X X I
Meu estimado Amigo Pedro,
passados
oito anos de tua partida, a casa da Visconde do Uruguai está em obras. O Dr.
Brito, com a minha concordância, de lá retirou a Therezinha e a trouxe para
Niteroi, onde está em clínica geriátrica. Creio que foi a melhor solução.
Lá por
2009, quando a Carla bateu, como de hábito, pela manhã, para que a dona da casa
viesse abrir-lhe a porta, por mais que fizesse, ninguém apareceu. Telefonou,
então, para o Dr. Brito. Por força da emergência, ele a orientou para que
chamasse um chaveiro, a fim de abrir a porta.
Para
resumir, Thérèse estava caída no corredor, desacordada. Brito veio o mais rápido que pôde de Niterói. Levada para
o hospital, verificou-se que tinha sofrido um AVC. Série de exames determinou que o acidente vascular cerebral
fora de menor gravidade. Houve aumento da pressão do líquor cerebral, de que a
perda da fala e da capacidade motora estão entre os principais sintomas.
Ela
sofreu, por conseguinte, de o que antes se chamava insulto cerebral. Tal
acidente não provocou paralisia permanente em parte alguma do corpo.
Reconduzida para a residência, era mister arranjar alguém que a acompanhasse de
noite.
O Dr.
Brito contratou duas atendentes, que se revezavam em turnos semanais. A rigidez
matinal, logo notada, seria, a princípio, apenas um empecilho para o levantar
da cama. Com o passar do tempo, e a despeito dos cuidados médicos, a sua
condição não melhorava.
Com as
acompanhantes, além das dificuldades habituais, havia as diferenças de
temperamento e a natural rivalidade. Logo se viu que Therezinha se dava melhor
com uma do que com outra. Conforme o processo diagnosticado como demência
senil, a sua comunicação verbal foi diminuindo, sem, no entanto, a privação
total dessa capacidade de expressão. Tornou-se, portanto, bem mais complicado
para o Dr. Brito saber como ela estava sendo cuidada.
Contudo, a
despeito desta deficiência, pela observação e a linguagem corporal se poderia
sempre inferir o comportamento das duas atendentes. Destarte, enquanto uma a tratava com muito carinho, a segunda,
pelo jeitão, até levantou suspeitas de maneiras mais bruscas.
Com o
tempo, a dificuldade de locomoção se agravou. Passava a jornada ou sentada, ou
deitada. Nesse contexto, é de recordar-se a expressão italiana para descrever o
que significa o processo de envelhecimento para pessoas acometidas por tal
demência.
Há um toque poético na língua itálica. Assim, aí se descreve a decadência da velhice com o verbo rimbambire. A acepção básica, consoante o dicionário Zingarelli, é a de voltar a ser criança, perdendo o senso, o equilíbrio e a firmeza. Esta regressão ficou assaz marcada em Thérese, que era falante, desenvolta e afirmativa. Nesse último caso, com timbre por vezes estridente, tua esposa marcava presença como “una mujer de mucha opinión”, com o que os nossos hermanos hispânicos caracterizam as senhoras que têm opiniões em geral firmes e definidas sobre muitas questões.
Cairiam,
assim, prematuramente sobre a tua Thérèse as sombras dos maciços muros que
afastam a realidade. Se ainda dava mostras de reconhecer o Dr. Brito, não mais
tinha qualquer condição de relatar o que lhe acontecia à volta. Perdera a
condição de gerir a própria casa.
Assim, me é
forçoso admitir que, em curto espaço de tempo, após a tua saída de cena, a sua
atitude existencial muda de forma abrupta, em diversas e curtas fases.
Passado o
período de incertezas materiais que se sucedeu ao óbito, uma vez estabelecida
com firmeza legal a situação da viúva, com a pensão e a concessão do seguro,
Therezinha surpreende o Dr. Brito com projeto de adquirir um Peugeot novo.
Ainda
estava em Atenas, e concordei prontamente com o Brito, que tudo deveríamos
fazer para afastá-la desse propósito, que nada de bom parecia prometer-lhe.
Dessa intenção, não foi fácil dissuadi-la. O que a levou a encasquetar-se com a
compra do carro sedan novo não
semelha difícil atinar.
Após tantos anos de dependência, descobrir-se senhora do próprio nariz terá o efeito, em muitas viúvas, de uma talagada de vinho novo. Inebriada pela súbita emancipação, ela se via presa por capricho que não se encaixava bem no respectivo orçamento.
