terça-feira, 18 de outubro de 2011

O Futuro dos Estados Unidos

                 
       O século XX assistiu ao triunfo da principal potência da vez. Dois Conflitos Mundiais, com o seu rastro de ruina, desgraça e catástrofe, guindaram os Estados Unidos às alturas de um poder a princípio inconteste e incomparável.
       A insanidade de o que se denominara a Grande Guerra não só ceifou, com seus obtusos generais e a tragédia indizível dos massacres na luta das trincheiras, a esperançosa mocidade transformada em carne de canhão e metralha, senão sacudiu a empáfia dos impérios, e abriu as comportas para uma  torrente  de revoluções que carregou com  plumas, ouropéis, mantos de arminho e os pontudos capacetes dos junkers germânicos.
      O mundo, então centrado na Europa imperial, e na distância as lanças robustas dos Estados Unidos e do Império do Sol Nascente, viveu na dita Belle Époque  longo período de esplendor e prosperidade, de que a pátina nas fotos guarda o arredio encanto do passado, com as paradas de personagens empertigados, e o perdido sortilégio de um mundo de paz e sem passaportes, de fronteiras abertas às correntes de mão-de-obra, comércio e indústria.
     Bastaria atentado em julho de 1914, na então desconhecida Sarajevo,   para que tudo virasse um castelo de cartas. Na lógica absurda das alianças, a principio abafado nos ares do verão boreal, pôs-se em marcha o que as chancelarias europeias tinham fabricado para a hipótese de conflagrações improváveis.
    Acionada a maquinária infernal por Francisco José,um imperador ancião, cujo reinado datava de 1848, a estranha e súbita falta de estadistas ensejaria que se alastrassem os ventos malditos dos senhores da guerra. As bravatas do Kaiser Guilherme II tomaram as rédeas, antes manejadas pelas mãos hábeis e prudentes do Chanceler Otto von Bismarck, e no final se desencadearia a tragédia, tornada inelutável pelas frases sibilinas de Edward, visconde de Grey, ministro do exterior de Sua Majestade Britânica.
    Para os historiadores que marcam as idades por tais eventos, aí surgia o terrível século XX, com sua cruel crônica de desastres e matanças. O que se pensara a fábrica da concórdia, logo apareceria com confuso enredo de prepotências e ressentimentos, de confins que alimentavam o ódio, de perseguições e misérias gerando ditaduras, que não tardariam em reabrir as cancelas do inferno.
    O final do século assinalaria a incrível epifania dos Estados Unidos como a única superpotência, diante do desfazimento da União Soviética, de que  Cassandra na carne do dissidente Andrei Amalrik perguntaria, sob a mofa dos entendidos, se a URSS sobreviveria até 1984.
    Foram anos breves os do máximo fastígio de Washington.
    Delineia-se, atualmente, nos Estados Unidos, nova fase, a que os cronistas descrevem com traços ainda incertos, porque de novo se anunciam os malditos tempos interessantes,  que ora nos falam, em época de paz, da sobrevinda do Império do Meio. Depois do longo letargo, que o próprio Napoleão julgara oportuno, de novo e agora no concerto das nações, Beijing se lança como o desafiante de turno, a repetir o monótono confronto que, com a providencial ajuda da Grande Guerra antes levara à sucessão da Londres imperial por Washington.     
     Segundo tal visão, o traumático começo dos novos tempos se fixou pelo atentado terrorista contra as Torres Gêmeas, de onze de setembro de 2001,  que os americanos se habituaram a designar por nine eleven, que é sua maneira usual de reportar as datas, com o mês a preceder o dia.
     Não há na história paralelo para que um povo venha a atribuir a atentado terrorista o valor simbólico de marco que dê início a  nova era. Se dele tivermos, no entanto, presente o impacto e as dimensões ficará menos difícil a compreensão do significado da data.
