domingo, 1 de abril de 2012

Colcha de Retalhos CIX

                          
O Porto

       O filme do finlandês Aki Kaurismaki acompanha, nas tomadas iniciais, de um lado, o velho engraxate Marcel Marx, interpretado por André Wilms, e de outro o porto do Havre, com os seus containers. Vemos Marx ao lado do vietnamita Chang (Quoc Dung Nguyen), em calçada movimentada, na silenciosa, quase patética oferta de serviços como engraxate de sapatos, os olhos fixos na monótona travessia de vários tipos de tênis e de sneakers.
       Por fim, um homem que leva um attaché-case preso com algemas ao pulso, pede que lhe engraxe o sapato. Na verdade, está sendo perseguido por gente mal-encarada, e o recurso ao engraxate é apenas  truque vão para livrar-se do bando. A tentativa não funciona e o homem interrompe o serviço de Marx para ser audivelmente liquidado pouco adiante, longe dos olhos da câmera.
      O outro quadro inicial mostra o arrombamento pela polícia de fronteira de um container. A despeito do calor e do ambiente claustrofóbico, poderia haver clandestinos no interior da caixa de aço, não se sabe se vivos ou mortos. As luzes das lanternas desvelam um grupo de gaboneses que expressam no olhar o malogro da própria tentativa de  vida melhor. Sentado à frente, um impassível jovem (Blondin Miguel). Antes que o agarrem o adolescente Idrissa logra escapar pelas estreitas vielas entre os containers. Nesse instante, quando um policial se apresta a alvejar o jovem, é impedido pelo comissário Monet (Jean-Pierre Darroussin).
      A princípio, Marcel Marx parece o  engraxate decadente e envelhecido, mais interessado em fumar o seu cigarro, tomar um conhaque e até afanar a baguette do armazém, como se fosse vigarista em fim de linha. O cenário muda, no entanto, quando entra, com a cachorra Laika,  na sua modesta casa, onde o espera sua mulher Arletty (Kati Outinen) a quem trata carinhosamente. Com  o sanduíche por ela preparado, volta ao cais,  onde vislumbra nos degraus submersos, com  água até a cintura, o fugitivo Idrissa. De propósito,  Marx deixa o sanduíche ao alcance do rapaz, e lhe recomenda que não saia dali, porque a polícia  está à sua procura.
      Colocados os personagens principais, a estória se desenvolve no formato de moderna fábula. Nela, com as dificuldades previsíveis, inclusive as sórdidas denúncias anônimas, a comunidade pobre mas não miserável tece o tapete mágico que poderá levar o jovem gabonês ao encontro de sua mãe, em Londres.
       O papel central, o desempenha Marcel Marx que, fundado no seu espírito de colaboração e companheirismo, é o artífice principal da elaborada tentativa – que dele exige inclusive viagem a Calais, com dispêndio de  parcas economias para localizar o avô do menino, que está detido em centro de deportação.
        Entrementes, a companheira de Marx sente mais forte a dor que lhe dilacera o estômago, e ele tem de interná-la. O médico Dr. Becker (Pierre Etaix) informa Arletty da doença, que supõe incurável. Preocupada com a reação do esposo,  ela pede ao médico omitir do marido a gravidade do estado, a que acede o compassivo clínico.
       Determinado o preço a pagar pela arriscada travessia, Marx pede tempo a Francis (Vincent Lebodo) para tentar levantá-lo. As amigas Claire e Yvette (as donas da épicérie e  do bar da vizinhança) se dispõem a entregar-lhe as respectivas economias, mas Marx recusa, por implicarem em sacrifício muito acima de suas possibilidades.
      Surge então a idéia de se organizar um show do artista Little Bob. Brigado com a namorada, ele se recusa a cantar. Marx não desanima e logra convencer o casal de velhos namorados  a se reencontrarem, com as desculpas exigidas.
      Durante a história, aparece com a imprevisibilidade dos cometas o comissário Monet. Todos temem a sua presença, que supõem nefasta, mas Monet, por entre o linguajar burocrático do policial, vai inserindo disfarçados mas óbvios avisos quanto às inúmeras insídias que cercam o personagem do rapaz Idrissa.
      A fábula avança, sob os olhos cúmplices dos diversos figurantes da trama, sem excluir as intervenções do insistente denunciador, interpretado por Jean-Pierre Léaud, o personagem de Truffaut, hoje transformado em obscena caricatura.
     Se não me disponho a desvelar o fim da travessia – a ser feita em frágil barco de pesqueiros através das procelas humanas e naturais do Canal da Mancha -  Aki Kaurismaki mantém a linha da fábula, onde se enfrentam as forças oficiais da ordem estabelecida, que se acreditam do bem, mas ao cumprir o respectivo papel trazem o mal, e a conspiração de muitos brancos e orientais, cada um a aportar um desinteressado esforço para ajudar o simbólico desconhecido, todos eles, agentes da lei e a mofina  mas humana gente de uma comunidade sem importância, empenhados zelosamente no cumprimento de o que pensam ser o próprio dever e/ou a sensação de sentir-se relevantes dentro da própria assumida insignificância.
     Por fim, talvez para mostrar que nada é perfeito, e que tudo a ocorrer pertence ao domínio de uma tresloucada fantasia de universal benemerência, o diretor, em aspecto pessoal e clínico, carrega na demão. Assim, o que possa parecer exagero, Aki Kaurismaki nos insinua que como tudo na vida cabe o pirandelliano assim é se lhe parece...  



