segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XXI)


 
                                                X X I

 
                                               
 

          Meu estimado Amigo Pedro,

 

           passados oito anos de tua partida, a casa da Visconde do Uruguai está em obras. O Dr. Brito, com a minha concordância, de lá retirou a Therezinha e a trouxe para Niteroi, onde está em clínica geriátrica. Creio que foi a melhor solução.

          Lá por 2009, quando a Carla bateu, como de hábito, pela manhã, para que a dona da casa viesse abrir-lhe a porta, por mais que fizesse, ninguém apareceu. Telefonou, então, para o Dr. Brito. Por força da emergência, ele a orientou para que chamasse um chaveiro, a fim de abrir a porta.

          Para resumir, Thérèse estava caída no corredor, desacordada. Brito veio o  mais rápido que pôde de Niterói. Levada para o hospital, verificou-se que tinha sofrido um AVC. Série de exames determinou que o acidente vascular cerebral fora de menor gravidade. Houve aumento da pressão do líquor cerebral, de que a perda da fala e da capacidade motora estão entre os principais sintomas.

          Ela sofreu, por conseguinte, de o que antes se chamava insulto cerebral. Tal acidente não provocou paralisia permanente em parte alguma do corpo. Reconduzida para a residência, era mister arranjar alguém que a acompanhasse de noite.

          O Dr. Brito contratou duas atendentes, que se revezavam em turnos semanais. A rigidez matinal, logo notada, seria, a princípio, apenas um empecilho para o levantar da cama. Com o passar do tempo, e a despeito dos cuidados médicos, a sua condição não melhorava.

          Com as acompanhantes, além das dificuldades habituais, havia as diferenças de temperamento e a natural rivalidade. Logo se viu que Therezinha se dava melhor com uma do que com outra. Conforme o processo diagnosticado como demência senil, a sua comunicação verbal foi diminuindo, sem, no entanto, a privação total dessa capacidade de expressão. Tornou-se, portanto, bem mais complicado para o Dr. Brito saber como ela estava sendo cuidada.

         Contudo, a despeito desta deficiência, pela observação e a linguagem corporal se poderia sempre inferir o comportamento das duas atendentes. Destarte, enquanto  uma a tratava com muito carinho, a segunda, pelo jeitão, até levantou suspeitas de maneiras mais bruscas.

         Com o tempo, a dificuldade de locomoção se agravou. Passava a jornada ou sentada, ou deitada. Nesse contexto, é de recordar-se a expressão italiana para descrever o que significa o processo de envelhecimento para pessoas acometidas por tal demência.

         Há um toque poético na língua itálica. Assim, aí se descreve a decadência da velhice com o verbo rimbambire. A acepção básica, consoante o dicionário Zingarelli, é a de voltar a ser criança, perdendo o senso, o equilíbrio e a firmeza.  Esta regressão ficou assaz marcada em Thérese, que era falante, desenvolta e afirmativa. Nesse último caso, com timbre por vezes estridente, tua esposa marcava presença como “una mujer de mucha opinión”, com o que os nossos hermanos hispânicos caracterizam as senhoras que têm opiniões em geral firmes e definidas sobre muitas questões.

        Cairiam, assim, prematuramente sobre a tua Thérèse as sombras dos maciços muros que afastam a realidade. Se ainda dava mostras de reconhecer o Dr. Brito, não mais tinha qualquer condição de relatar o que lhe acontecia à volta. Perdera a condição de gerir a própria casa.

         Assim, me é forçoso admitir que, em curto espaço de tempo, após a tua saída de cena, a sua atitude existencial muda de forma abrupta, em diversas e curtas fases.      

         Passado o período de incertezas materiais que se sucedeu ao óbito, uma vez estabelecida com firmeza legal a situação da viúva, com a pensão e a concessão do seguro, Therezinha surpreende o Dr. Brito com projeto de adquirir um Peugeot novo.

         Ainda estava em Atenas, e concordei prontamente com o Brito, que tudo deveríamos fazer para afastá-la desse propósito, que nada de bom parecia prometer-lhe. Dessa intenção, não foi fácil dissuadi-la. O que a levou a encasquetar-se com a compra do carro sedan novo não semelha difícil atinar.
 
         Após tantos anos de dependência, descobrir-se senhora do próprio nariz terá o efeito, em muitas viúvas, de uma talagada de vinho novo. Inebriada pela súbita emancipação, ela se via presa por capricho que não se encaixava bem no respectivo orçamento.

