segunda-feira, 8 de julho de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XVIII)


 

                                               X V I I I

 

 

         Meu prezado Pedro,

 

           na correspondência anterior, prometera voltar ao assunto do ‘quarto de hóspedes’. É bom frisar que assim o chamei porque  ipsis verbis me foi mostrado pela própria Therezinha, na manhã de sexta-feira, dezenove de maio, em nossa visita de pêsames.

          Todo casal tem direito à respectiva privacidade. No entanto, o infortúnio e, em especial, a morte escarnece de segredos zelosamente guardados anos a fio. Hesito mesmo em considerar a circunstância em apreço como um ‘segredo’. Parece-me dramatizar demasiado simples arranjo entre marido e mulher para preservar um detalhe de sua intimidade.

         A fatalidade ignora portas, fechaduras, muros e longos silêncios. Chamado às  pressas, o Dr. Brito foi levado àquele quarto, onde te encontravas tangido pelo que nossos avós chamariam de leve ataque de apoplexia.

          Na verdade, a patranha do quarto de hóspedes dissimulava o fato de que não dormias na cama do casal. Muito provavelmente acataras o desejo de Thérèse de que o cachorrinho pequinês, eterno sobrevivente de diversas crises cardíacas, lá dormisse.

          De qualquer modo, de boa vontade ou não, te recolhendo cedo ou tarde, buscarias o sono naquele cômodo mal-arejado e desconfortável. O hábito faz esquecer ou induz a tolerar as servidões do cotidiano. Assim, em uma casa sem visitantes – se excetuarmos o Dr. Brito – te tocaria passar as noites em quarto supostamente reservado para hóspedes que, como Godot, ali jamais chegariam.

         A viagem de regresso ao Rio, a par desses pequenos mistérios conjugais que as Parcas jogam na via pública, me ensejou entender um pouco mais o claro enigma da deterioração de tua situação financeira.

         Ao compreender o porquê de tua lenta e inexorável queda para uma crescente impecúnia, como não condoer-me do sofrimento do amigo e não perguntar-me o que poderia ter feito para ajudar-te ? De imediato, paira diante de mim a presença de teu pai. Se foste um bom filho, provendo os recursos necessários para que não pagasse ele em seu fim de vida pelas irresponsabilidades cometidas contra a própria família, na mente persiste a dúvida se não terás herdado algum desvio genético desse comportamento pródigo.

         Sem o vício do jogo, formado e doutorado em leis, desde a juventude destinaste boa parcela dos teus haveres para a compra de livros, com ênfase em humanidades. Depois de ter amealhado substancial quantia pela longa permanência no exterior e ademais em posto não atribulado pela carestia, incorreste em diversos erros que te foram progressivamente minando o patrimônio.

        Ao sair definitivamente de Quito, aposentado como Conselheiro aos sessenta anos, resolveste transferir para o Brasil o montante total de teus haveres em dólares. Numa decisão apressada e insensata, chegaste a fechar a conta na agência de New York do Banco do Brasil. Desse modo, passavas a poupança de muitos anos em moeda forte e de curso universal para cruzeiros diariamente sujeitos àquele tempo a desvalorização que beirava índices hiperinflacionários. Teria sido mais prudente  e vantajoso se, em chegando ao Brasil, retirasses da conta nova-iorquina o necessário para adquirir o bem imóvel que o casal escolhesse.

       Outro prejuízo terás tido com a sucessiva venda do apartamento na Joaquim Nabuco. Não sei quanto dinheiro despendeste para instalar-te na mansão da avenida Rio Branco em Petrópolis. Não foi pelo instrumento do usufruto, como antes imaginara, e sim por arrendamento, eis que, por volta de 1997, tiveste de ceder a posse ao novo proprietário. Assim, essa segunda mudança – desta vez dentro da mesma cidade, da Rio Branco para a Visconde do Uruguai – não foi em caráter voluntário, por causa do assalto que sofreste naquela residência em meados dos anos noventa.

        Já no solar português da Rio Branco mais avançaste no teu capital, não só por construir o pavilhão dedicado à biblioteca, senão pelos gastos com a manutenção de um trem de vida assaz superior ao permitido pelos teus vencimentos de aposentado.