A Lei de Assistência Sanitária Custeável (Contd.)

     Conforme a prática na Suprema Corte, há uma sessão em que os juízes fazem perguntas e os advogados das partes – o que incluía no caso o Solicitador-geral, Donald B. Verrilli Jr. – tentam respondê-las, buscando influenciar os membros do Supremo, conhecedores que são a fundo não só da jurisprudência atinente à questão, assim como das opiniões e tendências desses juízes.
     O ultraconservador Clarence Thomas tradicionalmente não faz perguntas. Quanto aos demais, as principais atenções se dirigiram para o juiz  Anthony M. Kennedy, que é considerado como o voto determinante qunto à constitucionalidade da Reforma Sanitária sancionada em 2010.
     Segundo indica a análise feita pelo New York Times, nesse tipo de exercício dos juízes, em geral colocam mais perguntas para os advogados de posições com as quais não estão de acordo. Nesse contexto, o juiz Kennedy fez seis interrogações ao Solicitador-Geral (que é o advogado oficial da Administração Obama), e apenas três para os dois advogados que propugnam a inconstitucionalidade da Lei.
     Uma das preocupações centrais do pensamento de Anthony Kennedy é o conceito de liberdade. Foi tendo este princípio guia muito presente, que Donald Verrilli Jr., ao concluir a sua defesa da constitucionalidade da lei, inseriu observações voltadas diretamente para o juiz Kennedy. No entendimento do Solicitador-Geral, existe profunda conexão entre a assistência sanitária e a liberdade : “Haverá milhões de pessoas com doenças crônicas como diabete e cardiopatia, e por causa da assistência sanitária que receberão, estarão libertos dos grilhões das incapacidades que tais enfermidades criam para elas, e terão a oportunidade de fruir das bênçãos da liberdade.”
     Ao contrário dos prognósticos pessimistas de que o destino da Lei de Assistência Sanitária já estaria selado, pela desenvoltura de quesitos acerca dos efeitos de uma decisão majoritária pela inconstitucionalidade do mandato, as renovadas dúvidas sobre a orientação desse virtual voto de Minerva trazem esperança aos atribulados causídicos que propugnam pela constitucionalidade do instrumento legal. O que fazer com o restante do longo articulado dessa lei ?  A própria juíza Ruth Bader Ginsburg que é favorável à constitucionalidade, reconheceu que, na hipótese de o mandato central ser denegado, a Corte se defrontaria com a alternativa de ‘operação de destruição’ (wrecking operation) e um ‘trabalho de salvação’ (salvage job).
     Diante de uma Corte dominada pelo voto conservador e republicano (é certo o voto contrário de Clarence Thomas e de Antonin Scallia, que já disse: ‘se o coração da lei é extraído, todo o resto deve ir junto’). Tampouco persiste muita incerteza quanto aos votos negativos do Juiz-presidente (Chief Justice) John G. Roberts Jr., assim como de Samuel Alito. Os quatro juízes liberais votarão pela constitucionalidade: Ruth Ginsburg, Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan.`
     No fim de contas, reforma da importância e da amplitude do Affordable Healthcare Act fica dependente de um único e solitário voto, emitido por um juiz conservador, indicado pelo republicano Ronald Reagan. Esta pesada responsabilidade – a inviabilização dessa reforma implicará  na denegação da cobertura sanitária para trinta milhões de pessoas. A cláusula do comércio interestadual – que foi barreira afinal vencida por FDR na sua luta contra um Supremo integrado por maioria conservadora – hoje implica na federalização da questão, e, portanto, da validade do mandato individual de aquisição de seguro médico. Como Paul Krugman analisa o problema, há duas maneiras de solucioná-lo: ou através de imposição de imposto federal (o que ocorreria com a opção pública), ou requerer de todo cidadão e residente nos Estados Unidos a compra de seguro.
      A inquietude quanto à decisão da Corte muito se alimenta do viés pró-republicano do atual Supremo, pela maioria de cinco a quatro em favor da linha conservadora. Esse caráter político da Corte contribui para a sua perda de prestígio, eis que a Constituição a criou não para favorecer este ou aquele partido, mas para assegurar a constitucionalidade da lei. A decisão do Supremo em favor de George W. Bush e contra Albert Gore, dando na prática a presidência ao candidato republicano, minoritário no voto popular, abalou decerto o prestígio da Corte. Outras decisões na linha pró-republicana como Citizens United, de que já me ocupei no blog, não acrescentam muito em expectativas favoráveis a uma sentença equitativa.
       Só resta torcer para que o conceito de liberdade induza o Juiz Kennedy a não juntar a própria assinatura a uma sentença ruinosa para a saúde do povo americano, e mormente para aqueles mais necessitados. Por outro lado, demolir um edifício cuja construção exigira mais de século de diversas tentativas, bem-intencionadas de resto, como o Plano de Hillary Clinton que malogrou no primeiro mandato do 42º presidente, só é pensável em um país onde o antagonismo partidário chegou a ponto de toldar o entendimento de muitos dos participantes...



