quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Desacato e outras Ameaças à liberdade de expressão

                      
  
      Não poderia ter sido mais oportuna a advertência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) dirigida ao governo do Brasil.
        Nesse Congresso brasileiro - que só trabalha com expediente integral nas quartas-feiras - muita revisão de legislação é feita de forma superficial e pouco satisfatória.

        Tome-se o exemplo do Código Penal brasileiro, promulgado em pleno Estado Novo (1940), e elaborado sob direta influência do código fascista italiano.
         A CIDH alerta o governo do Brasil – e em especial o Congresso – que a manutenção dos crimes de desacato, injúria, calúnia e difamação no Código Penal representa um risco considerável ao exercício pleno da democracia e à liberdade de expressão.

         Assinale-se que tais normas fascistóides criminalizam a opinião dos cidadãos em geral e de jornalistas em particular.
         Nesse contexto, a CIDH reiterou que, na jurisprudência do Sistema Interamericano, disputas sobre a veracidade de acusações e a intenção e o dano de suposto ataque à honra devem ser circunscritas à esfera civil e respeitar o critério de proporcionalidade para evitar excessos em punições, banir a ameaça de prisão e inibir o uso da Justiça como instrumento para silenciar críticas.

         Com grande sensibilidade e oportunidade no caso brasileiro, a Comissão questiona em especial o desacato – ofensa à honra de funcionários públicos e de autoridades. Como sublinhou Catalina Botero, relatora especial de liberdade de expressão da Corte, a CIDH já deixou claro que esse tipo de norma penal tem de respeitar a Convenção Americana. É importante revisar as normas de desacato, não porque não tenham honra os funcionários públicos, mas pelo dano que tais normas podem causar ao processo democrático. A ameaça de prisão produz medo, intimidação, especialmente a jornalistas de áreas mais vulneráveis.
         Esse oportuno alerta foi feito em audiência na CIDH, solicitada pela ONG Artigo 19, de São Paulo.  Está em xeque que o regime jurídico brasileiro viola a Convenção de Direitos Humanos regional e é utilizado indiscriminadamente para reprimir.

         Segundo pesquisa realizada pela ONG, de 512 acórdãos do TJ-SP entre junho de 2012 e março de 2013, 80% dos autores das denúncias são policiais, políticos, advogados e ocupantes de cargos públicos. O desacato lidera com 272 processos. Hoje, em seis dos 27 TJs, há em curso 800 processos de desacato, calúnia, injúria e difamação.

         O direito brasileiro carece de atualizar-se e de perder, no capítulo da opinião e do comportamento, o seu viés  repressivo. Nesse quadro, é interessante e assaz oportuno assinalar que já foram condenados, por criminalizarem a opinião, seis países: Argentina, Chile, Costa Rica, Panamá, Paraguai e Venezuela. Nesse sentido a o Argentina, em 2008, foi sentenciada a alterar o Código Penal e excluir o desacato, o que cumpriu. Também posteriormente a opinião foi descriminalizada integralmente.
         Como sublinha Paula Martins, diretora da ONG Artigo 19, “o Código (Penal) tem um efeito fortíssimo inibidor à liberdade de expressão. O medo pode gerar autocensura.”

           A CIDH comunicou à missão do Brasil junto à OEA a necessidade de implementar as recomendações do Sistema interamericano. Em sua resposta, a missão obtemperou que o Brasil não está descumprindo a Convenção.  Nesse contexto, aludiu a projeto de lei de autoria do Senador José Sarney (PMDB-AP).

           No entanto, a leitura do projeto Sarney mostra que a ‘reforma’ não é decididamente para valer. Apesar de que o texto do projeto supostamente acabe com a figura do desacato, a qualificação em apreço é mantida para ofensa a servidores públicos. Além disso, a ‘reforma’ aumenta o tempo de prisão em 50% nesses casos. E o projeto Sarney ainda extrapola em termos de calúnia, injúria e difamação, que têm a pena máxima elevada a três anos.  
            O instituto do desacato é ferramenta cujo uso tem sido estendido a um sem-número de ‘autoridades’, nelas incluídas policiais e P.M.s. Dado o caráter fascista deste instituto – que criminaliza o comportamento da vítima – ele tende a prejudicar o eventual acusado, dentre de seu enfoque unilateral, ao privilegiar a autoridade coatora. Releva, outrossim, sublinhar que em muitos casos o desacato se caracteriza pela unilateralidade, eis que fica ao inteiro alvitre da autoridade.

             É muito oportuna no contexto – sobretudo se tivermos presente a supracitada ‘reforma’ à legislação do projeto Sarney – a assertiva da CIDH que na jurisprudência do Sistema interamericano disputas sobre a veracidade de acusações e a intenção e o dano de suposto ataque à honra devem ser circunscritas à esfera civil e respeitar o critério de proporcionalidade para evitar excessos em punições, banir a ameaça de prisão e inibir o uso da Justiça como instrumento para silenciar críticas.
              Estamos falando de democracia, e é importante que ela esteja presente igualmente no campo da opinião.

              Para cumprir o ditame implícito na Constituição Cidadã de Censura, Nunca Mais, carecemos de acabar também com as figuras encapuzadas do desacato, da calúnia, injúria e difamação. Essas figuras estarão à vontade em legislação feita sob influência fascista, mas jamais  sob a autêntica ordem democrática.
 

 
(Fonte: O Globo)                      

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