sábado, 11 de julho de 2009

Mais uma Rebelião no Império Chinês

Localizada no extremo oeste da China continental, a chamada Região autônoma de Xinjiang é ocupada pela minoria Uighur, de credo muçulmano. A região em apreço, conquistada no século XVIII pelo Império da China, gozou de breve independência (1944-1949) como a ‘República do Turquestão Oriental’. Xinjiang é formada por grandes extensões desérticas e os oasis que aí existem constituiram no passado parte da rota do ‘Caminho da seda’, trilhado no século XIII por Marco Polo.
Para que melhor se entendam os violentos protestos da população nativa, as áreas habitadas pelos Uighures, assim como pelas demais minorias étnicas, correspondem a quase quatro quintos da superfície territorial chinesa. No entanto, a soma demográfica de todas essas minorias alcança apenas oito por cento da população da R.P.C., em um total de 1,3 bilhão de pessoas dominado pela etnia han chinesa.
Como se sabe, o ‘Turquestão Oriental’ faz parte das grandes áreas da Ásia Central que, com a sua exceção,tinham sido anexadas pelo império dos Tsares, em complemento à incorporação da Sibéria e da expansão para leste, que levaria a Russia até o Pacífico Norte, em Vladivostok.
Após o colapso da União Soviética em 1991, as antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central do Kazaquistão, Uzbequistão, Tajiquestão, Turquemenistão e Kirguisistão se transformaram em estados independentes. Para a minoria uighur da Região de Xinjiang – que lograra efêmera liberdade nos estertores da China nacionalista de Chiang Kai-shek como o referido Turquestão Oriental – esta independência de países vizinhos e com tantas similaridades de formação não podia deixar de representar um incentivo para movimentos futuros.
No entanto, a fundação por Mao Zedong da República Popular da China em 1949 seria acompanhada pela reincorporação da citada ‘Região Autônoma de Xinjiang’ e, dez anos mais tarde, pela invasão do Tibete e a fuga do Dalai Lama, da capital Lassa. Aí se constituiria a Região autônoma do Tibete, com área de 1,2 milhão de quilômetros quadrados.
Dezoito meses depois do levante no Tibete, registra-se a sublevação da população uighur do Xinjiang. A despeito da considerável distância, entre estas duas regiões há diversos pontos em comum para a compreensão das revoltas contra a ocupação desses territórios pela China.
O império chinês privilegia a força em detrimento de tentativas de composição com as populações locais. Com a transposição das instâncias hierárquicas do partido comunista, a verticalização do poder se implementa com a subordinação dos naturais da terra às determinações de Beijing, consoante transmitidas pela administração regional chinesa. No âmbito demográfico, o vetor é obviamente a etnia han, que em um esquema de colonização se superpõe aos autóctones. Essas correntes demográficas da metrópole para as ‘regiões autônomas’ têm dois objetivos precípuos: o desafogo da área chinesa metropolitana, em que as oportunidades de trabalho são finitas, e o relegamento das antigas maiorias populacionais nos territórios anexados à condição de minorias étnicas, em modificadas (para pior) condições existenciais.
Adotando a repressão como norma de governo, os comunistas de Beijing seguem um paradigma de discriminação dos locais nas oportunidades de emprego, afastamento forçado de suas terras de cultivo e políticas religiosas contrárias às expressões do culto de tais populações.
Não contribui, de resto, para apaziguar os ânimos dos vassalos as crescentes correntes migratórias dos chineses han. Ao invés das transposições forçadas de chineses, utilizadas no passado, o regime passou a privilegiar a criação de ‘incentivos’ para viabilizar a transferência de chineses em busca de novas fronteiras de oportunidades econômicas nas ditas regiões autônomas.
Não é necessário dispor de bola de cristal para prever que um sistema deste tipo é uma receita de desastre, eis que minoria privilegiada (o chinês han) ingressa em novas áreas, contribuindo para agudizar a progressiva inferiorização das maiorias locais (fadadas de resto a virarem minorias).
Os uighures, colocados em verdadeira camisa de força, em que qualquer expressão de dissenso é confundida com ‘separatismo’, crime tipificado na lei chinesa como passível de pena capital.
Dentro desse paradigma de sujeição e repressão, postos contra a parede por um regime estrangeiro que não se propõe exatamente a promover a coexistência pacífica – e sem os deterrentes que a maior exposição do Tibete, inclusive através da liderança do Dalai Lama, proporcionam como uma certa salvaguarda às populações tibetanas – aos uighures não resta muita vez outra saida que os movimentos do desespero.
Assim, em fevereiro de 1997, ao malogrado levante na cidade de Yining as autoridades chinesas responderam com maciça repressão, a prisão de milhares de pessoas e a execução de muitas outras.
A resposta de Beijing se traduziu na construção de mais prisões e campos de trabalho forçado. Em fevereiro de 1998, a explosão de duas bombas em ônibus de Urumqi só incrementaram a tendência repressiva.
Depois dos ataques terroristas de onze de setembro de 2001, o governo chinês passou a justificar as suas ações em Xinjiang como uma contribuição para a guerra mundial contra o terrorismo. Eventuais ações de rebelião do povo uighur foram atribuídas à uma eventual presença terrorista da al-Qaida.
Beijing intenta outrossim nos últimos anos a impor uma reformulação da identidade dos Uighur, o que só colaborou para acirrar-lhes o ressentimento. Em 2002, o Secretário do Partido Comunista de Xinjiang Wang Lequan afirmou que a língua uighur estava fora de compasso com o século XXI, e o governo principiou a mudar todo o sistema educacional para o mandarim, substituindo os professores uighur por chineses han. Foram organizadas queimas públicas de livros em uighur, o controle sobre a religião passou a proibir costumes tradicionais, v.g., casamentos religiosos, enterros e peregrinações para sepulturas de santos locais.
Dentro desse singular programa, foi anunciado plano para arrasar o multissecular centro cultural da cidade de Kashgar. Em poucas semanas, a velha cidade desaparecerá completamente, obrigando cinquenta mil famílias a se mudarem para edifícios padronizados, que emulam os HLMs dos arrabaldes franceses e construções de periferias urbanas.
Diante desses antecedentes os recentes distúrbios na capital da província, Urumqi, representam na verdade o que se pode dizer o massacre anunciado. Segundo dados oficiais, 156 pessoas foram mortas, e mil ficaram feridas, após ataques de muçulmanos uighures contras chineses han. Segundo informes do exílio, cerca de seiscentas pessoas foram assassinadas pela polícia chinesa.

( com International Herald Tribune e Folha de São Paulo)

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