se iniciou com a incrível caçada a elefantes no Botswana, a monarquia dos Bourbon uma vez mais se defrontou com uma súbita alteração no mapa climatológico do reimplantado Rei de Espanha.
       Os desastres sóem ser precedidos por problemas havidos por menores, que, sob a luz incômoda da pós-experiência, adquirem a feia catadura e a ameaça molesta que antes não semelhavam ter.
      Começaram a repontar questões sobre o enriquecimento real, como se explicaria em termos compatíveis com a sua fria transcrição nos registros públicos. Também o casamento de infanta com um plebeu, Iñaki Urdangarín, e a suspeita de peculato para a respectiva fundação,além de seus novéis laços reais para contornar exigências regulamentares.
     O rei é um assíduo – e competente – promotor da indústria e da empresa espanhola. Tem sido instrumental para obter acordos e alianças que estariam longe do alcance de funcionários categorizados, mas sem o traço do sangue azul.
     Tudo no entanto estaria abafado pelos fracos murmúrios e esparsos rumores, se a húbris não interviesse, em uma expedição a Botswana. Nela o presidente honorário da Fundação Mundial pró-Meio Ambiente se lançaria entusiasmado em estúpida excursão, i.e., a caça a elefantes de que o pobre Botswana se vale para minorar o descalabro das receitas (assim como tantos países abrem as portas para as madeireiras, a fim de que lhe dêem esmolas enquanto rápido dilapidam recursos naturais insubstituíveis)
      O atropelo real teve efeitos traumáticos, tanto ao ser forçado por acidente não-programado a uma delicada operação de urgência, quanto por puxar pouco-cerimoniosamente o pano por outros quesitos não de somenos: a expedição a Botswana tinha sido subsidiada por Mohamed Eyad Kayali, assessor do príncipe Salman, herdeiro da coroa saudita, e parte determinante na alocação da concorrência ferroviária do contrato com a monarquia saudita. 
      A comitiva real incluía uma princesa alemã, Corinna zu Sayn-Wittgenstein, desde muito tida como muy-amiga de Juan Carlos. O rosto triste da Rainha Sofia, irmã do rei Constantino e filha da voluntariosa Rainha Frederica, não compareceu a essa incôngrua expedição de um suposto amante dos animais que os mata em aventuras africanas.
      Desde um tempo, se iniciou o penoso ato do intentos de desfazer o mau passo. Juan Carlos – celebrado pelo seu cortante ‘Por que no te callas ?’ a um Hugo Chávez que parece não prezar a valia de um silêncio digno – agora se empenha em campanha de reparação não de um crime, mas de erros sucessivos. Veste o cânhamo dos penitentes e se não tem que esperar no gélido frio do pátio papal, sem embargo desmerece a dignidade da Coroa, ao pedir perdão.
     Em Espanha, ressurgem os distúrbios na Catalunha, engrossam as ruas os desempregados, e o governo da direita de Rajoy – que recebeu o encargo do malogro da esquerda de Zapatero – tem a sua lista de pedidos, a acumular-se sobre o dobre indiferente das dívidas impagáveis pela estultice de uns, e as boas intenções de outros. No fundo do quadro, a Catalunha, depois das enormes despesas ordenadas pelo soberano governo regional, se debate nas vascas de uma anunciada bancarrota e a possibilidade de transformar-se em outro patético mini-estado (a quem se há de retirar o remanescente pretexto de culpar Madri por todos os seus males).
     Nesses tempos de diarquia Merkel-Hollande, e de perene ameaça de calote grego (Samarás logrará o impossível, ou o jovem Tsipras virá apor o próprio selo ao retorno sem ilusões da antiga Hellas ao ambíguo abraço da arcaica dracma ?), a crise anunciada da monarquia espanhola pode para alguns ser uma nota de pé de página em espetáculo bem maior, que o da melancólica marcha de uma antes vencedora União Europeia, e para outros, a repetição, quiçá pouco imaginativa, de uma crise ondulante e inaferrável, que se arrasta desde princípios do longínquo século XX  ?
    Para tanto, como fecho a expressão algo acaciana de Sua Majestade, Juan Carlos I: “a monarquia continuará enquanto o povo quiser a monarquia”.

 

 
( Fontes: International Herald Tribune, Encyclopaedia Britannica )       

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