     Nesse plano,  foram sequestrados quatro aviões de carreira que chocaram-se  contra as Torres Norte e Sul do World Trade Center (Centro Mundial de Comércio), destruiram  ala do Pentágono, o Ministério da Defesa, em Washington.  A queda da última aeronave na Pennsilvania deu-se depois de  brava reação dos passageiros. 
     A operação urdida pela al-Qaida só se terá realizado em função de  um conjunto de falhas nos serviços de segurança estadunidenses, notadamente através de falta de coordenação entre a CIA (Agência Central de Inteligência) e o  FBI (Bureau Federal de Investigações)[1], assim como, em grau menor, da NSA (Agência de Segurança Nacional)[2].   
     Mais de três mil americanos cairiam vítima do ato terrorista, a maior parte presos nas estruturas das duas Torres.Incontável número de suicidas; integrantes do Corpo de Bombeiros de New York que agiram no  intento heróico de salvar vidas e tentar dominar os sinistros;  os pobres passageiros e as tripulações das quatro aeronaves sequestradas; e, por fim, em Washington, funcionários do ministério da Defesa americano. As sequelas das colisões e desmoronamento das Torres também provocariam vítimas, afetando-lhes sobretudo as vias respiratórias pela quantidade de poeira tóxica desprendida pela catástrofe. Para tais infelizes, o comprometimento dos pulmões os transformava em inválidos, com baixa qualidade de vida, quando não a superveniência da própria morte.
     Com a longínqua exceção das incursões britânicas na guerra seguinte à independência – que atingira sobretudo a Washington e a Casa Branca de então – não há memória de ataque inimigo ao solo continental americano. Entende-se, por isso, não só o trauma e a reação em decorrência do atentado, senão o caráter simbólico consignado à data.
      O sacrifício de mais de três mil americanos dá lugar ao testemunho, consubstanciado por monumento edificado no marco zero, com a austera dignidade que cabe a tal tipo de homenagem. Naquele sítio, caracterizado por tantas atividades, inclusive no plano turístico – como mirante o World Trade Center suplantara o Empire State Building – se consubstancia uma das vertentes da reação do povo americano, centrada na reconstrução da área, a ela incorporadas as manifestações da respectiva determinação.
       Nesse contexto, acredito de particular importância o artigo de George Packer, publicado pela revista New Yorker de 12 de setembro de 2011, sob o título Coming Apart (Caindo aos pedaços).
      Como os leitores do blog terão tido a oportunidade de informar-se, a par da inauguração pelo Presidente Barack H. Obama do monumento às vítimas, assim como o parque circunstante, houve diversos eventos ao ensejo do décimo aniversário do magnicídio.  
       As reflexões de Packer são impregnadas de pessimismo. Isso se deve, em primeiro lugar, à reação do governo de George W. Bush. Declarou guerra ao terror. Poderia tê-lo feito contra Al Qaida, mas preferiu a guerra global contra o terror. Como o Pentágono do Secretário Donald Rumsfeld pensava realizar guerras limitadas e curtas, não houve o recrutamento do conflito mundial de 1941/45. Sem reflexos econômicos para a população em geral – menos de um por cento lutaram nas guerras do Iraque e do Afeganistão – tampouco se planejou manufatura de armamentos em larga escala. A despeito da necessidade de transportes que tivessem mais proteção para os soldados, foram utilizados a princípio Humvees e outros carros militares sem blindagem adequada, o que expunha os soldados americanos.
       Nesse sentido, a resposta de Rumsfeld a um praça, que o questionara sobre a falta de qualidade na blindagem dos caminhões do exército, seria de brutal – e infame – franqueza: “Você vai pra guerra com o exército que se tem.”