        Tampouco se deve esquecer que, na virada dos anos noventa, o famigerado Plano Collor veio congelar as contas bancárias daqueles que se enquadravam dentro do incrível critério do cara ou coroa estabelecido pela novel Ministra da Fazenda. Tal plano, tão iníquo quanto esdrúxulo, a sua manifesta inconstitucionalidade não foram bastantes para que os outros poderes da república ousassem derrogá-lo. O historiador futuro contará das muitas desgraças que provocou em nossa sofrida gente. No que te concerne, viste desaparecer nesse ávido ralo dos cruzados mais uma parcela das tuas economias.

        Em torno do citado ano de 1997, em conversa com o Dr. Brito – cujo conhecimento fizeste quando te interessaste pela casa da Visconde do Uruguai – lhe confiaste ainda dispor de cerca de trezentos mil reais no banco.

       Dessarte, parece difícil não encarar com estranheza que, menos de dez anos depois,possuías apenas dez mil na poupança da Caixa, e uma conta no Unibanco, com saldo negativo em cheque especial ?

       Ainda no exterior, tiveste um procurador desonesto, que desviou parte dos rendimentos de um bem de raiz de que posteriormente te desfarias. De volta ao Brasil, prescindiste dos seus serviços. De toda maneira, portanto, não foi ele um fator para a virtual perda dos trezentos mil.

       Será forçoso, por conseguinte, procurar alhures a fim de encontrar-se válida explicação para o malbaratar desse cabedal. Tinhas na residência plantel de quatro empregados: um motoriste bêbedo e desonesto, jardineiro, cozinheira e arrumadeira. Por horários de quatro horas, pagavas aos criados salários acima do mercado. A tua generosidade também se refletia nas gratificações pelas férias.

        Segundo soube, a munificência não parava por aí. A pedido do próprio, que não se pejava de fazê-lo amiúde, concedeste vários empréstimos ao Hermes (x), todos eles a fundo perdido. Não contente com isso, condoído pelas lamúrias dos fâmulos, muita vez pagavas igualmente os aluguéis dessa gente.

        Se o casal vivia modestamente, sem gastos em viagens e vestuário, não refreavas as encomendas de livros, em geral feitas por intermédio da Leonardo da Vinci, embora também recorresses a outras livrarias. Acresce notar que, em não tendo mais conta no estrangeiro, não podias mais ordená-los diretamente, sem pagar ágio aos livreiros daqui. Como há trinta anos, segundo me disseste, não consultavas médico – olvidaste, a propósito, de mencionar o amigo in pectore, Dr. Brito – e havendo proibido, para tua vergonha, que Therezinha fosse a dentista, as tuas despesas com medicamentos seriam negligenciáveis. Em suma, não será pela sede de livros e publicações, nem pelos dispêndios com lazer e saúde, que iremos deparar com o fautor da tua ruína.

       Esqueceu-me acrescentar outro gasto, decerto substancial, que foi a construção sobre a garagem do teu refúgio, sob a égide de Humanitas. Ali levantaste um sobrado, com pelo menos três salas, alpendre e escadaria externa, onde alojaste a querida biblioteca. Longe de mim censurar-te por tal despesa. Era, no entanto, a segunda vez que fazias reforma para abrigar os livros e, desta feita, tenho entendido que a obra foi bem maior do que a realizada no casarão da avenida Rio Branco.

        Se alinharmos os repetidos erros em termos de investimentos, de obrigações assumidas e no dinheiro emprestado a maus pagadores, só pode ser definida como ruinosa a gestão do capital acumulado em função do exercício no exterior.

        Muitas atitudes que antes me causaram perplexidade, agora, inseridas em um quadro de inquietude e escassez, me confrangem, porque nada mais são senão expedientes de alguém que se descobre progressiva e inelutavelmente acuado pelo espectro da pobreza.

         Em minhas viagens a Paris ou New York, não te furtavas de me pedir um punhado de livros. Na medida do possível, buscava atender-te, conquanto me parecessem excessivas as encomendas, pelas limitações de bagagem das companhias aéreas.

         Em geral, minguava a lista por força de requestares volumes há muito esgotados. O que encontrasse, no entanto, costumava trazer-te. O preço, calculado ao câmbio do dia, era bem inferior às cotações extorsivas de D. Vanna e outros que tais. E, não obstante, para minha surpresa, me passavas cheque em quantia abaixo do montante por mim estipulado. Preenchias o documento com gestos largos, quase ríspidos. Dir-se-ía que pagavas com sobranceira relutância. Não vou negar que tal comportamento não me ficasse atravessado, como se acaso pensasses que eu desejara me prevalecer de reles conversão cambial. Hoje, sabendo da situação real, vejo a tua conduta como simples efeito de problema maior.

