domingo, 31 de agosto de 2014

Colcha de Retalhos B 34

                                        

 Getúlio –  3º Volume

 
       Mesmo para os que não leram os dois volumes anteriores da biografia de Lira Neto, recomendo a leitura de Getúlio 1945-1954 (Da volta pela consagração popular ao suicídio), com que se conclui a bem-pesquisada e ampla narrativa da vida de  um dos maiores presidentes da história brasileira.

       Sem tomar partido, o acompanhamento da trajetória de Getúlio Dornelles Vargas por Lira Neto é, em geral, equilibrado e minucioso.

       Em certos aspectos, basta a descrição isenta e pormenorizada para que se tenha ideia da atmosfera que preside à vida do ex-Presidente e recluso da Fazenda Itu, à de candidato a Presidente constitucional, e por fim a seu retorno ao Palácio do Catete, desta feita utilizando não apenas como gabinete e escritório presidencial, mas também como residência, eis que, talvez por lembranças desagradáveis, Getúlio não mais se serviu do Palácio Guanabara como residência oficial.

       O Brasil de então e sobretudo o Rio de Janeiro, capital da república, é um mundo bastante diverso do da atualidade. Mais acanhado e provinciano, as cenas no Palácio Tiradentes nos evocam  atmosfera que se tornaria irrespirável para o Presidente, dada a animosidade que prevalecia nas suas relações com as bancadas notadamente da UDN e a sua chamada Banda de Música.

        A descrição cuidadosa de Lira Neto reexuma esse mundo acanhado, provinciano, em que o fel do ressentimento será notado por Getúlio, seja senador, seja presidente constitucional a cada dia e a cada hora.

        A imprensa imita o estamento político – com a exceção do PTB – na oposição sem peias a quem consideram ainda como o Ditador do Estado Novo. Até o aparecimento do vespertino  Última Hora, de Samuel Wainer – já no último governo Vargas – não havia sequer jornal que defendesse o Presidente. Desde o principal, o matutino Correio da Manhã, de Paulo Bittencourt, passando pelo vespertino O Globo (de Roberto Marinho) até o pasquim da Tribuna de Imprensa (o jornal de Carlos Lacerda) não havia exceções na avaliação de Vargas. Todos, de forma uníssona, respondiam àquela pergunta pelo automatismo de parcial, até monótono refrão: Hay gobierno? Soy contra!  A própria rede dos Diários Associados,  com o oráculo Assis Chateaubriand, vertia o fel de seu negativismo. Era o maior conglomerado de imprensa e radiofonia no Brasil, com 36 jornais, 18 revistas, inclusive a maior delas, O Cruzeiro, e 36 emissoras de radio.

         A única coisa em que a imprensa de então diferia da atual seria na respectiva pluralidade, embora esse aspecto vário não se refletisse num arco de que constassem as diversas visões políticas. A tônica estava na oposição  e as variações em estilo, mas não na substância, que sofria de adiantado processo de provincianismo terminal. Até mesmo  revista nova que entra para fazer concorrência ao estabelecido semanário O Cruzeiro e que luta para ter substância além da boa feição gráfica – a Manchete dos irmãos Bloch – resolveria adentrar pela avenida oposicionista, pela mão do diretor Hélio Fernandes.

          Em termos de penetração popular, o Senador Getúlio Vargas estava em outro nível das igrejinhas que dele escarneciam. O lugar de crítico-mor seria em breve futuro – como nas velhas películas do cinema mudo tudo parecia ter pressa naquela corrida de lemingues – açambarcado por quem viria a confundir-se com o Corvo – e não o de Edgar Allan Poe, quase um brinquedo de criança perto das características do jornalista Carlos Lacerda.

           A bile que destila em sua coluna, a oratória a que a nascente televisão abre as então deficientes projeções, que por mais vezes se resumem a  torrente de apodos cercada de sombras, tudo isso teria a pertinácia (e a mendacidade) das acusações sem base que eram sédula e avidamente acolhidas pela carente  classe média.