O quadro
fica mais complicado, se pensarmos no Hermes[1],
o teu motorista. Se até hoje continua
para mim um mistério porque dele
relevaste tantas faltas, como, v.g.,
a omissão de qualquer manutenção do teu automóvel que adquiriste zero km, como
admitir que se ocupasse do carro novo de Thérèse, ele que não tem a mínima
condição de fazê-lo !
Diante de tamanhos custos envolvidos, não foi pouco o que o Dr. Brito logrou, ao contornar a ameaça. Com a advinda independência, Thérèse se aprestava a acumular dispêndios que de muito superavam os seus recursos, se desejasse manter-se com a disponibilidade da pensão. Ao proceder dessa forma, depois de tantos anos de virtual reclusão, ela repetia comportamento que por comprometer o capital há de parecer-te familiar.
Por sorte,
a habilidade do Dr. Brito soube contornar despesas que dilapidariam em breve
tempo as reservas. Sem bater de frente, mas retardando sempre qualquer
compromisso, ele daria tempo ao tempo, e assim conseguiria afastar uma gastança que prometia
consequências ruinosas para a viúva.
Foi breve,
no entanto, esse espaço de liberdade, com mais alguns projetos que, ou por
serem impraticáveis, ou por falta de continuidade, não modificaram a vida de
Thérèse enquanto viúva.
No meu entender, deu-se destino adequado aos mais de 25 mil livros da tua coleção. Evitou-se a sua dispersão, o que fatalmente ocorreria se vendidos em lotes ou avulsos. Assim, a doação do magnífico acervo para o IPHAN pela viúva viria a evitar tal perda para os estudiosos. Em local nobre de Petrópolis, no espaço do Palácio Rio Negro, aí disporá de anexo próprio, no que será a Biblioteca Conselheiro Pedro Neves da Rocha.
Infelizmente, com a morosidade na catalogação das obras – e ainda falta
para terminá-la – a presença de Therezinha na solenidade de inauguração da
Biblioteca se foi esmaecendo, até tornar-se de todo inviável. Sabemos como
avançam as coisas em nossa terra, e se oficiais, a tramitação será quiçá ainda
mais vagarosa.
Feito este
parêntese, voltemos à condição da tua mulher, que os estragos da senectude
atingiram de forma tão diversa da que te coube. Se a tua partida foi rápida,
foste poupado até às vésperas de processo que a colheu de cheio e de modo
impiedoso, a ponto de afetar-lhe o conhecimento e a fala.
Não mais em
condições de ter a liberdade de ir e vir, assim como cuidar de si mesma, melhor
então, retirá-la de sua morada, onde por vezes não era bem tratada. Nesse
sentido, havia sobejas razões para que ela não fosse submetida a tal
condição.
De nada valia mantê-la entre paredes que não mais reconhecia, e onde a distância de seu curador só contribuía para dificultar qualquer atendimento de urgência. Com Therezinha sem condições de manter qualquer controle sobre a residência, a situação só tenderia a deteriorar-se ainda mais com o transcurso do tempo.
Agora, Thérèse está em clínica apropriada, atendida por pessoal especializado, contando com a boa acompanhante, trazida de Petrópolis, para habituá-la à companhia de pessoa conhecida. Cumpre acrescentar ao quadro a constante presença do Dr. Brito, que tudo isso logrou viabilizar com amizade, dedicação e habilidade.
Quando os anos avançam, a sorte é caprichosa, mantendo lúcidas a muitas pessoas, e a outras não. Devagar ou nem tanto, sopra lenta e persistente à medida que vai apagando os arquivos da razão. Decerto, a deusa da memória é volúvel e caprichosa. A esperança de seus devotos é de que não os abandone. Tenho para mim que Ìíçìïóýíç[2], sendo mulher, é faceira e preza aos que a cultuam com assiduidade. Não duvido, porém, que mais avance o tempo, e mais difícil seja manter a casa em ordem.
Se depois dos avisos costumeiros, as Parcas te colheram, pelo teu amor aos livros e tudo que ao intelecto dissesse respeito, estavas lúcido e inteiro na mente.
Creio, no entanto, que, a tua despedida foi cruel no punhado de dias transcorridos em leito desconfortável, no sombrio, opresso ambiente do que chamavas o quarto de hóspedes.
Tinhas pela Thérèse muito amor, mas me pergunto se a forma em que te expressavas bem umedecia a plantinha que, como outras, carece de atenções constantes, sempre mutáveis e nunca exclusivistas.
