quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A Ocupação de Wall Street

                

      Vista pela imprensa e a mídia em geral esta ocupação  é apresentada como algo folclórico, misto de carnaval e de violência-light de franjas esquerdistas. Na verdade, devemos buscar com seriedade a causa real do espontâneo crescimento e surpreendente duração da ocupação de espaços vizinhos desta pequena rua, hoje tristemente simbólica.
      A resposta não é  tautológica. E se a superficializarmos, cairemos na armadilha do estamento dominante.  Esta rua estreita, cercada pelas altas, portentosas torres do capitalismo fundamentalista, é a aparente e soberba negativa da pobreza e do desemprego que se espalha, sorrateiro, até nas metrópoles, mas inexorável pelas cidades e cidadezinhas do vasto interior americano.
      E, no entanto, essa pequena rua não está dissociada da miséria da crise, primeiro das hipotecas subprime, depois vestida da designação, veraz e pomposa, de crise financeira internacional. Muito pelo contrário. Pois esta ruela, em que tronejam os bancos e as empresas similares, é a causadora de o que hoje se chama de grande recessão, a exemplo do seu modelo dos anos trinta, a grande depressão.
       Denominar tais flagelos como grandes será talvez  vezo americano, porém decerto dá falsa pátina de austera dignidade à hedionda desgraça da falta de meios, de sofrimento e privação, da bancarrota e de uma existência virada de ponta-cabeça, sem outro significado que o desespero pessoal e familiar. Por isso, me repugna aureolar de grande tais calamidades.
        Por outro lado, é bom relembrar que os ignorantes e os esquecidos (estes, não importa se propositais ou involuntários) estão condenados a repetir os erros da história. Também o refrão ‘desta vez, será diferente!’ é outra motivação, eivada de ganância e de sua perene companheira, a leviandade.
        A irresponsabilidade financeira, com a desenfreada especulação e todos os seus enganosos artifícios, é direta decorrência do consciente desfazimento da legislação que regulava as atividades financeiras, nascida com o objetivo de evitar as práticas e o descontrole que estão na raiz da débacle de 1929, e da consequente depressão que de uma ou outra forma se estenderia até o começo da Segunda Guerra Mundial e o decorrente pleno emprego.
       Partindo da falácia  neoliberal que o mercado se auto-regula, administrações republicanas e democrata pactuaram sob a cantilena de que se devia dar rédea solta às atividades financeiras e assemelhadas. A lei Glass-Steagal, de 1933, que proibia os bancos comerciais de exercerem atividades de banco de investimento foi ‘reformada’ pela lei Gramm-Leach-Biley, de 1999, projetada pelo Secretário do Tesouro Robert Rubin, seu subsecretário Larry Summers e o presidente do Federal Reserve Bank, Alan Greenspan, no governo de Bill Clinton.   Greenspan, o presidente do Fed por quase dezenove anos,  indicado por Ronald Reagan,  e empossado a onze de agosto de 1987, permaneceria nas presidências de George H.W.Bush, Bill Clinton e George W.Bush, aposentando-se afinal a 31 de janeiro de 2006. Ele se tornaria o símbolo da voluntária abstenção pela autoridade financeira de controle significativo da especulação nas finanças.
      Precipitada pela falência do Banco Lehman Brothers, em quinze de setembro de 2008, a chamada crise das hipotecas subprime, se agravaria na crise financeira internacional. Pela gestão temerária e pela irresponsável especulação – os ditos CDOs (obrigações colaterizadas de dívida) – levariam à quase falência da AIG (agência de resseguros), do Goldman Sachs e do Citibank, entre outros. Os tais certificados CDO, a que as agências classificadoras chegariam a dar o triplo A de garantia, continham hipotecas com muito baixas possibilidades de pagamento.  Por isso,  acarretariam a perda de suas casas por um grande número de pessoas de poucos recursos, a maior parte delas enganada em artificiosas capitalizações de suas residências, sob o engodo de carências iniciais de prestações ou de juros inicialmente muito baixos.
