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Meu mui prezado e grande Amigo Pedro,
talvez
pela longa companhia e a afeição que dedicavas a Therezinha, ela te acompanhou no
ceticismo. Não tinha crenças espirituais, nem acreditava em existência
extraterrena.
Teria
leituras sobre o niilismo? Difícil de
dizer, mas sendo tua companheira, conviveria com as idéias que alimentavas.
Recordo-me bem do tratado niilista que encontraste nas edições Loyola, livraria católica que se aguentava em um dos
últimos andares do edifício Sisal, na
Presidente Vargas.
Só mesmo a
tua sede livresca para desencavar o precário abrigo aonde se refugiara a
livraria. Por falta de meios, as últimas edições se encontravam empilhadas em
poucas salas. Pois lá deste com franzina obra acerca do niilismo, que me
saudaste entusiasmado.
Surpreendeu-me a tua atitude, a ti que em geral folheavas
os volumes com ar meio desconfiado. Para ti, nos livros, as referências
bibliográficas mereciam uma atenção à parte. Com isso, sinalizavas a
importância das obras em que qualquer título deveria basear-se.
Assim, antes
de folhear o texto próprio de obra determinada, buscavas as fontes onde se
abeberara o autor. Ao abrires um volume qualquer nas bancas de livraria, como,
v.g., a Leonardo da Vinci, costumavas
ir direto para a sua bibliografia. Antes de admitir a entrada de qualquer
título na lista de candidatos à aquisição – e o teu apetite livresco não era
moderado – procedias ao exame das obras que lhe constituíam a fundamentação. Sem o saberes, pois segundo quero crer o
termo ainda não era usado, a tua maneira de inteirar-te, posto que de modo
necessariamente superficial, se iria estruturar em tipo especial de
comportamento, que hoje chamaríamos meme.
Desse modo
– e nada impedia que tais exames se sucedessem, em vistas rápidas, mas nunca
desatentas – depois da página de rostro, a incursão na bibliografia, a folheada
no corpo do texto, e um que outro mergulho em nota de pé de página. Dependendo
do interesse que despertasse, esses movimentos rituais poderiam ser breves ou
longos, com as devidas modulações que apontariam para a indiferença – o volume
volta sem mais delongas ao seu lugar; o módico interesse – com repaginar
sumário e de pronto interrompido; e, por fim, a cúpida atenção, que
desembocava, ou na releitura da página, que trazias para bem perto da vista,
como um jogador a sopesar o que as cartas lhe prometiam, ou no assomo de
retirar aquela pepita do alcance de outros aventureiros, pois a julgavas
merecedora de aumentar a tua dívida com a livraria.
Mal
comparando, agias na matéria como as donas de casa que sequer se detêm na
pessoa da empregada que postula o serviço, antes de apurar tintim por tintim as
indicações que traz consigo. Para que um livro gozasse do privilégio de ser
colocado nas tuas estantes, buscavas na respectiva bibliografia a
imprescindível documentação que fundamentaria ou não o seu ingresso na tua
biblioteca.
Pelo cálculo
de probabilidades, quem poderia contestar-te o critério? Como nas escolas
antigas, as apresentações eram obrigatórias. Mas se toda regra para valer
carece da exceção, me irias comprovar, pela eleição desprovida de qualquer
recomendação séria, de que até os rituais mais arcanos podem ser postos de lado
se, no caso,
valor mais alto se
alevante.
Não contavas
com a surpresa de topar no espartano mostruário de livraria que sequer dispunha
de prateleiras para exibir o seu acervo um livro sobre o niilismo. A cena que
presenciei tinha um pouco de Ionescou,
autor que por série de razões não era de tua especial predileção.
A meu espanto
de então só o posso atribuir à pouca familiaridade com a tua biblioteca. O que
no caso me estranhou, é que, em termos de tratado niilista, já o saudaras com
estado de espírito que me arrisco a qualificar de algariado.
Com o
livrinho em mãos, nos mostras – a mim e ao Rezende – o que tinhas por um achado.
Ficava-se com a impressão de que ganharas o dia, ao descobrir, entre as pilhas
que a modestíssima instalação da Loyola proporcionava, o que para ti sem dúvida
era cativante gema a coruscar na monotonia do quotidiano.
