segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XXII)


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          Meu mui prezado e grande Amigo Pedro,

 

          talvez pela longa companhia e a afeição que dedicavas  a Therezinha, ela te acompanhou no ceticismo. Não tinha crenças espirituais, nem acreditava em existência extraterrena.

         Teria leituras sobre o niilismo?  Difícil de dizer, mas sendo tua companheira, conviveria com as idéias que alimentavas. Recordo-me bem do tratado niilista que encontraste nas edições Loyola, livraria católica que se aguentava em um dos últimos andares do edifício Sisal, na Presidente Vargas.

         Só mesmo a tua sede livresca para desencavar o precário abrigo aonde se refugiara a livraria. Por falta de meios, as últimas edições se encontravam empilhadas em poucas salas. Pois lá deste com franzina obra acerca do niilismo, que me saudaste entusiasmado.

         Surpreendeu-me a tua atitude, a ti que em geral folheavas os volumes com ar meio desconfiado. Para ti, nos livros, as referências bibliográficas mereciam uma atenção à parte. Com isso, sinalizavas a importância das obras em que qualquer título deveria basear-se.

         Assim, antes de folhear o texto próprio de obra determinada, buscavas as fontes onde se abeberara o autor. Ao abrires um volume qualquer nas bancas de livraria, como, v.g., a Leonardo da Vinci, costumavas ir direto para a sua bibliografia. Antes de admitir a entrada de qualquer título na lista de candidatos à aquisição – e o teu apetite livresco não era moderado – procedias ao exame das obras que lhe constituíam a fundamentação.  Sem o saberes, pois segundo quero crer o termo ainda não era usado, a tua maneira de inteirar-te, posto que de modo necessariamente superficial, se iria estruturar em tipo especial de comportamento, que hoje chamaríamos meme.

         Desse modo – e nada impedia que tais exames se sucedessem, em vistas rápidas, mas nunca desatentas – depois da página de rostro, a incursão na bibliografia, a folheada no corpo do texto, e um que outro mergulho em nota de pé de página. Dependendo do interesse que despertasse, esses movimentos rituais poderiam ser breves ou longos, com as devidas modulações que apontariam para a indiferença – o volume volta sem mais delongas ao seu lugar; o módico interesse – com repaginar sumário e de pronto interrompido; e, por fim, a cúpida atenção, que desembocava, ou na releitura da página, que trazias para bem perto da vista, como um jogador a sopesar o que as cartas lhe prometiam, ou no assomo de retirar aquela pepita do alcance de outros aventureiros, pois a julgavas merecedora de aumentar a tua dívida com a livraria.

         Mal comparando, agias na matéria como as donas de casa que sequer se detêm na pessoa da empregada que postula o serviço, antes de apurar tintim por tintim as indicações que traz consigo. Para que um livro gozasse do privilégio de ser colocado nas tuas estantes, buscavas na respectiva bibliografia a imprescindível documentação que fundamentaria ou não o seu ingresso na tua biblioteca.

        Pelo cálculo de probabilidades, quem poderia contestar-te o critério? Como nas escolas antigas, as apresentações eram obrigatórias. Mas se toda regra para valer carece da exceção, me irias comprovar, pela eleição desprovida de qualquer recomendação séria, de que até os rituais mais arcanos podem ser postos de lado se, no caso,  valor mais alto se alevante.

       Não contavas com a surpresa de topar no espartano mostruário de livraria que sequer dispunha de prateleiras para exibir o seu acervo um livro sobre o niilismo. A cena que presenciei tinha um pouco de Ionescou, autor que por série de razões não era de tua especial predileção.

        A meu espanto de então só o posso atribuir à pouca familiaridade com a tua biblioteca. O que no caso me estranhou, é que, em termos de tratado niilista, já o saudaras com estado de espírito que me arrisco a qualificar de algariado.

         Com o livrinho em mãos, nos mostras – a mim e ao Rezende – o que tinhas por um achado. Ficava-se com a impressão de que ganharas o dia, ao descobrir, entre as pilhas que a modestíssima instalação da Loyola proporcionava, o que para ti sem dúvida era cativante gema a coruscar na monotonia do quotidiano.
 