      A redução nos efetivos do exército – sob a premissa de um conflito rápido no Iraque – teria consequências desastrosas, após desbaratar as forças de Saddam Hussein, e a inesperada resistência armada com o constante incremento das baixas nas fileiras dos G.I.s.  Comprovada a falsidade da motivação empregada para deflagrar a guerra contra Saddam – a inexistência de armas de destruição em massa (WMD), a confirmar os pareceres dos inspetores das Nações Unidas, a instrumentalização da CIA, com falsas alegações de aquisição de material nuclear – a custosa aventura militar, as constantes e crescentes baixas ocasionadas pela insurgência no Iraque,esvaziaram o apoio a Bush por envolver o soldado americano em conflito tão inútil quanto devastador para o Tesouro nacional.
       Após alinhar no artigo todos os ‘se’ irrealizados: se Al Gore tivesse tido a eleição reconhecida, se bin Laden tivesse sido capturado em Tora Bora, se o foco da intervenção se tivesse cingido a al-Qaida, se o projeto de formação nacional tivesse sido tentado no Afeganistão, se os EUA não houvessem declarado guerra ao Iraque, George Packer chega à conclusão de que tais caminhos alternativos teriam sido úteis, mas nenhum deles teria sido determinante, porque o problema mais profundo estava no corrente declínio que é maior do que qualquer desses acontecimentos ou políticas.
       Por causa deste logro nacional, aprofundou-se a cisão no país: Bush, visto como ilegítimo por muitos democratas, se tornou um dos presidentes mais odiados na história dos Estados Unidos. Dividia-se o território em feudos azuis (democratas) e vermelhos (republicanos).  Por sua vez, o GOP caíu sob o controle da ala mais extremista, com a palavra ‘traidor’de emprego corrente para os seus eventuais opositores.
       Qualquer remanescente do sonho americano desapareceria com a falência do Banco Lehman Brothers, em setembro de 2008. Seguiu-se, em repúdio a Bush, a vitória esmagadora de Barack Obama, e quase de imediato, o recuo na popularidade de Obama.
        Packer analisa a tentativa do soldado veterano do Iraque, Chris Berman, de criar uma fábrica de blindagem de humvees – que é o sucedâneo do jeep – no transporte militar. Historia os respectivos esforços e a inanidade deles, em meio aos inúmeros estabelecimentos fechados na cidadezinha de Mount Airy, no Condado de Surry, na Carolina do Norte, assim como a falta de interesse e de contatos no Congresso para criar condições de montagem de tais veículos, atendida a experiência na matéria de Berman.
        Todo o trabalho e os planos do veterano Berman para o estabelecimento de sua empresa – Granite Tactical Vehicles  (veículos táticos Granito) – estavam parados na fase de pesquisa e desenvolvimento. Com o seu pessoal de duas dúzias de operários, não havia certeza se a oferta do projeto seria aceita e encomendada. O prazo de concessão seria em torno do próximo outono, e diante das perspectivas, os funcionários da prefeitura já diziam da possibilidade de reaver o arrendamento (que lhe fora concedido pelo depósito simbólico de um dólar).
        O esvaziamento de muitas cidades fabris – como Mount Airy -, o consequente abandono das instalações, o ar decrépito desses antigos núcleos de atividade, infundem no autor a sensação do declínio americano que ele considera como  consequência do processo iniciado com o atentado de onze de setembro, e as ruinosas guerras empreendidas pela Administração Bush.
        Packer não está sozinho na sua preferência pelo vocábulo declínio para descrever a atual situação, não só da economia, mas também da sociedade em seu comportamento diante do desafio de uma condição diversa da atividade de épocas pregressas. A opção por declínio implica aparentemente no caráter não irremediável e, portanto, supostamente reversível do fenômeno.
         Outro artigo, assinado por Adam Gopnik, também do New Yorker de doze de setembro, sob o título “Declínio, Queda, Lave, Repita versa por igual o declínio,o  tratando no contexto do livro de Oswald SpenglerDer Untergang des Abendlandes’, cujos dois volumes foram concluídos em dezembro de 1917. A obra de Spengler ‘A Decadência do Ocidente’ influenciaria a historiografia, inclusive o próprio Arnold Toynbee, com o seu ‘Study of History’ (Estudo da História) talvez até mais de o que seria reconhecido por este último.
