domingo, 21 de outubro de 2012

Colcha de Retalhos CXXIV

A Velha Albion,  sempre insular ?


        A primeira candidatura britânica a então Comunidade Econômica Europeia foi derrubada pelo então presidente da França, o general Charles de Gaulle, por meio de uma conferência de imprensa, a catorze de janeiro de 1963.
        O leitor há de perguntar-se por que estou levantando um acontecimento de mais de cinquenta anos atrás.
         Explico-me: li outro dia que surgem temores de que o Reino Unido esteja, uma vez mais, considerando sair da União Europeia.
         Pela citação acima, vê-se que é uma estória antiga, com muitas vicissitudes. O general de Gaulle instalara o governo da França-livre na Inglaterra, que, por um tempo, era o único bastião contra os exércitos de Hitler. Depois, para sorte da Humanidade, os ventos da Segunda Guerra Mundial passaram a soprar em favor das potências aliadas (notadamente Estados Unidos, Grã-Bretanha e a União Soviética), e em maio de  1945, o comando aliado recebeu a rendição da Alemanha.
         No entanto, já em 1944, com o desembarque na Normandia, não demorou muito para que o governo da França livre, com de Gaulle à frente, se instalasse em Paris. A permanência de De Gaulle à testa do governo, na 4a  República, com o seu regime parlamentarista não excederia dois anos. O general da cruz de Lorena só voltaria do seu refúgio em Colombey-les-deux-Eglises, em 1958.
         A crise da Argélia iria derrubar o governo dos partidos na França e dar a de Gaulle a oportunidade de retomar democraticamente o poder. Surgia a 5a.  República, esta simbiose de presidencialismo e parlamentarismo, que só foi possível pelo carisma dessa grande figura da política francesa.
         Ao reassumir o poder, com o beneplácito do velho presidente Coty, de Gaulle fez aprovar a sua  constituição, e deu condições para a reconciliação franco-germânica, através de entendimento com o patriarca germânico, Konrad Adenauer.
         Dentre as suas idiossincrasias, o velho general de brigada (havia sido promovido pela 3a. República, e, fiado na própria personalidade e na aura de vencedor, jamais consentiu em trocar as suas duas estrelas de general-júnior, por outras mais acessíveis aos generais ditos comuns) guardara do asilo em Londres certas prevenções contra a Inglaterra, decorrência provável de desaires que haja padecido de parte dos ingleses e, em especial, do Primeiro Ministro Winston Churchill (que não morria de simpatia pelo francês).          
        Dessarte, em conferência de imprensa no Elysée, o então Presidente de Gaulle fulminou a catorze de janeiro de l963 a candidatura do Reino Unido para a Comunidade Econômica Europeia (assim se chamava na época a União Europeia, que se compunha dos seis membros originais: Alemanha Ocidental, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Com o caráter teatral que lhe aprazia dar ás grandes decisões, de Gaulle antecipara a resposta - que se pensava favorável - de sua Chancelaria, manifestando a todos que "a natureza, a estrutura, a conjuntura que são próprias da Inglaterra diferem dos países continentais".  Por isso, sempre segundo o general, não havia lugar na CEE para a velha Albion.
       Mais tarde, a persistência de Londres prevaleceria, ainda mais com a definitiva saída de cena do líder da França livre.  Sem embargo, a relação britânica com o Continente de certo modo iria corroborar as restrições gaullistas. Essa visceral recusa do povo inglês de assumir de forma integral a vocação europeia, se tornaria visível nas idas e vindas de sua relação com o que o organismo de Bruxelas significava.
       Não é por acaso que hoje o peso leve David Cameron pode gabar-se de que Londres não renunciara à dileta libra esterlina - diante dos problemas do euro - assim como cuidar de preservar as vantagens de Londres como principal centro financeiro europeu.
       Quem se esquece da história, estã condenado a repeti-la.  Nesse contexto, e querendo singrar nas águas turvas do anti-europeismo ora predominante no Reino Unido, Cameron tem deixado flutuar ideias e planos que semelham tender para apressar um afastamento progressivo de Londres do projeto da construção europeia.
        Como se sabe, os tories (conservadores) nunca se assinalaram pelo europeismo (embora sob o primeiro ministro Ted Heath tenham tentado ingressar na CEE e sofrido o veto gaullista), enquanto os trabalhistas mostraram nesse sentido maior abertura. Não obstante, David Cameron - que preside gabinete de que participam, em coalizão, os liberais - vem tomando iniciativas de afrouxar os laços com a UE.  Há muitos indícios nesse sentido:  diante da premiação surpresa do Nobel para a U.E., ao contrário dos líderes da Alemanha, França e Itália - que expressaram o seu orgulho com o fato - o Primeiro Ministro de Sua Majestade guardou um estranho silêncio.
         Por outro lado, pensando talvez converter a sua debilidade política em força, ao tomar a onda da contestação europeia (hoje supostamente maioria no Reino Unido), Cameron apóia medidas que margeiam a irresponsabilidade: assim, apoiou plano de novo orçamento para os países que estão na zona do euro, o que colocaria a Inglaterra - que não usa o euro - em uma faixa externa no que tange ao seu papel na União. Por outro lado, dentro da mesma filosofia, Londres manifestou o desejo de não mais participar de 133 medidas de cooperação em material policial e judicial no âmbito de Bruxelas, medidas tais a que antes se associara voluntariamente.
        O mais grave, no entanto, está no plano - que incrivelmente se acha em consideração por David Cameron - de convocar um referendo sobre as relações do Reino Unido com a U.E. Esta suposta intençaõ tem sido, por mais de uma vez, insinuada por Cameron. A cousa não fica aí, eis que  jornal noticiou no domingo passado que  um ministro sênior do gabinete aventou o propósito de a Inglaterra ameaçar ostensivamente com a sua saída do bloco de 27 países europeus.
        No passado, a corrente anti-europeista fora derrotada em referendo. Com esse patrocínio semi-ostensivo de uma política que pode ser ruinosa para Londres - como se explicaria o esforço obstinado de superar a barreira gaullista e ingressar na organização de Bruxelas senão como necessidade econômica, que outros caminhos alternativos não tinham logrado satisfazer ? - o Primeiro Ministro David Cameron pode estar brincando com fogo. A par disso, com todos os seus silêncios e assertivas no mínimo em nada favoráveis ao euro, o primeiro ministro inglês já contribui para o respectivo isolamento no concerto europeu.
         Ou pretende Cameron vestir a camisa do velho particularismo insular e, em se dissociando de Bruxelas (com os eventuais prejuízos que tal  ruptura provocará) supostamente realizar portentosa mágica: romper a aliança com os liberais (que favorecem a escolha europeia), governar sozinho com a maioria conquistada pelos ventos  isolacionistas que propugnam desfazer  laços resultado de decenais esforços ? Acolhendo antigos preconceitos, não corre este aprendiz de feiticeiro o risco de desencadear espíritos e forças antagônicos, ao propor a desunião em um mundo que bem ou mal tem aprendido as virtudes da cooperação ?      