       Esse episódio ganharia significado maior, se tivesse tido a oportunidade de melhor conhecer a tua biblioteca. Com efeito, raríssimas vezes a visitei. Além de teres muito ciúme dela, o fato de viveres em Petrópolis colocava um senhor fosso para eventuais visitas. Em verdade, ao longo das décadas de nossa amizade, até o século XXI, as minhas idas a Petrópolis se contam nos dedos da mão direita, pelo simples fato de que me achava a serviço no exterior ou em Brasília. Por isso, quando passava pelo Rio – e eram visitas raras e breves – costumávamos combinar o almoço ou por telefone, ou por telegrama. Desse modo, se não me engano, estive uma vez na biblioteca, quando residias no solar da avenida Rio Branco, e uma outra, já na tua residência da Visconde do Uruguai, em Valparaíso. Foram fugazes visitas à tua magnífica coleção de livros. A ela – ou melhor dizendo – a seu núcleo original tinha sido apresentado, como bem recordo, quando, candidato ao vestibular do Rio Branco, estivera com outro colega nas tuas amplas acomodações do hotel Inglês, na rua do Catete, quando se me depararam por primeira vez as estantes de livros, decerto modestas se comparadas com os avatares posteriores, mas já tendentes a impressionar o jovem estudante. 

      Foi depois de tua inumação,  que pude conhecer com um pouco mais de vagar a tua biblioteca. Therezinha, confusa e inquieta diante da burocracia da morte, com Hermes[1] voejando pela casa, pareceu-nos lamentar mais a tua falta material, do que a presença do esposo.

      Sentados à mesa da copa, com pilhas de documentos, ela deixara escapar uma queixa: será que o Pedro lá de cima está vendo como me deixou? No reclamo dava a impressão de acusar-te por sentir a tua falta em termos de apoio material para lidar com todo o papelório das providências e sequelas do passamento. 

       Na primeira carta ao meu amigo ausente, escrita com a memória ainda vívida daquela visita de pêsames, há pormenores que só agora menciono como o queixume acima registrado. Mas a nossa visita à tua biblioteca, e a comparação com a da mansão da Rio Branco lá está.  A tua ausência do sobrado que mandaste construir – e como hoje não computar os dispêndios com os espaços de alvenaria que criaste para a tua coleção de livros, pensando sobretudo no que te dilapidaram a conta bancária ?
 
       Que seja um pensamento breve. Longe de mim maçar-te depois da morte com censuras de contador. Dedicaste a tua vida ao livro. Como então não dar-lhe ambiente adequado, não só para tê-los a mão, mas também para dispor de locais apropriados para a leitura e a escrita. Guiados por Therezinha, a quem fomos Ana e eu levar os nossos pêsames ainda na sexta-feira da fatídica semana, adentramos o pavilhão – que me pareceu mais apertado – ou quiçá mais atopetado de tomos, do que o da Rio Branco. Como assinalei, passamos pela coruja de Minerva e por dístico de Humanitas, antes de ingressar no conjunto de sala (e do banheiro invadido pelos livros!).

        Em boa hora, Thérèse se decidira a mostrar-nos o teu reduto mais sagrado. Suponho que estivesse fechado há mais de semana, pela contingência do AVC, o forçado afastamento do teu recanto preferido, mais tarde a estada miserável no dito ‘quarto de hóspedes’, a que sucederam as jornadas da tua definitiva ausência.

      
         Pairava já naquele espaço o odor do relativo abandono, com a falta de ventilação e a umidade de Petrópolis. Por isso, esta particular visita seria bem mais breve do que desejaria. Ao me ver constrangido a encurtar os tempos, pelos efeitos que a clausura do ambiente provocara, não pude enjeitar um pensamento maroto, de que, cioso como sempre dos teus domínios, vias com algum gosto que o ar confinado e as sensações dos mortais me afastassem de incursões mais inquisitivas das tuas estantes.
 
       De qualquer forma, como mencionei na primeira correspondência, lá estavam os in-octavo do teu admirado Pierre Bayle, e os quatro volumes da enciclopédia sobre ateísmo. Mas havia mais, muito mais, com os pensadores céticos e os tratados de Sextus Empiricus, na coleção Loeb. Não pude deixar de notar a colocação preferencial que tinha a portentosa encadernação da obra de Bayle, um esclarecido em tempos obscuros, em que o respeito pela tolerância e a liberdade de pensamento constituíam dádivas raras, muita vez de súbito retiradas, sob as inconstâncias e as metamorfoses, por vezes cruéis, dos poderosos de então.

       Não há negar a tua admiração por esses livres pensadores. Até que ponto aquela visão nostálgica de personalidades que marcaram a respectiva presença em tempos onde a autoridade do soberano e da Igreja se elevavam, incontrastadas, nas charnecas do pensamento conformista, se refletiria na colocação de obras nas confinadas estantes – eis uma outra questão. Que tal se a deixássemos para a próxima carta?
 
      Com o abraço do amigo velho,




[1] Pseudônimo.

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