O que escondia o teu casamento – beirando os cinquenta anos pelo menos – só o podemos vislumbrar na confusa linguagem dos signos e das omissões. De qualquer modo, aquele aposento úmido e cinzento parecia guardar imensa carga de indiferença, que ali se refestelara, sabe-se lá por quantos anos, a esperar, paciente, pela própria triste epifania.
Como as sombras do Hades, Therezinha perdeu a memória. Poucos sinais e imagens hão de perdurar na lousa que os anos apagaram com brutal, acintosa pressa. Faz sete anos que partiste. Decerto, já não seria tão cedo, nem creio estivesses descontente com esta vida.
O quarto de hóspedes, em casa que nunca os teve, era na verdade piedosa ficção, imaginário biombo para ocultar um fato banal. Depois de sabe-se lá quantos anos, o casal resolvera dormir em cômodos separados. Passados tantos lustros, a presença do cachorro pequinês tem ar mais de alegação do que de motivo.
Aquele aposento estreito, com os travesseiros empilhados, e o colchão deformado, terá sido realmente o teu recanto, com a aparência de antecâmara para o espaçoso quarto de casal ocupado por tua esposa? Ou será que não passou de recesso provisório, lôbrego e desconfortável destino, quase uma sala de espera, transformada em abrigo de ocasião – como no escândalo permanente dos hospitais públicos ?
Pensavas que não podias arcar com os custos da casa de saúde, e por isso fizeste questão, malgrado as ponderações do Dr. Brito, de voltar para a tua residência. Nunca utilizaras o seguro do Itamaraty, e se hora havia em que tal se impunha era aquela. No entanto, estultamente tinhas encerrado a conta no Banco do Brasil em New York. Compuseste essa falta de bom senso, com a tolice de não recorrer ao seguro médico – e dentário ! – do teu Ministério das Relações Exteriores.
Agora, no
silêncio daquele tugúrio, sem qualquer cuidado médico, transcorreste as poucas
jornadas que te restavam no gélido abraço do desconforto de um catre, com a
cabeça levantada por amontoado de travesseiros, na vã tentativa de imitar um
leito hospitalar.
Abandonado à
própria sorte, com parte do corpo paralisada, por que Pedro, amigo velho, te
deixaste afundar em leito de Procrusto ? Neste teu melancólico, tenebroso
ocaso, não me atreverei a presumir a distância, ressentida ou não, de tua
consorte. Como nas cavernas há espaços e grutas em que muitos espeleólogos não
se aventuram, nesse malfadado cômodo, a que mais tarde lancei olhar
consternado, prefiro conter-me e não buscar juntar as peças de o que realmente
ali sucedeu. Seria especular sobre
comportamento conjugal de que não restam indícios bastantes para compor
acusação formal, se bem que a suspicácia restará para sempre.
Lamento deveras a tua atitude, por teres agido de forma inconsequente e sobretudo insensata. Para que privar-se de auxilio a que fazias jus por tudo que deste à Casa de Rio Branco? Sei que ficaste ressentido com a prematura aposentadoria como Conselheiro, mas não tinhas nenhum motivo válido para te negares os préstimos médicos para ti e Therezinha. Por que recusar o serviço na emergência? Agiste de forma impensada, eis que, se analisasses friamente a questão, verificarias que só prejudicavas a ti mesmo.
Mas fiquemos
por aí. Se posso imaginar-te o desconforto nessas longas horas, não há meio de
saber o quanto este inútil sofrimento e falta de apoio clínico te apressou o
fim. De toda maneira, quando te levaram de volta para a casa de saúde, por
conta dos males finais, todo o teu padecimento se avizinhava do término.
Com exceção
do Dr. Brito, os teus amigos não souberam sequer do AVC que te acometera e das
idas e vindas ao hospital. Por isso, ficaríamos em nossas casas, sem saber de
tua partida. Só no dia seguinte, a voz arrastada do Rezende me traria a má
notícia.
Por hoje é
só. Para quem se fia na saudade, creia-me, sempre,
3 comentários:
Como já mencionei muitas vezes considero uma relíquia literária as "Cartas ao Amigo Ausente". A forma escolhida para repassar uma vivência tão forte entre dois amigos, a estratégia de poder revelar pensamentos íntimos e verdadeiros sobre o amigo que, se vivo, não haveria espaço para isto.
É interessante a tese da comentarista. No desaparecimento do amigo se descobre um aspecto não tão desfavorável
Acho muito oportuno o comentário feito.
Postar um comentário