           Sem que se pudesse saber, tudo fazia parte de um processo, como em tragédia grega, que algum diretor maluco tivesse transplantado para o trópico. O fim era a destruição do ditador (apesar de eleito com vasta maioria em pleito aberto). Para que tal fosse possível, qualquer pretexto seria acolhido e de braços abertos.

           A oposição tinha sólida implantação nas Forças Armadas de então. Conspirar naquela época para coronéis e generais – com as exceções de regra – constituía uma segunda natureza. As vivandeiras da política – boa parte da UDN e setores do PSD, como Armando Falcão por exemplo – se esmeravam em cultivar os militares (e já aparecem nas páginas de Lira Neto os nomes que pontificariam mais tarde na chamada Revolução de 31 de março).

           Por isso, Carlos Lacerda tomaria a si a triste missão de derrubar o presidente eleito, diplomado e reconhecido pelo Povo. As ofensas contínuas, a comovente má-fé, a parcialidade inabalável, tudo isso contribuiria para criar atmosfera que seria propícia para abater quem chamavam de Tirano. Não importa que não o fosse. Para Lacerda, talvez fiel ao seu namoro com o comunismo (logo enjeitado), o que era relevante seria o dito processo.

            Criada a atmosfera irrespirável, não assombra que repontaria um energúmeno nas hostes governamentais, que pensou fazer um serviço para o Chefe, armando a eliminação de quem lhe parecia um tão exasperante e pernicioso indivíduo.

            A morte do major Rubens Vaz e a participação de sicário da Guarda presidencial, estabelecido o mandante em Gregório Fortunato, criaria as condições para a crise política, a conspiração militar e a exigência do afastamento de Getúlio Vargas da Presidência. Com a dança macabra das traições (a começar pelo Vice Café Filho e o Ministro da Guerra Zenóbio da Costa) foram preenchidos os ulteriores detalhes para efetivar a demissão oportunista do Presidente. O sacrifício de Getúlio Dornelles Vargas não tinha sido inserido no script como suicídio. Estava computado como humilhação terminal ao presidente. Com o gesto extremo, Getúlio mostrou ao Povo quais eram os culpados e quem era a vítima. Venceu porque não trepidou em pagar o preço – mas sem concessões – de o que lhe era exigido. E com isso, mudaria o Brasil.  





Generoso aumento aos Ministros do STF?

 

              Já se comparou a inflação a muita coisa, mas a carestia – e o leitor bem sabe a quem devemos esse presente de grego – é um câncer que corrói o sistema econômico-financeiro, estimulando toda série de fenômenos negativos, dos quais o surto de greves no serviço público e nas diversas carreiras empregatícias é uma triste, lamentável e perniciosa consequência.

              O novel Presidente do Supremo Tribunal Federal vem suceder a quem sai com um alto nível de avaliação popular (o Ministro Joaquim Barbosa). Depois de entoar loas ao trabalhos dos magistrados no Brasil que por cumprirem o respectivo dever garantiriam a paz social, o presidente Lewandowski vai adiante. Prepara projeto de lei ao Congresso Nacional, com um aumento de 22% sobre a remuneração de Suas Excelências.

                R$ 35.919,00!  Ricardo Lewandowski acredita que este é o aumento da remuneração que serve de teto à remuneração de todo o funcionalismo público da União. Como a inflação ainda não está em 22% a.a., deverá haver outros motivos que justifiquem esse polpudo incremento  de R$ 6.457,00. Todo o procedimento do incremento do salário dos Ministros não durou nem cinco minutos. Á toque de caixa, a colenda assembleia aprovou o respectivo aumento, não havendo qualquer discussão sobre o assunto.

                 E, no entanto, além da pressa – que é um sinal premonitório do clima inflacionário prevalente – os Senhores Ministros terão presente que, excetuadas as alturas dos nobres dignitários,  não há registro de aumentos salariais em nove meses? E que o teto do Judiciário produz o chamado efeito cascata.