Vitória da Suu Kyi em Myanmar


      A comissão do partido oposicionista anunciou a eleição de Daw Aung San Suu Kyi na sua circunscrição, ao sul de Yangoun. Foram reportadas algumas irregularidades na votação de ontem, de acordo com o partido de Suu Kyi. Embora a oposição reivindique ‘a vitória’, ainda não se sabe quantas cadeiras foram ganhas (concorria em 44 das 45 disponíveis) pelo partido da Prêmio Nobel e heroína  birmanesa.
       Sob o novo presidente, um general reformado, foi quebrado o longo isolamento imposto pela férrea (e corrupta) ditadura militar do general Than Shwe. Há esperança de que se inicie a volta à democracia, posto que seja ainda muito cedo para afirmá-lo com segurança. Havia um número bastante pequeno de assentos vagos – 45 em 600 – e, por isso, tudo dependerá da postura do governo de Thein Sein.
 

A meia-gafe de Rick Santorum

       
      O ex-senador e pré-candidato conservador Rick Santorum terá enveredado em Wisconsin por terreno perigoso, quando se referiu ao Presidente nos seguintes termos: ‘Nós conhecemos o candidato Barack Obama, como ele era: um pró-governo antiguerra crioul...’ Nesta altura, dando-se talvez conta da enormidade que estava vocalizando, Santorum mudou bruscamente de assunto, deixando pendurada a meia-palavra que, se completa, seria desastrosa gafe a atravessar-lhe  a campanha nas primárias.
      A palavra ofensiva que Santorum não pronunciou por completo é nigger. Ele disse nig... e a sua assessoria apressou-se em declarar que a suspeita é ridícula, e o que o candidato desejava dizer seria nik, uma forma reduzida de beatnik ou peacenik.
      Na internet, onde a cena já se encontra, não é isso que parece. Como se sabe, a palavra nigger em inglês tem carga pejorativa muito mais acentuada do que, v.g., crioulo em português.

    

( Fontes:  CNN, International Herald Tribune, O Globo )

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