    O frenesi financeiro se difundiria em muitas outras práticas – derivativos, swaps, e inclusive a aposta na inviabilidade do pagamento, o que faria a fortuna de uns poucos – que provocariam a recessão de 2008. Malgrado os bonus abusivos dispensados a banqueiros, apenas não saíu indene o Lehman Brothers, de que foi decretada a bancarrota. Quanto aos demais, não obstante os prejuízos na atividade econômica e o consequente generalizado desemprego, receberam polpudas ajudas, os bail-out, e em muito pouco tempo, evidenciaram a antiga arrogância e desenvoltura, como se o dinheiro público que viera pagar dívidas decorrentes de práticas e empréstimos de responsabilidade privada, lhes fosse  prerrogativa e direito estatutário.    
    Na verdade, a administração Barack H. Obama, pela pouca experiência executiva do novel presidente, perdeu oportunidades preciosas de um maior controle da atividade bancária, financeira e de investimento, apesar da nova Lei Dodd-Frank (que a extrema direita republicana se propõe a rerrogar). Influenciado por Larry Summers, que chefiava a assessoria econômica, e Timothy Geithner, antigo presidente da Federal Reserve de New York, e atual Secretário do Tesouro, Obama concordou que fosse dado  tratamento leniente aos bancos envolvidos na irresponsável especulação do período anterior. Ao invés de dar tento a Paul Volcker, preferiu o presidente mais ouvir a Summers e Geithner, ambos com estreitos laços com Wall Street.
    O primeiro biênio do 44º Presidente, em que os democratas dominavam as duas Casas do Poder Legislativo, também se assinalaria por legislações em que a criação de empregos poderia ter sido mais pró-ativa. Obama, iludido por vão bipartidarismo, rejeitado pela oposição à outrance dos republicanos, desperdiçaria mais esta oportunidade de alavancar a recuperação da economia.
    Tais erros e oportunidades perdidas tiveram a paga no ‘shelacking’ (surra) da eleição intermediária de 2010, que entronizou a divisão no Legislativo, e a consequente paralísia, levada ao extremo na extorsão republicana ao ensejo da modificação do teto para o pagamento da dívida pública.
    É cedo para prever como os comícios de novembro de 2012 hão de determinar o destino imediato dos Estados Unidos. Se reforçarão o poder dos energúmenos e da velha extrema direita de estampo americano, hoje denominada Tea Party, no passado, a John Birch Society e congêneres, assim como do GOP, que dela está a reboque, ou se, malgrado as contradições e fraquezas, o eleitorado preferir uma segunda vez a Barack Obama.
     Nesse contexto, o Partido Democrata não pode servir a dois senhores. Não pode esquecer o real sentido do protesto hoje reificado pela ocupação de Wall Street. Em suas palavras para os manifestantes de tal movimento, Slavoj Zizek lembrou que o êxito do capitalismo gerenciado pelos comunistas chineses é um mau augúrio de que o casamento entre capitalismo e democracia se aproxima do divórcio.
    Enjeitar, como querem os republicanos, o estado do bem-estar social, como se isto tornasse o americano não-competitivo na economia global e, por conseguinte vulnerável a crises econômicas, a realidade que está à volta, se não nos torna imortais, nos aconselha a ter mais solidariedade e assistência pública de saúde.
    A lição do movimento é uma de responsabilidade e de respeito ao querer do público, e não da prevalência do privilégio, dos baixos tributos pagos pelos ricos, dentro dessa estulta filosofia de um Estado fraco, com os impostos destinados sobretudo a subvencionar a indústria do armamento. Nega-se o emprego a quem o necessita, e se favorece ao rico e ao especulador.
     Contando, ninguém acreditaria. Mas é a política de um dos dois grandes partidos. Querer esta gente no poder é uma receita de mais calamidades futuras.          

    

(Fonte: discurso de Slavoj Zizek para o Movimento de Ocupação de Wall Street)

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