domingo, 22 de abril de 2012

A Verdade sobre Putin

                              
        Em breve Vladimir Putin voltará a ser o Presidente de todas as Rússias. Se a sua eleição não transcorreu da forma que antecipara, devido a protestos e  manifestações contra a fraude generalizada – já evidenciada pelo escandaloso pleito para a Duma, a Câmara baixa – e as surpreendentes aglomerações em Moscou e alhures, em que se pranteava pela falta de democracia, o que assombrou foi o movimento em si, depois do longo letargo que parecia embotar o povo russo.
       A par da tentativa de atribuir o chienlit[1] a manipulações vindas de fora – dentro da linha comum aos regimens autoritários de inculpar o estrangeiro (no caso, Washington) de tais perturbações da ordem, que seriam inconcebíveis partirem dos cordatos cidadãos russos, o Kremlin também se serviu do auxílio de colunistas cuja ignorância do real estado de coisas naquele vasto país só se igualava ao afã de batalhar pelo bom nome do atual Primeiro Ministro e próximo Presidente. Dentro dessa ótica, que macaqueia as apologias do sistema, as acusações são desmerecidas por serem de suposto fabrico ocidental, eis que Vladimir é havido como um bom governante, amado por seu povo.
       A última The New York Review publica interessante artigo de Anne Applebaum ‘O Conto de Vladimir’.  Faz-se aí resenha do livro de Masha Gessen “O Homem sem cara : a improvável ascensão de Vladimir Putin”.   
      É do domínio geral que Putin foi escolhido por Boris Ieltsin para sucedê-lo. A sorte e as peculiaridades do primeiro presidente democrático da Rússia talvez contribuam para que melhor se entenda a maneira pela qual um coronel do antigo KGB – já redenominado FSB – logrou chegar tão alto e em relativo tão pouco tempo.
      Em 20 de novembro de 1998, a deputada liberal  Galina Starovoitova foi assassinada nas escadas do prédio onde morava. O seu assassinato, que chocou a opinião russa e a estrangeira na época, apontaria o caminho para outros ‘acertos de conta’, como seria, em circunstâncias similares, a morte da jornalista Politkovskaya, liberal e corajosa nas suas denúncias, abatida por matadores profissionais, sem que o verdadeiro mandante tenha sido sequer aventado pela polícia.
      Gessen não acusa Putin de ser o autor intelectual do magnicídio. Starovoitova representava para ela e sua geração a possibilidade de uma política honesta e idealista, dedicada ao serviço de seus constituintes. O seu passamento representou para muitos o fim dessa esperança.
      Por esse tempo, no entanto, principiava a subir a estrela de Putin. Ele não era nem Presidente, nem Primeiro Ministro, mas bastante moço ainda alcançara a nomeação para o FSB, a organização secreta sucessora do sinistro KGB.
     Durante o período soviético,trabalhara em Dresden, Alemanha Oriental, e mais tarde em São Petersburgo, onde terá prosseguido como agente do KGB, e ‘preparava’ a sua tese (é fato notório que o seu trabalho se baseou em plágio). Mais tarde, foi o vice do prefeito Anatoly Sobchak (entre 1991 e 1996). Desse tempo, dois ‘feitos’ seus merecem atenção: o fato de ter restabelecido o termo ‘chekista’ (cuja origem provém da época de Lenin), como agente de polícia política, dando-lhe o realce que pensava merecesse; e a revalorização de Yuri Andropov, que chefiara por mais tempo o KGB na era soviética (1967-1982), e, no fim da vida, Secretário-Geral do Partido Comunista, dentro da gerontocracia a que sucederia em 1984, pelo óbito inesperado de Andropov, Mikhail Gorbachev.
        A admiração de Putin por Andropov – que era, em jargão soviético, um modernizador, mas não um democrata – pode ser intuída nas suas homenagens ao antigo chefe: colocou, como dirigente do FSB flores na sua sepultura, mandou gravar uma placa para seu herói dentro da Lubyanka (o tristemente famoso interior do KGB), e, mais tarde, já presidente, colocou outra placa no edifício de residência de Andropov em Moscou, e erigiu-lhe estátua em bairro de São Petersburgo.
        Em tais gestos, Vladimir externalizava não só o próprio pensamento, senão a nostalgia desse peculiar submundo da KGB, que reputara como ‘demasiado cedo’ a morte de Andropov.
       Dessarte, Starovoitova não trazia um bom presságio para Putin e os de sua geração.  Para eles, políticos como ela, eram uma ameaça para o ordem social. Desde então Putin entendia muito bem o que ela representava como política não-corrompível, sem outras ligações que a do povo, para os sigilosos impérios de negócios que então estavam sendo montados pela KGB.
       Segundo o relato de Masha Gessen, não foi Putin que colocou no poder a elite da KGB. Por volta do fim do primeiro mandato de Boris Ieltsin,  grande parte dos poderes e privilégios dos serviços de segurança já tinham sido restaurados. Também a generosa redistribuição dos imensos recursos naturais da Rússia para um pequeno grupo de insiders (cupinchas).
