domingo, 3 de agosto de 2014

Colcha de Retalhos B 30


                               

Cinquenta Anos esta Noite

 
      O livro de memórias de José Serra  Cinquenta Anos Esta Noite” nos relata os anos que levaram a 1964, vistos pelo então presidente da UNE, o paulista José Serra, a que se segue o trauma do golpe militar, em que o jovem personagem se descobre em outro mundo, aquele dos perseguidos e com a cabeça a prêmio.

      Da travessia do exilado, da súbita mudança de condição, do aturado esforço, sob outro compasso, ditado este pelo desterro, na companhia obstinada da esperança, e da luta sobretudo para mergulhar na terra estranha, e tentar transformá-la em conhecida, Serra nos conta com o cabedal da experiência, as peripécias – cômicas as vezes, mas também perigosas e traiçoeiras - que amiúde perseguem os viajantes do infortúnio.

     Com estilo escorreito, Serra nos transmite  a experiência vivida em condições em que facilidades e  tranquilidade costumam ser a exceção e não a regra.  

     Ao ler as suas duzentas e cinquenta páginas, o que mais impressiona é a capacidade de lidar com desafios e dificuldades, sem desfalecer diante dos mais árduos e chatos, retirando das muitas experiências lições úteis para o futuro.

     Nas páginas da própria vivência,  em que se conjugam a formação do lar e da família, no Chile pré-Pinochet, os estudos universitários sob céus estrangeiros, e os abruptos transes dos golpes, repontam também a regrada burocracia italiana, e o ocasional nirvana do espaço acadêmico americano.

      Nesses anos de formação que a deusa Fortuna, por vezes cruel, por vezes generosa, torna realidade, o leitor colhe igualmente a prazerosa impressão de anos de preparação a um futuro que se intui ou se deseja quem sabe ainda inconcluso.



Guerra Israel – Hamas



       O desequilíbrio nesse enésimo conflito entre Israel e o Hamas (Faixa de Gaza) se reflete nas estatísticas de óbitos, ou melhor, na gritante disparidade do número de vítimas. Lançada pelo governo israelense a oito de julho último, a Operação Margem de Proteção, registra mais de 1600 palestinos mortos e sessenta israelenses. Nesses cômputos, mais de trezentas crianças, as mais das vezes dentro das escolas bombardeadas.

        Enquanto o número de baixas em Gaza reflete a absoluta preponderância de civis palestinos, no que tange a Israel, são poucas as vítimas civis e proporcionalmente avultam os militares.

         Veiculou-se a captura do segundo-tenente israelense conscrito, Hadar Goldin, de 23 anos. O Hamas nega, e o Tsahal fez frenéticas tentativas de descobrir o paradeiro do jovem soldado. O apresamento de um militar de Israel representa para Tel-Aviv o começo de um pesadelo e de longa negociação, pois um prisioneiro vivo na complicada matemática do conflito vale número exponencialmente maior de palestinos presos pela justiça israelense, como a recente última troca de soldado capturado o demonstra (o praça Gilad Shalit permaneceu 5 anos e quatro meses em cativeiro, até ser trocado por 1027 presos palestinos, a 18 de outubro de 2011).

         Pouco depois, as negativas do Hamas são aceitas por Israel. Há elementos para inferir que não há um cativo, mas sim um cadáver.  É o que confirma Israel. Na frieza da comunicação, pressente-se um quase alívio.

            As causas profundas da conflagração estão na negativa de Israel de fazer a paz com a Autoridade Palestina, com a distribuição do território em disputa de acordo com as inúmeras resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Tais determinações são ignoradas ou sabotadas pelo governo de Tel Aviv. A negativa israelense de proceder à partilha e de retirar as causas desse conflito tem mais de sessenta anos. Embora haja inúmeras resoluções do Conselho que determinam a devolução da terra à Autoridade Palestina por Israel (sobretudo na margem ocidental do Jordão), a negativa de Tel Aviv se sustenta, na prática, pelo apoio de Washington.

              Embora a relação entre EUA e Israel seja clientelar, desde os anos setenta Tel Aviv assegurou posição dominante na prática. A despeito de empenho político de presidentes americanos, o apoio que Israel tem no Congresso e povo americanos na prática inviabiliza o cumprimento das resoluções do CSNU. A injustiça com o povo palestino está na raiz de todas as guerras na região. E como há um processo em marcha – o da expulsão dos palestinos de suas terras em proveito dos chamados colonos, com a consequente construção de assentamentos ilegais, mas coonestados por governo e justiça israelenses – a perspectiva é a da sucessão dos conflitos. Não haverá paz enquanto não houver justiça.

               Os opositores palestinos de Israel podem variar na sua atuação. A Autoridade Palestina, com sede em Ramallah, se esforça em respaldar-se nas Nações Unidas, e em métodos pacíficos. Por sua vez, o Hamas, que Israel considera terrorista, domina a Faixa de Gaza, uma língua de terra superpovoada, que é cercada por Israel e pelo Egito. Por seus métodos, é combatida por Tel-Aviv, e atualmente tampouco tem boas relações com o Cairo. Outro inimigo de Israel está no Hezbollah, organização considerada terrorista pelo governo israelense. Esta última, chefiada pelo clérigo Nasrallah tem o apoio do Irã, dispõe de milícia bem armada, com condições até de enfrentar o exército judeu,  tem grande implantação no Líbano, e constitui um dos fatores do ressurgimento de Bashar al-Assad, na interminável guerra civil na Síria.

               As condições existenciais em  Gaza são caracterizadas pela hiper-população, a exiguidade de recursos, e o domínio da área pelo Hamas. Na prática, a comunidade civil nessa área é refém do grupo Hamas, e paga um preço exorbitante em vidas humanas por ocasião de tais conflitos. Na atualidade, como os moradores não têm para onde ir, são os que pagam a trágica conta das operações de Israel, em geral motivadas pelo lançamento de foguetes pelo Hamas, que são ou arcaicos, ou artesanais, contra o território israelense vizinho. A diferença de nível de vida é enorme, e o Hamas julga assim combater quem no seu entender é o invasor das antigas terras palestinas. Uma das tecnologias americanas cedidas a Tel-Aviv destrói desses mísseis cerca de 75 a 80 %.  Mas a porta entreaberta da estatística, nesse caso, também mata e destrói.

                Dessarte, as reações (e invasões) de Israel são periódicas, e sua principal causa está na abissal diferença entre os níveis de vida. Não terá sido por acaso que o então primeiro ministro, Ariel Sharon (falecido em janeiro de 2014, depois de longo coma), decidiu pela retirada de Israel da ocupação da Faixa de Gaza, em janeiro de 2005. A  resolução de Sharon, imposta com punho de ferro, não tinha qualquer motivo altruísta.  Visou a evitar o custo que implicava uma população crescente palestina (então 1,3 milhão), contra apenas nove mil colonos judeus.

                Se políticos corajosos, com a visão que os distingue da raia-miúda, enveredarem pela construção de uma paz verdadeira – que no momento não se divisa, quiçá sufocada pela fumaça dos artefatos bélicos – haverá condição para colocar-lhe as fundações. Por enquanto, tal não se afigura factível. Se a afluente minoria de Israel não ouvir no futuro os reclamos da razão, da justiça e do bom-senso,  até Jeová pode cansar-se desta luta infinda.   



(Fontes: Cinquenta Anos esta noite,  The New York Review; O Globo; Folha de S.Paulo)

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