        De qualquer forma, o livro de Spengler seria um verdadeiro best-seller, em função da época em que foi publicado (o último ano da Grande Guerra). O seu prestígio diminuiria no futuro por sua interpretação demasiado biológica e mecanicista da história.
        Spengler sempre foi associado a certo pessimismo. Nesse sentido,  Henry  Kissinger nos seus melhores dias, era – de acordo com Gopnik - considerado spengleriano, na medida em que era mais perceptivo no seu pessimismo, enquanto tentava administrar o declínio do liberalismo diante do crescimento inexorável das sociedades totalitárias.
         Neste transe específico da ‘grande recessão’ afigura-se que se generaliza em pelo menos parte da intelligentsia estadunidense essa referência ao declínio americano por Gopnik. Se inexorável ou irreversível seria uma outra questão. Sem embargo, é oportuno mencionar que Adam Gopnik  coloca no contexto presente o declínio do Ocidente estudado por  Spengler. A implicação óbvia é que os Estados Unidos se inseririam no processo.
        Há fenômenos que reforçam esta impressão. O recente episódio da extorsão republicana na questão do estabelecimento do teto da dívida pública – um assunto antes sempre tratado de forma burocrática e automática, segundo a respeitada politóloga Elizabeth Drew – mostrou o fosso existente entre, de um lado, a facção evangélica e a  minoria do Tea Party, instrumentalizada pelo líder republicano Eric Cantor,  e do outro lado, a bancada democrática. Que se coloque em risco o crédito nacional por um objetivo tacanho e sectário desvela preocupante falta de respeito ao interesse da União Americana.
        A visão das hostes republicanas dos democratas não como parte do processo legislativo, mas como inimigos, inviabiliza qualquer perspectiva de grandes acordos fundados no interesse nacional. Sob o ângulo das bancadas do GOP a colaboração democrática deve ser descartada. Apesar das ilusões de Obama, o espírito do bipartidismo não mais existe no Congresso americano.
         Cabe, no entanto, uma retificação à citação do título da obra deste filósofo da história. Em alemão  Der Untergang des Abendlandes  tem mais a conotação de queda, decadência, destruição do que o gradual e plácido declínio que é preferido pelos americanos. 
        Psicologicamente falando, é menos estressante o termo declínio, com o seu implícito suave gradualismo (sem excluir a possibilidade da reversão). Na progressão da história, entre os EUA e a RPC, as afinidades de muitos países, inclusive o Brasil, os aproximam da atual superpotência.
        Não obstante, as tábuas das progressões nos acenam com a ultrapassagem chinesa no final da década de vinte. Uma vez tornada a principal potência econômica, como foi apresentado por estudo de Arvind Subramanian – já referido neste blog – haveria a passagem do renminbi como principal moeda de reserva. Isso reeditaria processo já  verificado no passado, com o domínio do Reino Unido em 1870, com a libra esterlina, e o dos Estados Unidos, em 1970, com o dólar.
         O único problema das previsões do futuro é o seu condicionamento epistêmico ao presente, e a regra rebus sic stantibus. Ao fazermos prognósticos, só nos podemos orientar por aquilo que conhecemos,seja no presente, seja no passado. Por isso, toda previsão padece desta lacuna epistemológica. Só podemos projetar aquilo que conhecemos. Por isso, se vistas com o benefício do tempo decorrido, muitas das previsões pretéritas na verdade são caricaturas da época em que foram feitas.
 

( Fontes subsidiárias: The New Yorker, The New York Review of Books )



[1] The Looming Tower – Al-Qaeda and the Road to 9/11, de Lawrence Wright, Alfred Knopf, New York, 2006, descreve a falha fatídica na troca de informações entre a CIA e o FBI.
[2] The Secret Sentry – a não-contada história da Agência de Segurança Nacional, Matthew M.Aid, Blomsbury Press, New York, 2009.

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