quinta-feira, 12 de abril de 2012

Tibete - A Liberdade de Morrer

                             
      É estranha esta liberdade que o opressor chinês não pode, ao invés de tantas outras, vedar ao povo tibetano.
      Ao contrário de outros impérios, que cresceram com a dominação de espaços territoriais não-contíguos – e o exemplo disso é o britânico – a China se alargou pela anexação de espaços contíguos.
      O Tibete foi um deles. Controlada a situação interna chinesa, com a vitória dos comunistas de Mao Zedong sobre o Kuomintang de Chiang Kai-shek,  a teocracia tibetana foi invadida em 1959. A sua vizinhança a sudoeste, considerável extensão territorial com pouca densidade demográfica, riquezas minerais e fraqueza militar constituíam para o Império do Meio um atrativo quase irresistível.
      A fuga do então jovem Dalai-Lama pelos ínvios caminhos do Himalaia até o asilo na Índia, introduziria uma nova situação política que, apesar do crescente poder material do invasor chinês, mostra os limites da violência do conquistador.
      O seu emprego da força nua, da intimidação, do colonialismo interno – que também mostra a carantonha em Sinkiang, na submissão da etnia uighur – se depara com barreiras imprevistas e de árduo, quase impossível controle.
      A indômita resistência do povo tibetano configura um desafio para o imperialismo chinês. O problema básico para Beijing reside na circunstância de que há um limite inacessível para a violência opressora. A metrópole pode canalizar para os altiplanos do Tibete as correntes invasoras da etnia Han, aquela majoritária na China. Essa tática de sufocar a população autóctone enfrenta barreiras invisíveis, que são os costumes, os princípios e a ideia de legitimidade. Esse tecido inconsútil não é visível a olho nu, mas  sua realidade o invasor chinês a sentirá em cada vizinhança, em cada nacional.
      A irracional demonização pelo poder imperial do pacífico Dalai Lama só pode ser entendida pela sua incapacidade de captar e de submeter uma entidade, imantada ao longo dos anos pela sua tão pacífica quanto impérvia postura de heróica afirmação de nacionalidade. A metrópole  ambiciona mais do que subjugar, submergir na torrente ignara e amorfa da colonização imperial a nacionalidade tibetana.
     A dificuldade encontrada pelos sátrapas da China em transformar a cultura tibetana em mais uma amorfa província imperial reside em fatores sociais e psicológicos, que não são passíveis de serem aferrados e anulados pelas mãos brutas e ignorantes das hordas invasoras.       
     Daí a incapacidade do império em compreender a extensão de um outro poder, inaferrável deveras, que sobrexiste à violência material do alienígena.
     Com efeito, a liderança do Dalai Lama é um estranho edifício, construído com denodo, paciência e resolução ao longo dos anos. Em cada lar tibetano, material ou figurativamente,sobrepaira a imagem desse chefe sem exército de fuzis, mas cujas armas semelham muito mais temíveis, porque entranhadas pelo exemplo e consequente livre admiração na mente dos tibetanos.
      Estes, quer vivam em Llasa, quer nos páramos dos ásperos campos do Tibete, levam consigo, e não por ordem de algum burocrata, a serena presença do Dalai Lama.
        Episódios recentes do drama desse pacífico país, materialmente invadido e anexado pelo exército vermelho, mostram a quem queira ver – e muitos são os adoradores dos falsos ídolos – quão impenetrável e inextinguível é a chama de um nacionalismo, fundado na personalidade do Dalai Lama.
        Esta ideia, aparentemente frágil e vulnerável, há de surpreender pela sua capacidade de vencer – ou de revelar-lhe os limites materiais – do poder imperial de Beijing.
        Desde o ano passado, assistimos estarrecidos um novo filme da saga desse povo, que é gigante pela sua própria natureza. 32 nacionais tibetanos, a maior parte deles jovens homens e mulheres, se sacrificaram pelo fogo – aquela mesma divindade que consumira o humilde verdureiro Muhammad Bouazizi a vítima propiciatória da Primavera Árabe. As consequências podem ser aparentemente diversas, mas muita vez as aparências enganam.
       É de notar-se o caráter altruísta do sacrifício desta juventude. Não têm ilusões quanto a salvações in extremis. Imolam-se por uma ideia, que é representada, para horror dos déspotas chineses,  pela pessoa e sobretudo o testemunho de seu líder nacional. O Dalai Lama, pelo seu próprio valor, elevou-se da mediocridade de um recôndito lugar de asilo, para ser depositário do Prêmio Nobel da Paz, arrancado com tranquila firmeza das ameaçadoras manoplas de uma potência mundial, que por fim se choca com os limites da intimidação.
      Parece oportuno frisar que são jovens esses abnegados a cruzarem o umbral da morte pelo fogo. Muitos deles são monges ou discípulos do budismo, que por duas ideias mergulham no sacrifício extremo: reclamam a volta do Dalai Lama e o respeito à nação tibetana. A sua crença de certo modo lhes facilita a travessia, pelo menosprezo que têm pela matéria – não se há de esquecer que os seus cemitérios são a céu aberto – e a certeza da vindoura reencarnação.
        O mais irônico no desafio que essa convicção espiritual provoca é o fato de ser acompanhada pela tecnologia cibernética. A extrema dádiva existencial não permanecerá anônima nos arquivos e socavões do império. A luta da censura contra o conhecimento é campanha sem esperança, porque a verdade se pode valer da sofisticação de uma tecnologia que está ao alcance de todos.
        Desse modo, o  sacrifício não se restringirá às palavras de uns poucos circunstantes. Ficará nas imagens, trêmulas ou não, dos videos, e da capacidade libertária da internet de confundir as barreiras, sejam funcionais, sejam de muralhas de fogo.
        Viverá assim a chama da liberdade na patética corrida de um corpo enquanto lhe restam as forças que o fogo não consome. Na suprema derrota, viverá a permanência da ideia da liberdade.



( Fonte: International Herald Tribune )    

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