           O quadro fica mais complicado, se pensarmos no Hermes[1], o teu motorista. Se  até hoje continua para mim um mistério porque dele  relevaste tantas faltas, como, v.g., a omissão de qualquer manutenção do teu automóvel que adquiriste zero km, como admitir que se ocupasse do carro novo de Thérèse, ele que não tem a mínima condição de fazê-lo !
 
          Diante de tamanhos custos envolvidos, não foi pouco o que o Dr. Brito logrou, ao contornar a ameaça. Com a advinda independência, Thérèse se aprestava a acumular dispêndios que de muito superavam os seus recursos, se desejasse manter-se com a disponibilidade da pensão. Ao proceder dessa forma, depois de tantos anos de virtual reclusão, ela repetia comportamento que por comprometer o capital há de parecer-te familiar.

         Por sorte, a habilidade do Dr. Brito soube contornar despesas que dilapidariam em breve tempo as reservas. Sem bater de frente, mas retardando sempre qualquer compromisso, ele daria tempo ao tempo, e assim conseguiria  afastar uma gastança que prometia consequências ruinosas para a viúva.
 
         Foi breve, no entanto, esse espaço de liberdade, com mais alguns projetos que, ou por serem impraticáveis, ou por falta de continuidade, não modificaram a vida de Thérèse enquanto viúva.

          No meu entender, deu-se destino adequado aos mais de 25 mil livros da tua coleção. Evitou-se a sua dispersão, o que fatalmente ocorreria se vendidos em lotes ou avulsos. Assim,  a doação do magnífico acervo para o IPHAN pela viúva viria a evitar tal perda para os estudiosos. Em local nobre de Petrópolis, no espaço do Palácio Rio Negro, aí disporá de anexo próprio, no que será a Biblioteca Conselheiro Pedro Neves da Rocha.

        Infelizmente, com a morosidade na catalogação das obras – e ainda falta para terminá-la – a presença de Therezinha na solenidade de inauguração da Biblioteca se foi esmaecendo, até tornar-se de todo inviável. Sabemos como avançam as coisas em nossa terra, e se oficiais, a tramitação será quiçá ainda mais vagarosa.

        Feito este parêntese, voltemos à condição da tua mulher, que os estragos da senectude atingiram de forma tão diversa da que te coube. Se a tua partida foi rápida, foste poupado até às vésperas de processo que a colheu de cheio e de modo impiedoso, a ponto de afetar-lhe o conhecimento e a fala.

        Não mais em condições de ter a liberdade de ir e vir, assim como cuidar de si mesma, melhor então, retirá-la de sua morada, onde por vezes não era bem tratada. Nesse sentido, havia sobejas razões para que ela não fosse submetida a tal condição.   
    
        De nada valia mantê-la entre paredes que não mais reconhecia, e onde a distância de seu curador só contribuía para dificultar qualquer atendimento de urgência. Com Therezinha sem condições de manter qualquer controle sobre a residência, a situação só tenderia a deteriorar-se ainda mais com o transcurso do tempo.
    
         Agora, Thérèse está em clínica apropriada, atendida por pessoal especializado, contando com a boa acompanhante, trazida de Petrópolis, para habituá-la à companhia de pessoa conhecida. Cumpre acrescentar ao quadro a constante presença do Dr. Brito, que tudo isso logrou viabilizar com amizade, dedicação e habilidade.
   
         Quando os anos avançam, a sorte é caprichosa, mantendo lúcidas a muitas pessoas, e a outras não. Devagar ou nem tanto, sopra lenta e persistente à medida que vai apagando os arquivos da razão. Decerto, a deusa da memória é volúvel e caprichosa. A esperança de seus devotos é de que não os abandone. Tenho para mim que Ìíçìïóýíç[2], sendo mulher, é faceira e preza aos que a cultuam com assiduidade. Não duvido, porém,  que mais avance o tempo, e mais difícil seja manter a casa em ordem.
        
          Se depois dos avisos costumeiros, as Parcas te colheram, pelo teu amor aos livros e tudo que ao intelecto dissesse respeito, estavas lúcido e inteiro na mente.
     
          Creio, no entanto, que, a tua despedida foi cruel no punhado de dias transcorridos em leito desconfortável, no sombrio, opresso ambiente do que chamavas o quarto de hóspedes.  
     
         Tinhas pela Thérèse muito amor, mas me pergunto se a forma em que te expressavas bem umedecia a plantinha que, como outras, carece de atenções constantes, sempre mutáveis e nunca exclusivistas.

