sexta-feira, 23 de março de 2012

CIDADE NUA V

O  Espelho Mágico  (9)


       Em algum momento se lembrava da cena no restaurante do Leme ? Se respondesse sim ou não, acaso estaria omitindo ou deturpando algo ? Na verdade, a sua memória, desde as primeiras, incipientes suspeitas, se tornara bastante seletiva.
       O comportamento de Graça, sobretudo a sua reação, não dava margens a dúvidas. Por isso, logo lhe veio à mente a advertência da mulher.
      Não negaria que sentiu algum desconforto. Sem embargo, tratou de afastar qualquer resquício de escrúpulo. Com efeito, a emoção era demasiado forte para que ele enjeitasse a experiência.
      Em um estalar de dedo deixara de ser o velho que andava na rua, sem despertar qualquer interesse das belas jovens a enfeitarem as calçadas cariocas. Nunca estranhara aquela desatenção, aquele olhar vazio que parece resvalar pelo seu rosto e ir além, sem dar qualquer ideia de havê-lo visto.
     Decerto, achava tudo aquilo natural, conforme à ordem das coisas.
     Esquisito seria se concentrasse atenções, se as vistas de mulheres na flor da idade  o procurassem. Teria então motivo de perguntar-se o que estaria acontecendo de errado com ele, porque alguém da sua idade não mereceria tal interesse...
     Por isso, ao entender o que estava acontecendo, cuidou de tomar umas tantas precauções.
     As mais óbvias se relacionavam com o aviso que recebera. Evitar espelhos. Resolveu fazer a barba no salão da esquina, dia sim, dia não. Com isso afastava o perigo incontornável do banheiro de casa.
     Muitas armadilhas ainda o aguardavam nas paredes do apartamento. Bastaria uma distração, e a imagem do semblante no vidro bisotê lhe selaria a perda do sortilégio.    
     De resto, a sua atitude tinha de ser coerente. Se o poder de encantar uma jovem não o desagradara, se a primeira condição mágica havia sido preenchida, não lhe convinha não respeitar a admoestação da mulher. Se se comprazia no que a princípio lhe semelhara absurdo, precisava resguardar-se de estúpida desatenção ao que lhe fora dito e redito. 

                                                  *      *

       Quando se capacitou da nova situação, quando não mais poderia estranhar as opostas reações que passara a motivar, para sua relativa surpresa ele não se preocupou demasiado com eventuais implicações éticas da inesperada faculdade. A relativa frieza que demonstrara, e a sua pronta aceitação de o que, em última análise, era um embuste, não deixara, é verdade, de trazer-lhe leve sensação de um vago desconforto. Não obstante a percepção de que havia ali inegável desvio de comportamento, os escrúpulos porventura sentidos nunca tiveram a força de, ou procurar evitar a experiência, ou de manter algum nível de distanciamento crítico.
       Logo se apercebeu da inanidade de qualquer tentativa de contrariar-lhe a vassalagem àquele maravilhoso engenho. Se o novo estado pudesse ser assemelhado à sujeição a alguma droga, ele daria de ombros a contestações morais. A dádiva lhe fora estendida sem que, a princípio, se desse conta da sua amplitude. Aquela mulher o premiara a despeito do próprio ceticismo. Ela lhe abrira de par em par as portas de um tempo que, desde muito, já considerara inacessível.
        Ignorava qual seria a duração da fantasia. De certa forma, dependia do respectivo cuidado e do aturado respeito de uma regra caprichosa, que imitava, com desumana malícia, o suplício de Tântalo. Sem embargo, viria através de uma variante. Ao invés da negação do mito, persistiria  na concessão,  desde que se negasse a contemplar o gesto que encantava a todas aquelas que viesse a desejar.

                                                 *      *

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