         Já te atenazava há muito o que a fatalidade pôs a nu. A remuneração do Itamaraty não era mais suficiente para atender a todos os compromissos, o que se refletia no recurso frequente ao cheque especial, com a sua cauda de usura bancária. Tangido por carência do qual não vias saída, terás engolido o orgulho para, em princípio de 2006, pedir ao Dr. Brito que doravante pagasse os impostos da casa da Visconde do Uruguai.  Enquanto usufrutuário, sabias bem que não cabe ao nu-proprietário arcar com tais encargos. Sem embargo, acossado pelo vermelho das contas bancárias, e com a poupança reduzida a dez mil reais, não entreviste outra solução para a tua combalida situação financeira.

         Nesse transe, terás acaso pensado em Carlos de Sá Neves da Rocha, constrangido a valer-se da caridade de amigo abastado, que por favor o colocara em modesto emprego de agenciador de seguros, a ele que jamais trabalhara ?

        Nesta hora extrema, que muito provavelmente te apressou o fim, no esquálido quarto onde dormias, não terás buscado forças para enfrentar o desafio ? Terá sido a carga da velhice que te toldou a vista, para não veres o que ainda  podia ser feito ? Na garagem jazia o inútil carro de que o bom senso mandava desfazer-te e, de cambulhada, te livrarias do também inútil Hermes (x), a que da razão não se deve exigir o motivo para tão molesta presença.

         Havia outros remédios para abater as despesas. Thérèse vive hoje com a pensão que equivale a dois terços do teu ordenado. Graças ao Dr. Brito, as perspectivas não são desfavoráveis.

        No limiar dos oitenta e dois anos, forte terá batido o cansaço.

         Não foi o Pedro que bem conhecia, inda lépido e disposto, a avançar com passos seguros, portando em bastas sacolas o produto do seu apego aos livros. Em instante de desalento, recusaste o bom conselho do teu amigo médico. E, teimoso, estultamente te apegaste à caturrice sem sentido, ao negares dos cuidados clínicos a mão estendida, a prometer-te quem sabe a sobrevivência com preservada qualidade existencial.

         Nessa encruzilhada, refugaste a esperança e mais por descorçoado que resoluto, te deixaste resvalar pela sombria, brumosa vereda que leva ao Hades.

         Obsedado pelas dívidas, cético por convicção, temeroso das despesas hospitalares, divisando o negro futuro da insolvência, esquecido pelo aturado desuso de que   dispunhas do seguro médico do Itamaraty, terás escolhido a morte que te esperava naquele úmido e lúrido recanto, Pensando-se enjeitado pela vida, julgando-se ameaçado pela pobreza da decadência, preferiste esperar pelo barqueiro, como se hóspede foras em anônimo quarto de pousada, enquanto crescia à tua volta o silêncio. Em algum momento ouvirias o marulho das águas do Acheron, chegada enfim a tua hora de pisar na barca de Caronte.

        Ah, meu bom amigo Pedro, não há breves passagens para o misterioso reino, de que tanto falam a mitologia e as religiões. A funda angústia deste trajeto nos acompanhará a todos, não importa a vez e o caminho. Já Eurípedes nos sussurra:JÇí dãã˜ò iëèw èÜíáôïò, ïšäårò  âïýëåôáé èíóêåéí[1]. Se a reserva que te impuseste, a tivesses descartado, quiçá poderíamos ajudar-te a por então eludir este encontro.                                  

        Desgraçadamente, não foi assim. Rompeu-se a corda. Como as desmemoriadas sombras do Hades, o eterno sono dos campos santos, ou seja lá onde for, a tua presença há de vagar nas mentes de quem te conheceu, e nas páginas do livro ainda inédito que nos legaste.

        Será este o único consolo que teremos ? Escrever-te, ou melhor intentar descrever-te, é um ersatz, que não raro pode saber amargo. Inexistindo escolha, fiquemos com a vicária lembrança, enquanto na nossa folhinha tivermos marcada a sucessão dos dias, dos meses e dos anos.

       Com revigorado apreço, renascido do conhecimento e da compreensão, acredite-me teu saudoso amigo,

 

                                                 *               *



[1] Se a morte se aproxima, ninguém deseja morrer.                                                                  
(x)Pseudônimo.                                        
                                                               
 
 
 
 
 
 

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