segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XX)


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         Meu mui prezado e saudoso amigo Pedro,

          

         se  interrompi a nossa correspondência quando ainda estava em Atenas, não duvido que hajas entendido os meus motivos, que muito tinham a ver com os preparativos da remoção para o Rio de Janeiro.
    
         Então me despedia da carreira depois de mais de cinquenta anos de exercício diplomático. As baixarias que cercaram tal data de parte do então titular, e de alguns de seus auxiliares, eu as relevei por um silogismo simples. Não pode mostrar grandeza quem não a tem.
      
         Chegado como homo novus no velho Itamaraty da rua Larga, colhi a princípio os máximos lauréis do estudo. No dia da minha formatura, no amplo salão da Biblioteca, recebi das mãos do presidente Juscelino Kubitschek, a trinta de dezembro de 1959, o diploma da conclusão do curso do Instituto Rio Branco. Fui o primeiro a ser chamado e jamais esquecerei o atroador aplauso que então recebi. Quase todos os que ali estavam, por ligações de parentesco e amizade com os então formandos, sabiam muito bem o que representava em estudo e dedicação o vestibular e os dois anos do Rio Branco.
       
         Ainda naquele dia, tive a oportunidade de foto com este grande Presidente, que com a sua simpatia me fez um singular cumprimento: “você é muito moço!” De JK guardo ótimas lembranças, sobretudo enquanto à fidalguia, simplicidade e inteireza de caráter.
   
          Submetido à cruel provação pelos famigerados IPMs da chamada Redentora, teve de exilar-se por algum tempo em Paris, que foi o meu primeiro posto. Nessa oportunidade, ignorei, como devera, as circulares que determinavam fosse evitado qualquer contato com o ex-presidente. Fiz exatamente o contrário. E das ocasiões que tive até 1976, de privar-lhe da presença, se não foram muitas, sempre luziram com a sua grandeza, que não se alterou nos anos do infortúnio. Foram decerto breves momentos,  mas ricos em ensinamentos e lições de vida.
   
         Mesmo depois de morto, as cerimônias em Brasília lhe mostrariam o valor – se preciso fosse – e para mim que delas participei sponte mea, o quanto o Povo sabe reconhecer o mérito e o significado dos grandes homens. O regime militar não participou de nenhuma solenidade, e por isso os atos e as honras fúnebres tiveram a funda singeleza das grandes homenagens.
 
         Trazido do aeroporto para a Catedral, aonde padres nervosos corriam pela nave diante de momento a que claramente prefeririam não participar, o esquife foi colocado ao pé do altar. Próxima estava ajoelhada Dona Sarah e a família. Por haver chegado mais cedo, me achava na parte mais alta do templo e diante de mim a visão dos oficiantes, do caixão e da família.
 
          Jamais a nave da Catedral reunira tanta gente, que se acotovelava por toda a parte,  sem atropelo e em silêncio. Como se sabe, há um espelho d’água que contorna boa parte da bela construção de Oscar Niemeyer. Todos os que não haviam podido entrar, circundavam o templo, e servindo-se da água aí represada, lavavam em continuação o vidro gradeado da catedral, no seu desejo de lobrigar algo da cerimônia encomendada em honra do corpo e alma do Presidente Juscelino, falecido na véspera, em estranho acidente rodoviário.
 
         Pelo meu ofício, assistira a muitas missas e cerimônias fúnebres. Guardo das exéquias de Brasília a memória indelével de ocasião incomparável. Jamais participei com tal emoção de ofício que se lhe equiparasse na austera e, sem embargo, singela grandeza que só a telúrica espontaneidade trazida ao gigante que por incontáveis anos os militares e seus fâmulos buscaram denegrir e apequenar.
 
         Ali estava ele, nos braços dos humildes, e Juscelino nunca teve guarda tão fiel e fervorosa.

         A missa já ía adiantada, quando presenciei a cena mais comovente que nesta vida me foi dado vivenciar.
 
         Em certo indefinível momento, em meio à participação integral que caracterizava a cerimônia, na fé de nossos antepassados, que marcava a homenagem de toda a gente, um primeiro lírio foi lançado de trás, na direção do féretro. É flor comum em Brasília, sobretudo em cemitérios. Muitos dos circunstantes a traziam na mão, para marcar a própria despedida do grande brasileiro e fundador da Nova Capital.  
 
         Surpreso, contemplei aquela inocente revolução, de tão funda e grácil simplicidade, que consistia na bela parábola, com seu branco cálice e o longo talo, a encaminhar-se na visão esplendorosa de homenagem sem igual, saída do seio do povo, no avanço tão pressuroso quão silencioso, em breve e etérea jornada, ao encontro do muito amado Presidente Juscelino.
 
        Na cerimônia do adeus – que então começava – com a naturalidade do gesto, de toda a parte vinham as flores, como se fora uma abóbada na sua expressão mais simples, a multiplicar-se em preitos vindos de longe e de perto, todos unidos nos magníficos riscos que em amor se despejavam no catafalco montado às pressas, sob o altar-mor.
 
         Da catedral, após recusada a oferta de levar o caixão em viatura dos bombeiros – a ditadura, temente do povão, queria abreviar os tempos do funeral -  ele foi transportado ao longo do eixo monumental na sua asa sul, até o Campo da Esperança, onde o aguardavam os políticos do MDB, com Ulysses Guimarães à frente.
 
        Em grande cortejo, na companhia dos familiares, o sepultamento de Juscelino só ocorreria noite já fechada, em local para tanto preparado. Muito mais tarde seriam trasladados para outro local adrede construído os restos mortais de um dos nossos maiores presidentes, cuja simpatia e grandeza d’alma para com todos – ao contrário de muitos que o sucederam – luziria sempre, como traço indelével do mineiro filho das Alterosas. Na verdade, tão indelével quanto o branco risco dos lírios lançados pelos candangos de Brasília, naquele princípio de tarde de 24 de agosto de 1976, guardo na memória o cenário de sua inumação.
 
        Na época, comandava o país o general-de-exército Ernesto Geisel. Não seria o último dos chefes militares encastelados na presidência. Mas mesmo sem o saber, assistiu de longe, por trás das vidraças dos palácios levantados pelo fundador de Brasília, o povo tomar a si o enterro do muito amado JK.

         Registrava-se ali um precedente perigoso para o dito movimento de 31 de março de 1964, cuja falsidade ideológica já se assinalava na própria data da fundação. E, sem embargo, naquele 24 de agosto, data tão azíaga para a República, principiava o povo a tomar suas primeiras iniciativas na reimplantação da democracia.
 
       Meu bom e velho companheiro,   

       apesar de seres udenista de boa cepa, jamais me passou pela cabeça que houvesses em especial conta o regime militar, que durou até um pouco mais que o vintênio fascista. Creio, por isso, que receberás com um sorriso a retomada de nossa singular correspondência.
 
        Em pouco se há de assemelhar às dezenove cartas anteriores, tão cheias de terrenas e burocráticas providências, de que não hás de encontrar muitas na pretendida continuação.

        O que deveras não muda é a saudade. Lá como cá, a deparamos, sentada na sala de espera da vida, com a sua carantonha de sempre.

 
       Creia-me, hoje como ontem, o teu amigo de fé,             

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