Esse episódio
ganharia significado maior, se tivesse tido a oportunidade de melhor conhecer a
tua biblioteca. Com efeito, raríssimas vezes a visitei. Além de teres muito
ciúme dela, o fato de viveres em Petrópolis colocava um senhor fosso para
eventuais visitas. Em verdade, ao longo das décadas de nossa amizade, até o
século XXI, as minhas idas a Petrópolis se contam nos dedos da mão direita,
pelo simples fato de que me achava a serviço no exterior ou em Brasília. Por
isso, quando passava pelo Rio – e eram visitas raras e breves – costumávamos
combinar o almoço ou por telefone, ou por telegrama. Desse modo, se não me
engano, estive uma vez na biblioteca, quando residias no solar da avenida Rio
Branco, e uma outra, já na tua residência da Visconde do Uruguai, em
Valparaíso. Foram fugazes visitas à tua magnífica coleção de livros. A ela – ou
melhor dizendo – a seu núcleo original tinha sido apresentado, como bem
recordo, quando, candidato ao vestibular do Rio Branco, estivera com outro
colega nas tuas amplas acomodações do hotel Inglês, na rua do Catete, quando se
me depararam por primeira vez as estantes de livros, decerto modestas se
comparadas com os avatares posteriores, mas já tendentes a impressionar o jovem
estudante.
Foi depois de
tua inumação,
que pude conhecer com um
pouco mais de vagar a tua biblioteca. Therezinha, confusa e inquieta diante da
burocracia da morte, com Hermes
voejando pela casa, pareceu-nos lamentar mais a tua falta material, do que a
presença do esposo.
Sentados à
mesa da copa, com pilhas de documentos, ela deixara escapar uma queixa: será que o Pedro lá de cima está vendo como me deixou? No reclamo dava a impressão
de acusar-te por sentir a tua falta em termos de apoio material para lidar com
todo o papelório das providências e sequelas do passamento.
Na primeira
carta ao meu amigo ausente, escrita com a memória ainda vívida daquela visita
de pêsames, há pormenores que só agora menciono como o queixume acima
registrado. Mas a nossa visita à tua biblioteca, e a comparação com a da mansão
da Rio Branco lá está. A tua ausência do
sobrado que mandaste construir – e como hoje não computar os dispêndios com os
espaços de alvenaria que criaste para a tua coleção de livros, pensando
sobretudo no que te dilapidaram a conta bancária ?
Que seja um
pensamento breve. Longe de mim maçar-te depois da morte com censuras de
contador. Dedicaste a tua vida ao livro. Como então não dar-lhe ambiente
adequado, não só para tê-los a mão, mas também para dispor de locais
apropriados para a leitura e a escrita. Guiados por Therezinha, a quem fomos
Ana e eu levar os nossos pêsames ainda na sexta-feira da fatídica semana,
adentramos o pavilhão – que me pareceu mais apertado – ou quiçá mais atopetado
de tomos, do que o da Rio Branco. Como assinalei, passamos pela
coruja de Minerva e por dístico de
Humanitas, antes de ingressar no
conjunto de sala (e do banheiro invadido pelos livros!).
Em boa
hora, Thérèse se decidira a mostrar-nos o teu reduto mais sagrado. Suponho que
estivesse fechado há mais de semana, pela contingência do AVC, o forçado afastamento do teu recanto preferido, mais tarde a
estada miserável no dito ‘quarto de hóspedes’, a que sucederam as jornadas
da tua definitiva ausência.
Pairava já
naquele espaço o odor do relativo abandono, com a falta de ventilação e a
umidade de Petrópolis. Por isso, esta particular visita seria bem mais breve do
que desejaria. Ao me ver constrangido a encurtar os tempos, pelos efeitos que a
clausura do ambiente provocara, não pude enjeitar um pensamento maroto, de que,
cioso como sempre dos teus domínios, vias com algum gosto que o ar confinado e
as sensações dos mortais me afastassem de incursões mais inquisitivas das tuas
estantes.
De qualquer
forma, como mencionei na primeira correspondência, lá estavam os
in-octavo do teu admirado
Pierre Bayle, e os quatro volumes da
enciclopédia sobre ateísmo. Mas havia mais, muito mais, com os pensadores
céticos e os tratados de
Sextus Empiricus, na coleção Loeb. Não pude
deixar de notar a colocação preferencial que tinha a portentosa encadernação da
obra de Bayle, um esclarecido em tempos obscuros, em que o respeito pela
tolerância e a liberdade de pensamento constituíam dádivas raras, muita vez de
súbito retiradas, sob as inconstâncias e as metamorfoses, por vezes cruéis, dos
poderosos de então.
Não há negar
a tua admiração por esses livres pensadores. Até que ponto aquela visão
nostálgica de personalidades que marcaram a respectiva presença em tempos onde
a autoridade do soberano e da Igreja se elevavam, incontrastadas, nas charnecas
do pensamento conformista, se refletiria na colocação de obras nas confinadas
estantes – eis uma outra questão. Que tal se a deixássemos para a próxima
carta?
Com o abraço
do amigo velho,