      Quando a saúde de Ieltsin principiou  a declinar, o grupelho  mexeu-se para encaminhar um sucessor confiável para o presidente beberrão, e Putin parecia ter todas as qualidades necessárias.
      Apesar de interessantes, tanto o livro quanto o artigo excedem o âmbito do blog. Sem embargo, afigura-se apropriado apontar os principais personagens do enredo. Além do Prefeito Sobchak, amigo e mentor de Putin e do seu colega Dmitri Medvedev; o oligarca Boris Berezovsky que apresentou Putin a Ieltsin; Andrei Byswtritsky, o diretor da tevê estatal russa, e um dos principais propagandistas  da campanha de reeleição de Putin em 2004; e Alexander Litvinenko, o agente do FSB assassinado por envenenamento radioativo em Londres, 2006 (após malogrado intento de expor a corrupção dentro do FSB).
      Dentre as atuações de Vladimir Putin, a judicialização do seu odium contra o empresário de petróleo Mikhail Khodorkovsky, preso em 2003 (depois de virar crítico do presidente), e a sua permanência na prisão até  hoje, em uma sucessão de show trials (juizos encenados) que decerto não envergonhariam Joseph Stalin.
      O último tipo humano aqui mencionado era Marina Salye, política liberal que, em 1991, coordenava o Conselho da Cidade de Leningrado[2] para o abastecimento alimentar. Morta em 2012, com 77 anos de idade, Salye negociara a compra de varios trens de carne e batatas. A situação alimentícia era preocupante. Salye foi mandada para Berlin a fim de negociar os contratos. A princípio a surrealista declaração de Frau Rudolf – com quem a sra. Salye era suposta negociar – de que não  podia receber-nos por estar envolvida em negociações urgentes com a cidade de Leningrado acerca de importação de carne.
      Ora a perplexidade da Sra. Salye era mais do que compreensível. Pois estava ali em representação de Leningrado para tratar de importação de carne !
      A carga de carne nunca apareceu. Também sumiu o dinheiro – 90 milhões de marcos alemães – que estava destinado para a operação. Mais tarde, Salye descobriu que Putin (então o encarregado do ‘Comitê para Relações Exteriores’) fora o responsável da trapaça (swindle), assim como de muitas outras. Soube que Putin, na sua qualidade de experto advogado, entrara em contratos com falhas legais para o abastecimento da cidade (compreendendo exportações de madeira, metais, algodão e  outras matérias primas).
       Malgrado Salye não conseguisse  obter a maior parte dos contratos, ela encontrou documentação  que provava haver Putin arranjado a exportação de no mínimo 92 milhões de dólares de commodities em troca de alimentos que nunca apareceram. Ela submeteu o assunto ao Conselho de Leningrado, que o remeteu ao prefeito Sobchak, com a recomendação de que demitisse Putin e  seu substituto. Não contente com esse trâmite, ela também levou a questão ao conhecimento do Controlador do Presidente Ieltsin , que, nesta qualidade, se entrevistou com o prefeito Sobchak. O Fiscal  acolheu a recomendação de Salye, repassando-a para o Presidente Ieltsin.
      E o que aconteceu ? pergunta Gessen. O caso morreu, presumivelmente em alguma ampla gaveta.
      Com tais precedentes, fica mais fácil  qualificar e entender a personalidade de Vladimir Putin. A ocorrência que vitimou, em 2006, a indômita jornalista Anna Politkovskaya, também nas escadas de seu prédio de moradia, por matadores profissionais, em um caso igualmente na aparência não esclarecido, semelha mais um elo dessa macabra corrente.
      Ser jornalista honesta e desenvolta, interessada nas causas e na verdade, e ainda por cima empenhada em jornalismo investigativo, pode ser considerado na Federação Russa uma atividade de alto risco. Outras pessoas que igualmente confiaram na imagem de uma justiça vendada e equânime também pagaram na democracia  um alto, e muita vez, máximo preço.
      Ainda bem que essa figura saída da KGB, e que divulga o respectivo compromisso com a causa do povão russo – a cavalo, com o torso nu,  ou ainda nos mesmos laivos mussolineanos descamisados da tomada da ‘batalha pelo trigo’ do Duce – encontrará sempre superficiais colunistas, ávidos no elogio e na alegada denúncia de sombrios complots da imprensa, quem sabe na toada da potência hegemônica...





( Fonte:  ‘O Conto de Vladimir’, de Anne Applebaum, in The New York Review of Books,  Abril, 2012 ).



[1] palavra arcaica com que de Gaulle, em 1968, desejara desmerecer os movimentos estudantis como se fossem simples arruaças inconsequentes.
[2] a denominação da cidade durante boa parte da era soviética.

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