         O que escondia o teu casamento – beirando os cinquenta anos pelo menos – só o podemos vislumbrar na confusa linguagem dos signos e das omissões. De qualquer modo, aquele aposento úmido e cinzento parecia guardar  imensa carga de indiferença, que ali se refestelara, sabe-se lá por quantos anos, a esperar, paciente, pela própria triste epifania.
   
         Como as sombras do Hades, Therezinha perdeu a memória. Poucos sinais e imagens hão de perdurar na lousa que os anos apagaram com brutal, acintosa pressa. Faz sete anos que partiste. Decerto, já não seria tão cedo, nem creio estivesses descontente com esta vida.
      
         O quarto de hóspedes, em casa que nunca os teve, era na verdade piedosa ficção,  imaginário biombo para ocultar um fato banal. Depois de sabe-se lá quantos anos, o casal resolvera dormir em cômodos separados. Passados tantos lustros, a presença do cachorro pequinês tem ar mais de alegação do que de motivo.
 
         Aquele aposento estreito, com os travesseiros empilhados, e o colchão deformado, terá sido realmente o teu recanto, com a aparência de antecâmara para o espaçoso quarto de casal ocupado por tua esposa?  Ou será que não passou de recesso provisório, lôbrego e desconfortável destino, quase uma  sala de espera, transformada em abrigo de ocasião – como no escândalo permanente dos hospitais públicos ?
     
        Pensavas que não podias arcar com os custos da casa de saúde, e por isso fizeste questão, malgrado as ponderações do Dr. Brito, de voltar para a tua residência. Nunca utilizaras o seguro do Itamaraty, e se hora havia em que tal se impunha era aquela. No entanto, estultamente tinhas encerrado a conta no Banco do Brasil em New York. Compuseste essa falta de bom senso, com a tolice de não recorrer ao seguro médico – e dentário ! – do teu Ministério das Relações Exteriores.

       Agora, no silêncio daquele tugúrio, sem qualquer cuidado médico, transcorreste as poucas jornadas que te restavam no gélido abraço do desconforto de um catre, com a cabeça levantada por amontoado de travesseiros, na vã tentativa de imitar um leito hospitalar.

        Abandonado à própria sorte, com parte do corpo paralisada, por que Pedro, amigo velho, te deixaste afundar em leito de Procrusto ? Neste teu melancólico, tenebroso ocaso, não me atreverei a presumir a distância, ressentida ou não, de tua consorte. Como nas cavernas há espaços e grutas em que muitos espeleólogos não se aventuram, nesse malfadado cômodo, a que mais tarde lancei olhar consternado, prefiro conter-me e não buscar juntar as peças de o que realmente ali sucedeu. Seria especular sobre  comportamento conjugal de que não restam indícios bastantes para compor acusação formal, se bem que a suspicácia restará para sempre.
 
       Lamento deveras a tua atitude, por teres agido de forma inconsequente e sobretudo insensata. Para que privar-se de auxilio a que fazias jus por tudo que deste à Casa de Rio Branco? Sei que ficaste ressentido com a prematura aposentadoria como Conselheiro, mas não tinhas nenhum motivo válido para te negares os préstimos médicos para ti e Therezinha. Por que recusar o serviço na emergência? Agiste de forma impensada, eis que, se analisasses friamente a questão, verificarias que só prejudicavas a ti mesmo. 

        Mas fiquemos por aí. Se posso imaginar-te o desconforto nessas longas horas, não há meio de saber o quanto este inútil sofrimento e falta de apoio clínico te apressou o fim. De toda maneira, quando te levaram de volta para a casa de saúde, por conta dos males finais, todo o teu padecimento se avizinhava do término. 

        Com exceção do Dr. Brito, os teus amigos não souberam sequer do AVC que te acometera e das idas e vindas ao hospital. Por isso, ficaríamos em nossas casas, sem saber de tua partida. Só no dia seguinte, a voz arrastada do Rezende me traria a má notícia.

         Por hoje é só. Para quem se fia na saudade, creia-me, sempre,

 




[1] Pseudônimo.
[2] Memória

3 comentários:

Maria Dalila Bohrer disse...

Como já mencionei muitas vezes considero uma relíquia literária as "Cartas ao Amigo Ausente". A forma escolhida para repassar uma vivência tão forte entre dois amigos, a estratégia de poder revelar pensamentos íntimos e verdadeiros sobre o amigo que, se vivo, não haveria espaço para isto.

Mauro M. de Azeredo disse...

É interessante a tese da comentarista. No desaparecimento do amigo se descobre um aspecto não tão desfavorável

Mauro M. de Azeredo disse...

Acho muito oportuno o comentário feito.