A  luta democrática na Rússia


      O desaparecimento da União Soviética, decorrência dos efeitos imprevistos dos demônios da glasnost (transparência) e da perestroika (reestruturação) retirados da garrafa por Mikhail  Gorbarchev, contribuíram para uma frágil primavera democrática na Federação Russa. Tais lutas e tais progressos estâo associados à fugaz democratização que se confunde com o período marcado por Boris Ieltsin.
      Infelizmente, essas conquistas e progressos desapareceriam pelo ralo simbolizado pela eleição de Vladimir V. Putin em março de 2000. Através de sua indicação por Ieltsin como Primeiro Ministro e a quase imediata renúncia do Presidente, Putin dispusera de todas as condições para eleger-se presidente, sem sequer recorrer à campanha política.
     Como a Federação Russa do dia para a noite passou de democracia para um regime autoritãrio está muito bem descrito por Masha  Gessen no seu livro " O Homem sem Face: A Improvável
Ascensão de Vladimir Putin". Todo o esforço do povo russo para derrubar a tirania soviética por um capricho do destino sofreu um enorme retrocesso pela instauração do peculiar regime autoritário de Putin.
     A autora descreve os meandros da corrupção e do mandonismo introduzido da noite para o dia por Vladimir Putin. Nas suas páginas finais, ocupa-se da recente reação democrática da sociedade de Moscou, e quiça evidencie o otimismo dos militantes contra as ditaduras, sobretudo uma tão idiossincrática, eis que não tem ideologia a sustentá-la, mas a vontade de um homem forte, e o seu domínio da justiça, dos partidos, com a aliança de uma tentacular corrupção.
     Passados os primeiros momentos em que o medo cedeu lugar à vontade generalizada da sociedade civil em contestar o corrupto regime de Putin, há sobejos indícios de que os prognósticos de um desfazimento generalizado da tirania pecavam por demasiado otimismo. Quiçá ainda não seja o momento para tornar a reação democrática inelutável, como a tática do recém-eleito Putin parece demonstrar.
     Dessarte, vendo conspirações subversivas onde se manifesta disposição de luta e contestação democrática,  as autoridades russas prenderam nesta semana o líder do Front de Esquerda, Sergei Udaltsov, sob a acusação de organizar motins de massa (no período recente de concentrações democráticas do laço branco, contra a fraude eleitoral generalizada).  Aventa-se mesmo a possibilidade de enquadrar o oposicionista Udaltsov em acusações de terrorismo.
      No intento de intimidar a reação democrática, o Promotor Aleksandr I. Bastrykin não desdenhou inclusive acenar com a perspectiva de uma sentença de prisão perpétua.
      Esse endurecimento do regime - que não refuga a utilização de meios da antiga União Soviética - pode ser visto sob uma dúplice lente: ou o retrato da disposição do poder encarnado por Vladimir Putin de esmagar qualquer tipo de reação, com a desenvolta aplicação das penas mais severas, sem qualquer preocupação com a sua necessária proporcionalidade;  ou a confissão de uma impotência mal-dissimulada, que não trepida em usar meios que mais desvelam a sua própria crescente vulnerabilidade.
      Se a luta democrática na Rússia não se afigura uma empresa fácil, a história está ao lado daqueles empenhados nessa campanha. Esperemos que, no caso em tela, Masha Gessen esteja com a razão.


( Fonte: International Herald Tribune )

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