                 Aprovadas pelo Congresso Nacional as novas remunerações – e alguém duvida que tentarão reduzi-las, para poupar o Tesouro Nacional? – vão repercutir nos bolsos dos magistrados: eis que o salário de ministros  de tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União (TCU) corresponde a 95% dos salários dos ministros do STF.  Por sua vez, a escadinha baixa, mas não tanto no salário de desembargadores de Tribunais de Justiça, que corresponde a 95% do valor pago a ministros de tribunais superiores.  Por sua vez, a primeira instância, a dos juízes singulares, em começo de carreira, recebe  salário 5% menor do que o pago a desembargadores.

                  Segundo consta, no entanto, da matéria de O Globo de 29 de agosto, o Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), João Ricardo Costa, não está satisfeito: “Não é aumento, aumento  nós nunca tivemos. É uma recomposição que reduz as nossas perdas. Não era o que nós queríamos (alega-se 32% de defasagem). A  proposta  aprovada pelo STF é aquém do que estávamos esperando. É um valor que não satisfaz.”

  

Magia ao Luar

                         

                    O último filme de Woody Allen, lançado a meados do ano, retoma um filão a que o veterano diretor americano parece demonstrar crescente pendor. Na sua filmografia, é com óbvio prazer  que ele retorna aos roaring twenties (os ruidosos vinte). Meia noite em Paris é outra película dessa década entre-guerras, na qual a fantasia está presente, o que não é o caso de Magia ao Luar.

                   Espiar nesse pacífico, alegre e despreocupado período parece vir a calhar para o diretor de Manhattan. De um exórdio da Berlim dos vinte – que se diverte com a intensidade reservada aos intermezzi felizes  - de um espetáculo de mágica do falso chinês Wei Lin Soo surge o tema do filme que é o exame pelo cético Stanley Crawford – interpretado por Colin Firth – da suposta médium Sophie (Emma Stone). A tarefa é dada pelo amigo  Howard Burkan (o ator inglês Simon McBurney).

                    A dupla corre para a Riviera, onde W. Allen nos presenteia com a radiosa atmosfera dessa costa mediterrânea, com o azul encrespado daquele antigo mar. Crawford está ansioso em desmascarar a suposta charlatã, armado de seu sólido materialismo e confiante no próprio currículo de caçador de fraudes mediúnicas.

                     A simpatia da jovem prodígio enfrenta o mau humor persistente e as seguidas contestações do caçador de embustes. A paciência de Sophie e o encanto radioso da própria juventude não abalam a princípio o arraigado ceticismo ex-officio, que na insistência da desconfiança vai beirando os limites da cortesia, senão da boa educação.

                     Como a jovem não se abala, e continua a surpreender e a desconstruir aquele que pretende ser o seu algoz, a trama vai tomando um outro rumo que, se se tiver presente o estilo de Woody Allen, que, em surpreendendo, não há de espantar muito os admiradores desse quase isolado grande diretor no pálido cenário da presente filmografia.

                    Não pretendo revelar o segredo do filme. Se a recepção da crítica pode-se considerar um tanto mista, de minha parte apreciei-lhe o estilo conhecido, com frases inteligentes e irônicas, distribuídas por cúmplices velhotas. As interpretações – notadamente de Colin Firth (lembram-se do discurso do rei ?) e de Emma Stone (esta diáfana e radiosa como um fim de tarde nas estradinhas da Riviera) – são primorosas.

                   Os filmes do quase exilado Woody, o mais europeu dos diretores nova-iorquinos, são em geral tarde ensolarada no atual pouco imaginativo panorama do cinema americano.

 

(Fontes:  Lira Neto (Getúlio 1945-1954, Cia. das Letras); O Globo; Magia ao Luar (Magic in the Moonlight), Woody Allen (2014).
 

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